terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

EM CAJAZEIRAS, O CINZA


“Um radialista”. Assim, secamente, Seu Antônio Gomes me identificou o morto cujo enterro passava pela esquina onde estávamos postados em Cajazeiras, Paraíba. Até que o enterro passasse não lhe dera atenção. Observara, fascinado, aquela fila coleante a se arrastar molemente ocupando todos os espaços da rua. Era sempre assim, fosse enterro, manifestação, passeata política, desfile: um fluxo constituído por unidades individuais aparentemente diferentes, mas idênticas em essência. O ser humano. Esse compósito de vilania e santidade arrastando-se em grupo do nada para o nada.

Seu Antônio, como eu, estava de braços cruzados olhando o enterro. Seu olhar era sardônico. Um olhar que combinava bem com o rosto magro, de feições indefinidas, comuns. Deveria ter sessenta e poucos anos. Cabelos grisalhos, abundantes, cortados curtos, displicentemente penteados para trás. Ao observá-lo tive a sensação de que ele parecia um elemento estranho à paisagem. Não combinava com Cajazeiras, uma cidade que, sendo grande para os padrões do Sertão, disso nada extraíra de bom, assim como não guardara o que de bom havia de quando era pequena. Era como uma questão de foco. Ele parecia deslocado não por que estivesse no centro da cidade, em pleno comércio, mas, sim, por que estava ali como se fosse um estrangeiro em pleno Sertão. A roupa não dizia nada, nem os sapatos, nem qualquer adereço, até por que não os havia, excetuando o relógio que, como tudo nele, também era muito discreto.

“O senhor não é daqui.” “Sou e não sou. Nasci aqui há uns sessenta e tantos anos atrás, e voltei há uns poucos dias para vender uma terra que me coube por herança.” E me perguntou o que eu fazia em Cajazeiras. Falei-lhe de minha pesquisa acerca de Massilon e que acabara de voltar de Missão Velha, no Ceará, terra onde o Cel. Isaias Arruda “reinara” na década de 20. Agora já estávamos sentados numa lanchonete que colocara aquelas mesas e cadeiras de metal com imensas logomarcas de cerveja na calçada. Mesas e cadeiras sujas, evidentemente. Como não era possível tomar um café respeitável, pedíramos água mineral. “Ah, o cangaço”, disse, e perguntou: “descobriu algo em Missão Velha?”. Sim, eu havia descoberto, mas não queria falar acerca de cangaço. Será que eu conseguiria transmitir oralmente, para aquele estranho, um homem educado, percebia-se facilmente isso, minhas impressões de viagem? Será que eu conseguiria prender sua atenção durante um tempo suficiente para dizer-lhe uma crônica elaborada com fragmentos de imagens e palavras? O que significaria tudo isso quando cada um fosse para seu lado e um tempo razoável tivesse passado desde então?

O cariri é verde, muito verde para ser Sertão, comecei. E Missão Velha parece uma cidadezinha perdida no tempo, uma Macondo. Lá, quando chegamos, fomos direto para o coração da cidade. Estacionamos. Seria dia de feira? Não, é que o pagamento da “esmola oficial do governo federal” era naquele dia. As feiras, como eram antigamente, não existem mais. Não há mais cantadores de viola, coquistas, literatura de cordel, contadores de “causos”, vendedores de drogas milagrosas, rezadeiras, adivinhos, mágicos, circos mambembes... Há tipos estranhos, é impossível não haver: uma mulher de mais de sessenta anos, horrorosamente maquiada, vestida como uma adolescente, a carne sobrando por sobre a barra da minissaia, a abraçar freneticamente uma comadre a quem aparentemente não via há muito tempo e lhe responder em cima da bucha quando ela dissera “mulher, você já tem muitos janeiros, né?; “tenho, mas você não fica atrás não, não é criatura?” E virando-se para o lado, tangeu o marido que empurrava um carrinho de sorvete caseiro: “vai, vai, que aqui é conversa de mulher”. O sorveteiro obedeceu, mas como vingança, ao passar por mim que observava deliciado a cena, levou a mão ao lado da cabeça, e fez, com o indicador apontado para si e desenhando um círculo, o comentário final: “é tudo doida”.

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