quinta-feira, 12 de agosto de 2021

DE OUTSIDERS, EXCÊNTRICOS, DIVERGENTES, TRANSGRESSORES, DESVIANTES OU INCONFORMADOS (Segunda Parte)

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

2.     Grandes e pequenos homens 

Quanto à história, somente me interessa as ideias dos homens. Sem as ideias, não haveria história; então, a história é, na verdade, aquela das ideias dos homens. 

Claro que toda essa divagação nada mais é que uma forma oblíqua de introduzir a discussão de uma ideia: a de que sempre houve, na história, alguma percepção de que o percurso da humanidade somente pode ser compreendido se levarmos em consideração que sua longa caminhada civilizatória não existiria sem seus heróis, tampouco sem os bandidos. Não haveria o Bem, se não houvesse o Mal.

A noção da existência da luz e das trevas, e, em decorrência, de heróis e bandidos, constituindo o caldo fundamental da história do Homem, poderia, assim, ser considerada arquetípica, fazendo parte do inconsciente coletivo da humanidade, tal qual lemos na obra de Carl Gustav Jung, um dos maiores psicanalista de todos os tempos, fundador da Psicologia Analítica.

É de se mencionar o interesse de Jung pelo esoterismo, espiritualidade e artes ocultas, tão condenado por Freud, que temia comprometer a credibilidade da Psicanálise.

Pois bem, o texto do capítulo anterior é uma alegoria, utilizada para propor que, ao longo do tempo, não faltou quem defendesse ser a história do Homem, no total, constituída pelas ideias e ações daqueles que, de uma forma ou outra, enquanto Luz ou Trevas, heróis ou bandidos, embora nos limites que suas circunstâncias históricas lhes permitiam, ao resolverem seguir em frente em busca de concretizar seus objetivos imediatos ou a longo prazo, escreveram o grande livro do processo civilizatório.

No que diz respeito aos “heróis”, respeitados Homero e Hesíodo, Carlyle foi um dos principais ensaístas a defender diretamente o papel fundamental por eles exercidos na construção da história. Deve-se, entretanto, salientar que uma exegese atualizada do seu texto aponta para uma apreensão desse termo em um sentido mais lato, englobando tanto aqueles que possam merecer os elogios, quanto aqueles que mereceriam o opróbrio da humanidade[1]:

Porque, como eu a considero, a história universal, a história daquilo que o homem tem realizado neste mundo, é no fundo a história dos grandes homens que aqui têm laborado. Eles foram os condutores de homens, estes grandes homens, os modeladores, padrões e, em sentido amplo, criadores de tudo o que a massa geral dos homens imaginou fazer ou atingir; todas as coisas que nós vemos efetuadas no mundo são propriamente o resultado material externo, a realização prática e a incorporação dos pensamentos que habitam nos grandes homens mandados ao mundo: a alma de toda a história universal, pode justamente considerar-se, seria a história destes.

Mais que à noção de “heróis” no sentido proposto por Carlyle, é melhor estar atento aos que ele nomina de “condutores”, “modeladores”, “padrões”, “criadores” de tudo quanto a massa geral dos homens imaginou fazer ou atingir. São esses os “grandes homens”, sejam eles heróis ou bandidos.

É certo supor que esses “grandes homens”, o mais das vezes, para não dizer todas, assim se tornaram na justa medida em que se colocaram contra sua circunstância histórica, contra o “sistema” que os manietava?

Constituem eles uma longa lista de homens e mulheres notáveis, que em certo momento nadaram contra a correnteza, e, de uma forma ou outra, fizeram a diferença quando comparados aos seus contemporâneos? Uma longa lista de homens e mulheres que ousaram romper com a tradição herdada e circunstancial da qual eles eram herdeiros?

É possível que sim: no domínio da filosofia Gaston Bachelard o percebeu no que diz respeito ao avanço do conhecimento científico, sempre por ruptura com o que lhe era anterior, e coonestou, citando Nietsche: “tudo que é decisivo somente nasce apesar de[2].

A partir de Nietsche podemos extrapolar os limites do mero avanço do conhecimento científico e compreender que que quem ousou fazer a diferença o fez rompendo com sua circunstância; e quem ousou o fez dizendo “não”:

                   Ao contrário do que hoje em dia se pensa, a humanidade não apresenta uma evolução rumo a algo melhor, mais forte ou mais elevado. O “progresso” é apenas uma ideia moderna, isto é, uma ideia falsa. O europeu de hoje em dia tem muito menos valor do que o europeu da Renascença; o processo de evolução não implica necessariamente elevação, aprimoramento, fortalecimento.

É bem verdade que isso acontece em casos isolados e únicos em várias partes da Terra e sob as mais variadas culturas, nas quais certamente se manifesta um tipo superior; tipo que, comparado ao restante da humanidade, aparece como uma espécie de super-homem. Tais bem-sucedidos golpes de sorte sempre foram possíveis e continuarão a ser talvez pelos tempos que virão. Até mesmo raças inteiras, tribos e nações podem vir a apresentar, ocasionalmente, acidentes venturosos como esses[3].

 Roberto Musil percebeu isso belamente:

                   Cada coisa só existe por virtude de suas limitações; em outras palavras, por virtude de um ato mais ou menos hostil contra seu ambiente: sem o papa não haveria Lutero, e sem os pagãos não haveria o papa, portanto não se pode negar que a associação mais profunda dos homens com seus semelhantes consiste na dissociação deles”[4]

É o caso de Jesus, apesar de Roma. De Einstein, apesar de Newton. De Galileu, apesar da Igreja Católica. De São Paulo, apesar do desconhecimento filosófico acerca do que fosse a ideia de “Vontade”. De tantos outros...

A São Paulo devemos a descoberta da noção de “Vontade”, provavelmente concomitante àquela da liberdade. Seu texto fundante, nesse aspecto, foi a Carta aos Romanos (7, 18-24). Até então, supúnhamos que o Homem não tivesse livre-arbítrio, categoria filosófica pensada e trabalhada por Santo Agostinho, a partir de São Paulo.

Hannah Arendt nos encaminhou, em Responsabilidade e Julgamento, à noção de que devemos a São Paulo, a ideia de “Vontade”. São Paulo foi crucial para a construção da doutrina da Igreja Católica, o verdadeiro fundador da filosofia cristã, com sua “Carta aos Romanos”[5].

Lê-se, em Romanos, esse momento antológico da civilização: “Assim, o que realizo, não o entendo; pois não é o que quero que pratico, mas o que eu odeio é (o) que faço”.

Terá sido para cumprir esse desígnio que Jesus o interpelou na estrada de Damasco? “Saulo, Saulo, por que me persegues? “Quem és, Senhor?”. “Jesus, a quem tu persegues. Levanta-te, entra na cidade e te dirão o que deves fazer” (Atos 9:5,6).

Sabemos que se deve à “Carta aos Romanos”, a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação (DCDJ), assinada entre a Federação Luterana Mundial e a Igreja Católica Romana em 31 de outubro de 1999, em Augsburgo, na Alemanha. Também foi a Carta o ponto de partida da Reforma Protestante: Lutero escreveu seu “Comentário aos Romanos”, em 1515, e aí já se encontram suas ideias sobre a justificação.

E Arendt nos mostra o percurso intelectual desse conceito no pensamento de Agostinho, tão importante para a filosofia cristã: “Sempre que alguém delibera, há uma alma flutuando entre verdades conflitantes”[6] (Confissões) assim como no de Nietsche e Kant, além de nos pôr a par de que o fenômeno da vontade era desconhecido na Antiguidade, “e que sua descoberta deve ter coincidido com a da liberdade enquanto questão filosófica, distinta de um fato político”.[7]

É difícil conceber o tamanho do impacto do conceito de vontade na história da civilização. Se não tínhamos “Vontade”, não tínhamos livre-arbítrio; sem ambos, como poderíamos ser condenados por algo, se tudo já estava previamente determinado?

Todos esses “Grandes Homens” disseram “não”, em algum momento da história. Esse “não” fez a diferença, seja no lado da Luz ou no lado das Trevas. Mas não somente os “Grades Homens”. Também há uma imensa quantidade de “Pequenos Homens” que ousaram dizer não, rompendo com as amarras que lhes tolhiam a liberdade de ousar, fazendo, então, a diferença.

E cá para nós, sabemos bem: somente é livre quem pode dizer não.


[1] CARLYLE, Thomas. Os Heróis. São Paulo: Melhoramentos. 1956. Pag. 9.

[2] BACHELARD, Gaston. O Novo Espírito Científico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1968. Pag. 15.

[3] NIETSCHE, Friedrich. O Anticristo. São Paulo: Martin Claret. 2015.

[4] MUSIL, Robert. O Homem sem Qualidades. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

[5] ARENDT, Hannah. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras. 2004. Pag. 183 e segs.

[6] Idem. Pag. 187.

[7] Ibidem. Págs. 183 e segs.