* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)
2.
Grandes
e pequenos homens
Quanto à história,
somente me interessa as ideias dos homens. Sem as ideias, não haveria história;
então, a história é, na verdade, aquela das ideias dos homens.
Claro que toda essa divagação nada mais é que uma forma oblíqua
de introduzir a discussão de uma ideia: a de que sempre houve, na história, alguma
percepção de que o percurso da humanidade somente pode ser compreendido se levarmos
em consideração que sua longa caminhada civilizatória não existiria sem seus heróis,
tampouco sem os bandidos. Não haveria o Bem, se não houvesse o Mal.
A noção da existência da luz e das trevas, e, em
decorrência, de heróis e bandidos, constituindo o caldo fundamental da história
do Homem, poderia, assim, ser considerada arquetípica, fazendo parte do
inconsciente coletivo da humanidade, tal qual lemos na obra de Carl Gustav
Jung, um dos maiores psicanalista de todos os tempos, fundador da Psicologia
Analítica.
É de se mencionar o interesse de Jung pelo esoterismo,
espiritualidade e artes ocultas, tão condenado por Freud, que temia comprometer a
credibilidade da Psicanálise.
Pois bem, o texto do capítulo anterior é uma alegoria, utilizada
para propor que, ao longo do tempo, não faltou quem defendesse ser a história
do Homem, no total, constituída pelas ideias e ações daqueles que, de uma forma
ou outra, enquanto Luz ou Trevas, heróis ou bandidos, embora nos limites que
suas circunstâncias históricas lhes permitiam, ao resolverem seguir em frente em
busca de concretizar seus objetivos imediatos ou a longo prazo, escreveram o
grande livro do processo civilizatório.
No que diz respeito aos “heróis”, respeitados Homero e
Hesíodo, Carlyle foi um dos principais ensaístas a defender diretamente o papel
fundamental por eles exercidos na construção da história. Deve-se, entretanto,
salientar que uma exegese atualizada do seu texto aponta para uma apreensão
desse termo em um sentido mais lato, englobando tanto aqueles que possam
merecer os elogios, quanto aqueles que mereceriam o opróbrio da humanidade[1]:
Porque,
como eu a considero, a história universal, a história daquilo que o homem tem
realizado neste mundo, é no fundo a história dos grandes homens que aqui têm
laborado. Eles foram os condutores de homens, estes grandes homens, os
modeladores, padrões e, em sentido amplo, criadores de tudo o que a massa geral
dos homens imaginou fazer ou atingir; todas as coisas que nós vemos efetuadas
no mundo são propriamente o resultado material externo, a realização prática e
a incorporação dos pensamentos que habitam nos grandes homens mandados ao
mundo: a alma de toda a história universal, pode justamente considerar-se,
seria a história destes.
Mais que à noção de “heróis” no sentido proposto por
Carlyle, é melhor estar atento aos que ele nomina de “condutores”, “modeladores”,
“padrões”, “criadores” de tudo quanto a massa geral dos homens imaginou fazer
ou atingir. São esses os “grandes homens”, sejam eles heróis ou bandidos.
É certo supor que esses “grandes homens”, o mais das vezes,
para não dizer todas, assim se tornaram na justa medida em que se colocaram
contra sua circunstância histórica, contra o “sistema” que os manietava?
Constituem eles uma longa lista de homens e mulheres
notáveis, que em certo momento nadaram contra a correnteza, e, de uma forma ou
outra, fizeram a diferença quando comparados aos seus contemporâneos? Uma longa
lista de homens e mulheres que ousaram romper com a tradição herdada e
circunstancial da qual eles eram herdeiros?
É possível que sim: no domínio da filosofia Gaston Bachelard
o percebeu no que diz respeito ao avanço do conhecimento científico, sempre por
ruptura com o que lhe era anterior, e coonestou, citando Nietsche: “tudo que é
decisivo somente nasce apesar de”[2].
A partir de Nietsche podemos extrapolar os limites do mero
avanço do conhecimento científico e compreender que que quem ousou fazer a
diferença o fez rompendo com sua circunstância; e quem ousou o fez dizendo
“não”:
Ao
contrário do que hoje em dia se pensa, a humanidade não apresenta uma evolução
rumo a algo melhor, mais forte ou mais elevado. O “progresso” é apenas uma
ideia moderna, isto é, uma ideia falsa. O europeu de hoje em dia tem muito
menos valor do que o europeu da Renascença; o processo de evolução não implica
necessariamente elevação, aprimoramento, fortalecimento.
É bem verdade que isso
acontece em casos isolados e únicos em várias partes da Terra e sob as mais
variadas culturas, nas quais certamente se manifesta um tipo superior;
tipo que, comparado ao restante da humanidade, aparece como uma espécie de
super-homem. Tais bem-sucedidos golpes de sorte sempre foram possíveis e
continuarão a ser talvez pelos tempos que virão. Até mesmo raças inteiras,
tribos e nações podem vir a apresentar, ocasionalmente, acidentes venturosos
como esses[3].
Roberto Musil
percebeu isso belamente:
Cada
coisa só existe por virtude de suas limitações; em outras palavras, por virtude
de um ato mais ou menos hostil contra seu ambiente: sem o papa não haveria
Lutero, e sem os pagãos não haveria o papa, portanto não se pode negar que a
associação mais profunda dos homens com seus semelhantes consiste na
dissociação deles”[4]
É o caso de Jesus, apesar de Roma. De Einstein, apesar de
Newton. De Galileu, apesar da Igreja Católica. De São Paulo, apesar do desconhecimento
filosófico acerca do que fosse a ideia de “Vontade”. De tantos outros...
A São Paulo devemos a descoberta da noção de “Vontade”,
provavelmente concomitante àquela da liberdade. Seu texto fundante, nesse
aspecto, foi a Carta aos Romanos (7, 18-24). Até então, supúnhamos que o Homem
não tivesse livre-arbítrio, categoria filosófica pensada e trabalhada por Santo
Agostinho, a partir de São Paulo.
Hannah Arendt nos encaminhou, em Responsabilidade e
Julgamento, à noção de que devemos a São Paulo, a ideia de “Vontade”. São Paulo
foi crucial para a construção da doutrina da Igreja Católica, o verdadeiro
fundador da filosofia cristã, com sua “Carta aos Romanos”[5].
Lê-se, em Romanos, esse momento antológico da civilização:
“Assim, o que realizo, não o entendo; pois não é o que quero que pratico, mas o
que eu odeio é (o) que faço”.
Terá sido para cumprir esse desígnio que Jesus o interpelou
na estrada de Damasco? “Saulo, Saulo, por que me persegues? “Quem és, Senhor?”.
“Jesus, a quem tu persegues. Levanta-te, entra na cidade e te dirão o que deves
fazer” (Atos 9:5,6).
Sabemos que se deve à “Carta aos Romanos”, a Declaração
Conjunta sobre a Doutrina da Justificação (DCDJ), assinada entre a Federação
Luterana Mundial e a Igreja Católica Romana em 31 de outubro de 1999, em
Augsburgo, na Alemanha. Também foi a Carta o ponto de partida da Reforma
Protestante: Lutero escreveu seu “Comentário aos Romanos”, em 1515, e aí já se
encontram suas ideias sobre a justificação.
E Arendt nos mostra o percurso intelectual desse conceito no
pensamento de Agostinho, tão importante para a filosofia cristã: “Sempre que
alguém delibera, há uma alma flutuando entre verdades conflitantes”[6] (Confissões) assim
como no de Nietsche e Kant, além de nos pôr a par de que o fenômeno da vontade
era desconhecido na Antiguidade, “e que sua descoberta deve ter coincidido com
a da liberdade enquanto questão filosófica, distinta de um fato político”.[7]
É difícil conceber o tamanho do impacto do conceito de
vontade na história da civilização. Se não tínhamos “Vontade”, não tínhamos
livre-arbítrio; sem ambos, como poderíamos ser condenados por algo, se tudo já
estava previamente determinado?
Todos esses “Grandes Homens” disseram “não”, em algum
momento da história. Esse “não” fez a diferença, seja no lado da Luz ou no lado
das Trevas. Mas não somente os “Grades Homens”. Também há uma imensa quantidade
de “Pequenos Homens” que ousaram dizer não, rompendo com as amarras que lhes
tolhiam a liberdade de ousar, fazendo, então, a diferença.
E cá para nós, sabemos bem: somente é livre quem pode dizer não.
[1] CARLYLE, Thomas. Os Heróis. São Paulo: Melhoramentos. 1956.
Pag. 9.
[2]
BACHELARD, Gaston. O Novo
Espírito Científico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1968. Pag. 15.
[3] NIETSCHE, Friedrich. O
Anticristo. São Paulo: Martin Claret. 2015.
[4] MUSIL, Robert. O Homem sem
Qualidades. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.
[5] ARENDT, Hannah. Responsabilidade
e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras. 2004. Pag. 183 e segs.
[6] Idem. Pag. 187.
[7] Ibidem. Págs. 183 e segs.
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