* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)
“O caminho que sobe e o que
desce é o mesmo” (Heráclito de Éfeso, dito “O
Obscuro”).
"- Mas terá que aceitar isso – retrucou Woland, e o sorriso
irônico entortou sua boca. – Você mal apareceu no telhado e já disse bobagens,
e vou dizer onde elas residem: na sua entonação. Você pronunciou suas palavras
de tal maneira como se não reconhecesse as sombras, e muito menos a maldade. Não
seria muito trabalho de sua parte pensar na seguinte questão: o que faria a sua
bondade se não existisse a maldade, como seria a terra se dela sumissem as
sombras?” (Mikhail Bulgákov, O Mestre e Margarida).[1]
Quem, nos anos 70, gostava de
ler, possivelmente teve entre as mãos algum livro de Herman Hesse.
Talvez Sidarta, no qual
ele romanceou a vida de Gautama Buda, ou mesmo O Jogo das Contas de Vidro
e O Lobo da Estepe, os mais cultuados; quem sabe Demian; Gertrud;
Pequenas Histórias; Narciso e Goldmund, para mencionar os mais
conhecidos.
É possível que Demian
seja considerado um livro menor, assim como Gertrud, sua continuação.[2]
Na verdade, a crítica teceu e tece loas à O Jogo das Contas de Vidro e,
em menor escala, a O Lobo da Estepe, muito embora o mais famoso seja Sidarta.
Em Demian, Hesse nos
apresenta a um enigmático adolescente e sua mãe, mulher bela e misteriosa
iniciada em uma seita religiosa, o Cainismo, que fascinam Sinclair, colega dele
de escola e relator da história.
O Cainismo foi uma seita
gnóstica cristã do século II, considerada herética pela Igreja Católica, que
venerava Caim como filho de um espírito superior ao que teria engendrado seu
irmão Abel.
Quando essa questão aparece na
convivência entre Demian e Sinclair, aquele aponta, como ponto-de-partida para a
iniciação do amigo na doutrina, o conhecimento da vida de uma relação de
personagens significativos, embora condenados pela história oficial, começando por
Eva, depois Caim, irmão de Abel, cujo nome batiza a seita, bem como Judas
Iscariotes, dentre outros.
Sabe-se que o Cainismo foi
resgatado no século XIX da total obscuridade por Lord Byron, o cultuado e
maldito poeta romântico inglês, e hoje é possível que somente exista em obras
emboloradas de historiadores praticamente desconhecidos, a grande maioria ocupando
estantes empoeiradas no “Cemitério dos Livros Esquecidos” que fica em
Barcelona, do qual nos deu a conhecer Carlos Ruiz Zafón, em famosa tetralogia.
Voltando a Demian, a pergunta
que ele faz a Sinclair no processo de sua iniciação nos segredos da seita,
durante o transcorrer da trama, é se haveria Adão sem Eva; Abel sem Caim;
Jesus, sem Judas, e assim por diante. Evidentemente, a verdadeira pergunta,
implícita e fundamental, é se haveria a Luz, sem as Trevas.
Não é ousadia supor que o
Cainismo seja descendente do Zoroastrismo ou Mazdeísmo, a religião dominante no
Império Persa por volta do século VI a.C. até a invasão e dominação, no reinado de
Dario III, por Alexandre “O Grande”, rei macedônio.
O zoroastrismo professava uma
interpretação dualista do mundo, entendendo-o como governado pelas forças antagônicas
do Bem e do Mal. Existiria um deus supremo, criador de dois outros seres
poderosos que seriam extensões de sua própria natureza: Ormuzd (ou Ahura-Mazda,
ou ainda Oromasdes, segundo os gregos), a fonte de todo o Bem, e Ariman
(Arimanes), a fonte de todo o Mal, depois que se rebelou contra seu criador.
Os conflitos entre o Bem e o Mal
seriam constantes até o momento em que os adeptos de Ormuzd venceriam,
condenando Ariman e os que o seguiam às trevas eternas.
Tampouco é ousadia acreditar que
o Maniqueísmo seria parte dessa linhagem herética e gnóstica originada na Pérsia.
Muito tempo depois renascida no Império Romano (sécs. III d.C. e IV d.C.), sua
doutrina, plena de um dualismo
religioso sincretista, consistia em afirmar, também, a existência de um
conflito cósmico entre o reino da luz (o Bem) e o das sombras (o Mal), assim
como em localizar a matéria e a carne na escuridão.
Do Maniqueísmo foi
seguidor, por um bom tempo, ninguém mais, ninguém menos, que Santo Agostinho de
Hipona, Doutor da Igreja, talvez o mais importante pensador católico, autor da
“magnum opus” De civitate Dei (A Cidade de Deus), por quem Santa
Mônica, sua mãe, tanto rezou para o converter.
Avançando no tempo, mas ainda na
mesma linhagem, essa mesma percepção gnóstica, dualística, da realidade, constituiria
o cerne da doutrina do Catarismo, professado pelos Perfeitos, os quais a
Inquisição, no Século XIII, varreu da face da França, naquela que seria a
Primeira Cruzada da Igreja Católica, liderada por São Luis, o nono Rei da
França.
Questões como essa suscitaram debates
ardentes durante os famosos e esotéricos anos 60 e 70, quando se questionava o
modelo de vida que o capitalismo impunha ao mundo. Havia, então, um inebriante fascínio
pelo Oriente misterioso dos zoroastristas, cainitas, maniqueístas, iogues,
faquires, dervixes, sadhus, budistas, taoístas e seu estilo de vida, enquanto
contraponto à hegemonia da sociedade de consumo e do marxismo ocidental.
Não por outra razão ainda hoje
encontramos, em alguns nichos pulverizados que a internet tende a ressaltar, uma
preocupação esotérica com a vida que parece muito distante do feijão-com-arroz
cotidiano ao qual estamos acostumados.
Existem também espaços
diminutos, embora alvoroçados, no campo das ideias, resultantes de raízes
solidamente firmadas nessa tradição oriental, que se voltam para a tentativa de
explicar os fenômenos da antimatéria, física quântica, teoria do caos, em uma
perspectiva mais aberta, resvalando para a metafísica, menos atenta ao rigor
metodológico ortodoxo próprio da ciência.
Que o diga Fritjof Capra, famoso
físico teórico autor de O Tao da Física e O Ponto de Mutação.
Por fim, quanto a Herman Hesse, é
possível entender que em Demian e Gertrud, ele tratou
obliquamente, ao utilizar o Cainismo como pano de fundo da trama cujo epicentro
é a relação entre Demian, Sinclair e Gertrud, da origem e essência do Bem e do
Mal.
Mais: ao fazê-lo, trouxe para a
claridade, ou pelo menos tentou, a misteriosa seita que seus personagens professavam
e, para quem optou por se aprofundar na questão, os mistérios do Zoroastrismo, Maniqueísmo
e Catarismo.
Todas essas seitas conectadas pela crença na Realidade enquanto emanação de uma divindade única e suprema, e constituída pela existência concomitante e antagônicas do Bem e do Mal (a Luz e as Trevas), formando a unidade definitiva e primordial de todas as coisas.
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