quarta-feira, 24 de novembro de 2010

CANGAÇO: ENTRE O SABER HISTÓRICO E O CONHECIMENTO ESCOLAR


Lampião, Rei do Cangaço

Honório de Medeiros

Uma vez que o espírito deste Fórum diz respeito a como o cangaço, enquanto epifenômeno, se faz presente no diálogo entre essas duas instâncias de conhecimento produzido, qual seja o saber histórico e o escolar, apresento, desde já, minha opinião, esperando suscitar questionamentos, controvérsias e, porque não dizer, críticas.

Creio firmemente que é por intermédio da crítica que conhecemos. A crítica no sentido grego do termo, não em seu sentido vulgar. A crítica que pressupõe um conhecimento existente previamente adquirido, fragmentação das expectativas em relação à utilização desse conhecimento, elaboração de novas teorias explicativas que hão de ser submetidas a testes seja no grande palco da vida, seja na Academia, e, enquanto resultado, um novo conhecimento retificado que estará, por sua vez, à disposição de novas retificações, em um processo para o qual não se conhece fim.

Não por outra razão, ao defender esse primado metodológico, recordo sempre uma frase de Dom Hélder Câmara, hoje tão esquecido, mas tão presente no nosso imaginário de contestação à ditadura de 64, naqueles anos de chumbo: “Me enriqueces quando discordas de mim”. Como recordo, e cito também, e sempre, Gaston Bachelard, filósofo e poeta francês: “O conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão”. Que venha a crítica, pois, para que eu possa reformar as minhas ilusões.

Considero, portanto, para iniciarmos, que o diálogo entre os dois saberes, o não-institucional e o institucional, ou saber histórico e conhecimento escolar, acerca do epifenômeno do cangaço, ainda é incipiente, apesar da importância do tema.

Uma das causas pela qual o cangaço não é ampla e profundamente discutido nas salas-de-aula é a resistência da Academia, chamemos assim a instância oficial de produção do saber científico, a aceita-lo e trata-lo como algo além de folclore. Aqui, folclore assume a proporção de um conhecimento menor, mera conseqüência superficial de leis naturais sociológicas precisas e demarcadas – estas sim, importantes, tais quais, exemplificando, a luta de classes.

O viés folclórico com o qual o cangaço é percebido pelo saber oficial releva, em larga escala, sua insistente presença histórica na contínua autoconstrução da própria identidade sertaneja, reforçando uma Paidéia ancestral que, entretanto, aos poucos, oferece sinais de fadiga, quiçá resultante do processo de globalização ao qual estamos submetidos.

Essa autoconstrução de uma Paidéia, de um “espírito de época”, processo calcado em fatos sociais – em outra linguagem podemos dizer episódios, acontecimentos, sucedidos, que reforçam seus arquétipos fundantes e elaboram uma identidade social, esse suposto conhecimento menor, digamos assim para mantermos a linha de raciocínio, são todos do nosso conhecimento sertanejo: ressaltam sua valentia; asseveram códigos de honra ancestrais; apontam bestialidades e crueldades desmedidas; relatam histórias e estórias de vinganças entre clãs; dizem da intervenção da justiça divina em assuntos terrenais; contam acerca de aparições, assombrações e fantasmas; falam do exercício do poder via baraço e cutelo; lembram casos de amor, traição e perdição; cantam tempos passados e glórias perdidas; tudo seja por intermédio do cordel, seja pelo canto dos violeiros; seja pelas toadas, desafios e repentes; seja via beatos e rezadeiras; seja pelos contadores de “causos” em conversas alpendradas após o sol se por nessas “quebradas do mundaréu” sertanejo; e, também, claro, através de toda a produção literária produzida de forma canhestra, artesanal, porém sincera, por uma legião de pesquisadores dos “acontecidos” do cangaço, que ao longo do tempo, pacientemente, coletaram e mesmo sem rigor científico, nos legaram um imenso acervo de informações alusivas aos cangaceiros.

É a esse imenso acervo, sobre as quais devemos nos debruçar com reverência, mas criticamente, todo esse acervo constituindo, por si somente, embora marginal ou periférico ao que supostamente importaria à burocracia das instâncias de produção do conhecimento, qual seja a discussão das grandes leis naturais sociológica, como a luta de classes já citada, uma caudalosa oportunidade de estudo e compreensão do espírito de um povo e de uma época, que a Academia resiste, embora eu saliente as honrosas e particulares exceções de sempre.

Ressalvo, com ênfase, que a nossa discussão cuida do diálogo entre o saber histórico e o conhecimento escolar, no que diz respeito ao cangaço. Não se trata, portanto, de criticar toda a imensa, complexa e bela construção acerca do cangaço empreendida pelos cantadores de viola, cordelistas, contadores de estórias, xilogravuristas, e poetas, dentre outros. Não. Muito pelo contrário. Diz respeito ao afastamento de parte considerável da Academia de toda essa produção coletiva sobre a qual devemos nos debruçar até com reverência, para melhor entendermos os movimentos sociais sertanejos nordestinos.

Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Há muitos saberes, sabemos, e aquele acerca do qual estamos falando, torno a mencionar, diz respeito ao mundo da academia em relação ao cangaço e seu mundo, sua realidade, cultural ou física, sua “Paidéia”.

Penso em “Paidéia” no mesmo sentido que a ele atribui Werner Jaeger, quando se referiu ao “espírito” grego predominante nos séculos VIII a IV a.C. naquela Região geográfica fundamental para o nosso processo civilizatório. Penso em “espírito” da cultura sertaneja nordestina, e, assim, demarco o espaço territorial onde creio terem ocorrido os epifenômenos que, conectados entre si, quais sejam o coronelismo, o misticismo, a arte popular, e o cangaceirismo, constituem a face espiritual do nosso Sertão em certa e precisa dimensão histórica.

A resistência da Academia acontece, também, creio eu, na medida da fragilidade de parte, friso bem, de parcela da literatura acerca do cangaço no que diz respeito às pesquisas e as afirmações nela contidas. Entrevistas apressadas, cujas afirmações não são devidamente checadas; buscas superficiais, produzindo dados duvidosos; minudências desnecessárias; ausência de inter-relacionamentos entre fatos; conclusões forçadas e nitidamente reveladoras de simpatias ou ideologias; escritos mal cuidados, com redação questionável, editoração e impressão a desejar; tudo isso contribui, e muito, para o olhar de esguelha que o saber institucional dedica ao cangaço.

Saliento, entretanto, certa literatura produzida pelos autodenominados “pesquisadores do cangaço” dentre os quais me situo tangencialmente, vez que minhas buscas dizem respeito, propriamente, ao epifenômeno do coronelismo. É inegável sua importância enquanto acervo para a produção do conhecimento científico. Entendo que a “literatura do cangaço”, por si só, constitui uma imensa fonte para estudo acadêmico. Quantas vezes não pensei em unir meus estudos de Filosofia do Direito e Coronelismo por intermédio da análise da literatura do cangaço e a forma como, por exemplo, ela trata acerca da produção, interpretação e aplicação da norma jurídica no tempo dos coronéis? Não caberia, por exemplo, aos estudiosos com formação jurídica, enquanto pós-graduação, um estudo dos instrumentos de legitimação de decisões jurídicas, tal qual a manipulação do conceito de “justiça”, a concretizar o coronelismo?

Finalmente ouso afirmar que a distância da Academia em relação ao epifenômeno do cangaço decorre, muitas vezes, de auto-limitações impostas por instrumentais teóricos equivocados. Refiro-me à tradição – o termo é esse mesmo – funcionalista americana, de um lado, e marxista, do outro. Tradição à qual se opõem, por exemplo, Jacques Le Boff, em uma perspectiva, e Norbert Elias em outra. Tais limitações comprometem a construção de uma História dos Movimentos Sociais Nordestinos, ou mesmo uma História do Sertão Nordestino, muito mais apropriada que uma História do Rio Grande do Norte, esta a depender de critérios artificiais para sua existência, qual seja a criação jurídica de um Estado.

Temos, portanto, três vertentes que deságuam nessa “folclorização”, nessa “minimização”, nesse apequenamento do epifenômeno do cangaço, a suscitar seu tratamento menor, às vezes até mesmo sobranceiro, por parte das instâncias oficiais de produção do conhecimento científico. Uma delas é a forma como o tema se reproduz no mundo do saber popular; outra é como ele se reproduz por meio dos trabalhos de pesquisadores acerca do assunto; e, finalmente, outra é o próprio resultado do trabalho da comunidade científica.

Aqui, faço um interlúdio para exemplificar como ocorrem essas limitações: no primeiro exemplo apresento textos de cordel; no segundo, um texto de um “pesquisador” do cangaço; e, no terceiro, textos de integrantes da “Academia”.

Percebamos como o cordel descreve e, em o descrevendo, mitifica e folcloriza Lampião. O primeiro exemplo tem o seguinte título: “Encontro de Lampião com Kung Fu em Juazeiro do Norte”, seu autor é Abraão Batista, e está transcrito na “Antologia da Literatura do Cordel” de Sebastião Nunes Batista:

Lampião, todos conhecem

mas não sabem interpretar

só sabem falar mal dele

porque não quiseram indagar

a causa que ele abraçou

e o que o forçou a matar.



Se Lampião foi cangaceiro

foi que o forçaram a matar

ele era bom e justiceiro

antes de o incriminar

pois a justiça dos homens

as vezes não sabe julgar.



No entanto o meu assunto

o que agora vou descrever

é de Lampião, o cangaceiro

com Kung Fu do karatê

e se você não o conhece

vai agora o conhecer...

E prossegue.

Outro exemplo: este, um clássico do cordel, colhido da mesma obra, cuja autoria é de José Pacheco, e tem como título “A Chegada de Lampião no Inferno”:

Um cabra de Lampião

Por nome Pilão Deitado

Que morreu numa trincheira

Em certo tempo passado

Agora pelo sertão

Anda correndo visão

Fazendo mal-assombrado.



E foi quem trouxe a notícia

Que viu Lampião chegar

O inferno neste dia

Faltou pouco pra virar

Incendiou-se o mercado

Morreu tanto cão queimado

Que faz pena até contar.



Morreu a mãe de Canguinha

O pai de Forrobodó

Três netos de parafuso

Um cão chamado Cotó

Escapuliu Boca Ensossa

E uma moleca moça

Quase queimava o totó.



Morreram 10 negros velhos

Que não trabalhavam mais

E um cão chamado Tráz-cá

Vira-volta e Capataz

Tromba-Suja e Bigodeira

Um por nome de Goteira

Cunhado de Satanás.

Por fim outro clássico do cordel colhido da obra de Sebastião Nunes Batista, da autoria de Rodolfo Coelho Cavalcante, que tem o seguinte título: “A Chegada de Lampião no Céu”:

Chegando no gabinete

Do glorioso Jesus

Lampião foi escoltado

Disse o Varão da Cruz

Quem és tu filho perdido

Não estás arrependido

Mesmo no Reino da Luz?



Disse o bravo Virgulino

Senhor não fui culpado

Me tornei um cangaceiro

Porque me vi obrigado

Assassinaram meu pai

Minha mãe quase que vai

Inclusive eu coitado.

Observemos, agora, o texto de um pesquisador do cangaço, Fenelon Almeida, em seu livro “Jararaca: o cangaceiro que virou santo”, e como ele descreve Massilon, sem apontar suas fontes:

Benevides, ou Massilon Leite, natural do Rio Grande do Norte, era elemento bastante conhecido naquela Região. Suas raízes assentavam no distrito de Borges, município de União, no Ceará.

Essa informação, sem qualquer fundamento, é reproduzida em “Lampião e o estado maior do cangaço”, de Hilário Lucetti e Magérbio de Lucena, também sem que sejam citadas as fontes, razão pela qual acredito ter sido colhida em Fenelon Almeida:

Suas origens (os autores estão se referindo a Antônio Massilon Leite, o Benevides) assentavam na localidade de Borges, às margens do Rio Jaguaribe, entre os municípios de Russas e Jaguaruana, no Ceará.

Os mesmos autores, na mesma obra citada, dizem um pouco mais à frente, ainda sem citar a fonte:

Viajou depois para o sul do país (comentando o final da carreira de cangaceiro de Massilon), indo parar no Rio Grande do Sul, onde ingressou na Polícia Militar, terminando por aposentar-se como oficial da polícia daquela unidade da federação, provavelmente com nome diverso do que usava nos tempos do cangaço.

Em livro a ser lançado aqui em Mossoró, talvez em Setembro próximo, mostro qual o verdadeiro fim de Massilon, apresentando prova documental de sua morte.

Um último texto colhido de pesquisadores do cangaço é extraído do livro “Lampião o Cangaceiro e o Outro”, de Fernando Portela e Cláudio Bojunga. Começo por dizer que não entendi o título. Qual seu significado? Bom, o livro é iniciado com o seguinte parágrafo:

O capitão andava descuidado. Naquele Julho de 1938 começou a confundir o poder das rezas fortes com a constante necessidade de desconfiar de tudo e de todos. Quem sabe aceitara a lenda de que seu corpo era mesmo fechado quando bastava apalpá-lo sob a roupa espessa para contar os buracos de bala. Talvez se sentisse apenas cansado e vulnerável – o olho vazado lacrimejando um isolamento de mais de vinte anos. O fato é que nos últimos tempos o Capitão andava descuidado.

O que é isso? Literatura? História? A bem da verdade não parece ser nem uma, nem outra.

Quanto ao trabalho da Academia, vejamos um texto colhido na internet, da pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco Semira Adler VAINSENCHER, cujo título é Cangaço, disponível em: , atualizado em 2009, que começa com a seguinte afirmação: “O banditismo parece ser um fenômeno universal”. Pude colher, além desse truísmo criticável, algumas outras assertivas da autora, que submeto à platéia:

a) “Bandidos são indivíduos frios, calculistas, insensíveis à violência e à morte”;



b) “O monopólio da terra e o trabalho servil, heranças das capitanias hereditárias, sempre mantiveram o empobrecimento da população e impediram o desenvolvimento do Nordeste, apesar do empenho de Joaquim Nabuco e da abolição da escravatura”;

c) “O cangaço, o fanatismo religioso e o messianismo são episódios marcantes da guerra civil nordestina: representam alternativas através da qual a população regional pode retaliar os danos sofridos, garantir um lugar no céu, alimentar o seu espírito de aventura e/ou conseguir um dinheiro fácil”;

d) “Já naquela época, o cangaceiro Jesuíno

Brilhante (vulgo Cabeleira) atacou o Recife, mas foi preso e enforcado”;

e) “Em meio a crendices e superstições, os milagres - muitas vezes, resumidos a simples conselhos de higiene ou procedimentos diante da subnutrição - atraem grandes romarias para Juazeiro, ainda mais porque os seus conselhos são gratuitos”;

f) “Vale ressaltar que um fator decisivo para o extermínio do bando de Lampião é o uso da metralhadora, que os cangaceiros tentam comprar, mas não obtêm sucesso”.

Não fiquemos, entretanto, nesse único patamar. Ousemos mais. Peguemos, por exemplo, um clássico da historiografia do cangaço, qual seja “Guerreiros do Sol”, de Frederico Pernambucano de Mello, em sua segunda edição, e nos detenhamos no seu prefácio, assinado por Gilberto de Mello Kujawsky. Lá para as tantas Kujawsky afirma, ao se referir aos cangaceiros:

A dedicação integral às armas, quando levadas ao fanatismo, exige a misoginia, como garantia da invulnerabilidade do guerreiro. Na medida em que este se abandona à tentação da mulher, ou do sexo, ele “abre o corpo” e se expõe à virulência implacável do inimigo.

E prossegue:

No entanto, a analogia surpreendente e inesperada do homem do cangaço, modelado pela disciplina do sol, das armas e do ascetismo sexual, na tensão crispada e solitária do princípio masculino, essa analogia se revela é com a figura do guerreiro, tal como descrita pelo poeta-soldado japonês Yukio Mishima, no livro traduzido sob o título “Sol e Aço”. Sol e aço fazem o contexto do homem do cangaço e do samurai de Mishima.

E conclui:

A chave da analogia entre os “guerreiros do sol” e o samurai de Mishima está na radicalização unilateral do princípio masculino hermetizado em si mesmo como fonte invulnerável de energia épica, temperada pelo sol e aço.

Agora concluo eu: o prefaciador não entende da ética dos samurais, do Japão feudal, do “caminho do guerreiro”, expresso no “Haga-kuri”, da relação mística entre a aristocracia militar japonesa e o “dai-sho”, o culto da espada, típica do xintoísmo por eles professado, e, tampouco, de cangaceiros. Para a diferença ser mais claramente entendida, basta lembramos que os samurais eram aristocratas, enquanto os cangaceiros, com raras e honrosas exceções, representantes do proletariado, verdadeiros “outsiders”.

Esse tipo de “literatura”, que o próprio sertanejo chistosamente poderia definir como tendo muito osso e pouco tutano, compromete a construção de um saber rigoroso e consolida o aspecto “folclórico” do cangaceirismo. E, ao fazê-lo, por reproduzir um “modelo”, o insere no presente e no futuro, gerando dúvidas quanto à possibilidade de discutirmos os fenômenos sociais próprios do Sertão Nordestino em sua dimensão científica nas salas de aula.

Outro exemplo que é possível citar diz respeito à perspectiva marxista mecanicista encontrada em obras como “História do Cangaço”, de Maria Isaura Pereira de Queiróz. Lá para as tantas ela diz:

(...) não é possível admitir que o cangaço se configure como um movimento social.

Foi, realmente, uma resposta à miséria, o que se evidencia no fato de que desapareciam, quando a chegada das chuvas reinstalava o modo de vida habitual.

E nas conclusões da obra:

Se a falta de oportunidade de trabalho nas caatingas e fora delas pode explicar por que surgiram bandos independentes no início do século XX, perdurando por muitos anos, e igualmente por que se formaram as volantes, que eram tropas de polícia especialmente destinadas ao combate do cangaço, a mesma razão permite compreender por que, a partir de 1940, desapareceu inteiramente o cangaço independente, anulando também a necessidade de volantes que lhe dessem combates. A industrialização...

Ou seja, para a Autora o cangaço independente acabou em decorrência do surgimento da industrialização que suscitou o surgimento de mercado de trabalho...

Como superar esses obstáculos epistemológicos, que impedem um diálogo mais amplo e profundo entre o saber histórico e o conhecimento escolar, no que diz respeito ao epifenômeno do cangaço?

Como recuperar uma tradição de estudo desse Sertão que forneceu matéria-prima para a aquisição do vigor e personalidade do cinema nacional, tais quais DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL ou VIDAS SECAS, no dizer de Ariano Suassuna; que ambientou A BAGACEIRA, de José Américo de Almeida; PEDRA BONITA – CANGACEIROS, de José Lins do Rêgo; O SERTANEJO, de José de Alencar; DONA GUIDINHA DO POÇO, de Oliveira Paiva; LUZIA HOMEM, de Domingos Olympio; e OS SERTÕES, de Euclides da Cunha, ao qual o autor do ROMANCE DA PEDRA DO REINO, em ensaio acerca de SEM LEI E SEM REI, de Maximiniano Campos, um romance do cangaço, considera a maior obra surgida até agora na Literatura brasileira.

Antecipo a solução, para ser proativo, como está na moda: suscitando a crítica, ou seja, o debate, a discussão, o intercâmbio incessante de idéias. E como fazê-lo? Como criar e fortalecer meios por intermédio dos qual esse diálogo se expanda e frutifique?

Para a existência da crítica é necessário o fortalecimento das instituições de base, tal qual a Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC), a ANPUH-RN, o Grupo de Pesquisa em Ensino de História e Geografia, suas realizações, fóruns, congressos, encontros, painéis, seminários, cada vez mais freqüentemente e cada vez mais envolvendo a sociedade. Nesse aspecto, saúdo entusiasmado o viés deste encontro, que se consubstancia em uma discussão acerca da tensão entre o que se elabora em termos de saber no mundo lá fora e o que se elabora em termos de saber dentro dos muros das Escolas.

Fortaleçamos a Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço. Queiramos sua presença na Universidade e nas Escolas, como queiramos a Universidade e as Escolas na SBEC. Queiramos, cada vez mais, diálogos com outras instituições de base, ou seja, ONGs, Associações, Fundações, tudo com vistas à construção de metas comuns. Podemos sonhar em uma transformação, à médio e longo prazo, dessas instituições de base, junto com a Universidade, em uma REDE, uma malha aglutinadora e exportadora de conhecimento específico acerca do Sertão Nordestino. O Sertão de Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, Patativa do Assaré, Ercílio Pinheiro, Pe. Cícero, Luis Gonzaga, Ariano Suassuna, dos Coronéis, do construtor de Paulo Afonso, do ciclo do couro, da cana-de-açúcar e do algodão, do cangaço, do misticismo, das rebeliões, dos casos de honra, do repente, dos desafios, da xilogravura, do xaxado, e assim por diante.

Talvez pareça um sonho. É possível. Se assim o é, vamos mais longe ainda. Sonhemos sempre. E sonhemos grande. Um dia quiçá encontremos, em nossas elites, e no nosso povo, a consciência da importância da nossa história, a história do Sertão, mais especificamente, do nosso Sertão nordestino, desse Sertão que Euclides da Cunha, poeta e cientista, gênio da raça, ao descrever a epifania da chegada do inverno em suas terras ásperas, nos permite compreender sua beleza trágica. Ouçam:

Mas ao entardecer de uma tarde qualquer, de março, rápidas tardes sem crepúsculos, prestes afogadas na noite, as estrelas pela primeira vez cintilam vivamente.

Nuvens volumosas abarreiram ao longe os horizontes, recortando-os em relevos imponentes de montanhas negras.

Sobem vagarosamente; incham, bolhando em lentos e desmesurados rebojos, na altura; enquanto os ventos tumultuam nos plainos, sacudindo e retorcendo as galhadas.

Embruscado em minutos, o firmamento golpeia-se de relâmpagos precipites, sucessivos, sarjando fundamente a imprimidura negra da tormenta. Reboam ruidosamente as trovoadas fortes. As bátegas de chuva tombam, grossas, espaçadamente, sobre o chão, adunando-se logo em aguaceiro diluviano...

E ao tornar da travessia o viajante, pasmo, não vê mais o deserto.

Sobre o solo, que as amarílis atapetam, ressurge triunfalmente a flora tropical.

É uma mutação de apoteose.

Os mulungus rotundos, à borda das cacimbas cheias, estadeiam a púrpura das largas flores vermelhas, sem esperar pelas folhas; as caraíbas e baraúnas altas refrondescem à margem dos ribeirões refertos; ramalham, ressoantes, os marizeiros esgalhados, à passagem das virações suaves; assomam, vivazes, amortecendo as truncaduras das quebradas, as quixabeiras de folhas pequeninas e frutos que lembram contas de ônix; mais virentes, adensam-se os icozeiros pelas várzeas, sob o ondular festivo das copas dos ouricuris: ondeiam, móveis, avivando a paisagem, acamando-se nos plainos, arredondando as encontas, as moitas floridas dos alecrim-dos-tabuleiros, de caules finos e flexíveis; as umburanas perfumam os ares, filtrando-os nas frondes esfolhadas, e – dominando a revivescência geral – não já pela altura senão pelo gracioso porte, os umbuzeiros alevantam dois metros sobre o chão, irrandiantes em círculo, os galhos numerosos.

Muito obrigado, e viva o Sertão.

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