terça-feira, 29 de março de 2011

CRISE DO ESTADO OU CRISE NO ESTADO?


Honório de Medeiros

Há muito tempo falamos em crise do Estado no Brasil. Desde a República Velha, pelo menos. Poderíamos indagar: crise do Estado Burguês/Liberal brasileiro? Como a queda do muro de Berlim ainda está próxima os paradigmas marxistas, não os leninistas poderiam ser os instrumentos teóricos através dos quais analisaríamos esta atual circunstância histórica . Alguns marxistas, por exemplo, que ainda posam de leninistas, asseguram ser a América Latina o elo fraco do sistema internacional capitalista no momento, haja vista a presença fantasmagórica do populismo, conseqüência imediatas das contradições de classe tornadas agudas pelo neoliberalismo. Como ainda é avassaladora a presença do marxismo enquanto aparato intelectual para a descrição da realidade social, parece não haver mais espaço, no mundo acadêmico, para o pensamento de Freud e uma possível psicanálise com fulcro em uma “teoria do vínculo social”, nem para uma “teoria do campo social” de cunho darwinista que o substitua ou complemente.



Do ponto de vista exclusivamente jurídico a carência é ainda maior, visto não ser mais possível aceitar a herança jusnaturalista, fundamentada em uma teoria das fontes do Direito de conteúdo exclusivamente metafísico, enquanto base para uma análise sócio-política do fenômeno estatal. Também não é possível aceitar o formalismo kelseniano por que associado ao positivismo exacerbado e estreito típico dos modelos lógicos aos quais Goëdel demonstrou não poderem obter coerência a partir de si mesmo. Há algo tão metafísico quanto a norma hipotética fundamental? Carece o positivismo, evidentemente, de um conteúdo explicativo próprio das grandes sínteses ontológicas. Seria Marx ainda hegemônico, mesmo que por exclusão?

Marx nos disse, através dos seus intérpretes, que o Estado nada mais seria que um instrumento de opressão de uma classe sobre outra. Uma superestrutura ideológica resultante das relações de produção específicas de uma circunstância histórica. Poderíamos dizer, então, que essa crise pelo qual supostamente passa o Estado Brasileiro seria típica do acirramento de uma luta de classes, das contradições inerentes ao sistema capitalista, algo tão antigo, no Brasil, quanto sua descoberta por Pedro Álvares Cabral?



Mas caiu o Muro de Berlim e com ele a hegemonia do pensamento marxista como paradigma para as ciências sociais. É bem possível que as suposições quanto a essa queda tenham sido grandes demais. Talvez muito de seu pensamento efetivamente não tenha perdido a consistência teórico/empírica. Penso, principalmente, no Marx sociólogo para distanciá-lo do Marx filósofo. Penso em Friedrich Engels. Penso em paradigmas epistemológico-sociológicos e percebo a presença de Marx e de todo um conjunto de alavancas intelectuais que sobreviveram à queda do Muro de Berlim e ao seu ostracismo intelectual. E muito embora Marx não tenha escrito uma teoria do Estado pronta e acabada, encontro um interessante paralelo entre sua concepção de Estado enquanto resultante da luta de classes, divisão social do trabalho e relações de produção, nessa ordem, e uma possível teoria do Estado a partir das relações de domínio em uma perspectiva darwiniana. Muito embora seja inaceitável, hoje, até mesmo do ponto de vista lógico, o primado de a infra-estrutura material originar a superestrutura ideológica -algo que em lógica é denominado “falácia naturalista” e já identificada por Henri Poincaré - o “insight” básico do Estado enquanto cristalização de forças em conflito, pelo Poder, em última instância é compatível com os paradigmas de um certo tipo de darwinismo. Ou seja, para apreendermos uma noção de Estado que não esteja contaminada pela “antropoformização” – a tendência de considerá-lo agente e não ambiente ou espaço (“topos”) - é plenamente satisfatório recorrer ao marxismo e sua noção, dentre outras, de “aparelho” (na linguagem de Althusser e Poulantzas). Teremos, então que entender aparelho como elemento de um conjunto sistemático desse tipo de estrutura burocrática instaurada por relações de poder que constituem o Estado. Portanto o aparelho judiciário, o governamental, o legislativo, e assim por diante, nada mais são que aparelhos do Estado, ou, em última instância, cristalizações de relações de domínio.



Penso agora em darwinismo por que de todas as grandes sínteses fornecedoras de paradigmas para uma ciência social ele foi o único que sobreviveu à virada do século. Penso em darwinismo por que é impossível compreender qualquer epifenômeno social atual fora de uma perspectiva jusnaturalista, positivista, ou funcionalista sem que para ele recorramos em busca de referencias teóricas que resistam, pelo seu próprio conteúdo, às críticas implacáveis do mundo acadêmico. E penso em darwinismo por que algumas de suas contribuições, aquelas que não estão sendo deturpadas e saturando de leviandade e misticismo a discussão acadêmica – em um interessante paralelo com a física quântica - podem ser bastante úteis na tentativa de explicar nosso mundo social.



Pois bem, para certo darwinismo a idéia de Estado é que este seja uma resposta, uma estratégia adaptativa de sobrevivência para segmentos da espécie humana, ou para coalizão de genes, engendrada a partir das relações de domínio existentes em uma circunstância histórica. Que o Direito seja resultante dessas relações de domínio até mesmo o cauteloso Bobbio assevera. Assim como Pierre Bourdieu. Nicos Poulantzas. Trasímaco da Calcedônia, para começo de assunto. O marxismo diz o mesmo com outra linguagem. Que o Estado tenha surgido de atos de força, ou seja, do Poder, há uma tradição nesse sentido que começa com Platão, passa por Renan, Nietsche, Kautsky, os marxistas, de uma forma geral, Popper, e chega aos nossos dias. Devo observar que esse tipo de conjectura, ou melhor, de teoria do conhecimento, não nos permite construir visões de como será o futuro. Embora possamos encontrar leis gerais explicativas, sempre esbarramos no óbvio: pode haver leis ainda mais gerais, ainda não descobertas, que englobem a anterior e apontem para rumos desconhecidos. Dizendo de forma simples: é impossível a predição. Mesmo que o sol nasça todo dia, talvez não nasça amanhã. É apenas provável que nasça amanhã. Ou melhor: há uma propensão quanto ao seu nascimento amanhã.



Mas essa teoria permite que expliquemos o passado e nossa explicação resista às críticas. Então talvez possamos compreender como surge o Estado, e com qual papel, a partir de um dos corolários da teoria da evolução. A evolução – não no sentido moral – vai do mais simples para o mais complexo. Se visualizarmos a árvore do conhecimento compreenderemos essa afirmação. Imaginemos, por exemplo, a evolução da matemática, desde a aritmética ao cálculo de tensores hiperespaciais. Ou da música. Ou do Direito. Ou da norma jurídica, mais especificamente: concreta e pessoal por que casuísta, antes da formação do Estado, para geral e abstrata, hoje, típica de uma necessidade política complexa. Ou as normas jurídicas das sociedades mecânicas para as normas jurídicas das sociedades orgânicas, como diz Durkheim. Esse corolário, aliado à contribuição de Herbert Spencer acerca da diferenciação e especialização das espécies da qual Popper fez uso em sua teoria do conhecimento é um rico manancial para analisarmos se realmente há uma crise do Estado ou se essa crise é aparentemente fabricada.



Uma conseqüência óbvia da utilização desses paradigmas é identificar estratégias adaptativas: Marx, Darwin e até mesmo a moderna Sociologia, com Pierre Boudieu e a categoria filosófica do Poder Simbólico ajudam a compreender a possibilidade de que a idéia de “Crise do Estado” seja uma manipulação, algo próprio do jogo do Poder Político. Eles ajudam a compreender a “função de ocultação” que um conceito como o de Estado veiculado pela mídia possui. Não precisamos ir muito longe. Basta nos lembrarmos dos EUA fabricando a crise do Iraque para ocupar, estrategicamente, suas reservas de petróleo. Basta nos lembrarmos dos EUA fabricando a crise com o Irã para continuar detendo a hegemonia nuclear na Terra. O modelo é simples: cria-se um inimigo estratégico potencial e abstrato (hoje é o terrorismo, ontem foi o comunismo, antes de ontem foi a heresia, para a Inquisição); cria-se uma crise; mobiliza-se e manipula-se a sociedade através da mídia ; e arranca-se das mesmas vítimas de sempre o ônus da luta (tributos, vidas).



Do ponto de vista concreto a lógica do Poder Político fabrica consensos e gera crises. O Consenso de Washington, um conjunto de propostas teóricas acerca de como deve ser a gestão da economia mundial legitima e impõe uma crise ao Brasil que não é do Estado, vez que os aparelhos estatais continuam funcionando normalmente. Uma das faces da crise imposta ao Brasil é a determinação do superávit primário como meta “de Estado”, não de Governo. E essa determinação nos é imposta sob a ameaça da fuga do capital estrangeiro que está a financiar nossa execução orçamentária. Dinheiro para o superávit financeiro é escassez para infra-estrutura. Para a saúde. Para a educação. Para a segurança pública. Uma crise imposta ao Brasil foi aquela referente à necessidade de despejar dinheiro público no saneamento de bancos privados em “débâcle” financeira por má gestão, no governo Fernando Henrique. A mídia – o chamado “clero secular” para lembrar a expressão de Isaiah Berlin – trabalhou muito e bem, financiada com nosso dinheiro, para que ficássemos apavorados com a possibilidade de todo nosso sistema financeiro ruir por terra e, qual um castelo de cartas, em decorrência, a razoável vida que nós, da classe média, levávamos. O “clero secular”, por ignorância ou má-fé, exerce um papel fundamental nesse processo de gerar crises: não por outra razão setores avançados das elites acreditam piamente que haja um déficit previdenciário. E a idéia de acabar com esse déficit é “vendida” como uma política de Estado. Idéia tão manipulável politicamente que nosso Presidente, no início de 2007, dela abdicou em busca de dividendos eleitorais. Não sabe o “clero secular” que o Governo coloca sob essa denominação não apenas o pagamento das aposentadorias, mas, também, programas de inclusão social efetivados através do colossal repasse de dinheiro arrancado da classe média para, dentre outros, a aposentadoria rural. Não sabe ou não quer saber. Entendida dessa forma não há previdência pública que funcione. Lembro, aqui, que a criação da contribuição previdenciária do aposentado contou com a participação decisiva do Supremo Tribunal Federal flexibilizando o conceito de “direito adquirido”. Lembro, também, que dias antes da votação no Supremo Tribunal Federal um ainda não ministro expedira um parecer condenando veementemente essa flexibilização, o que não o impediu de, uma vez ministro, mudar rapidamente de idéia. Práticas típicas de segmentos da elite assegurando a perpetuação do “status quo”.



A lógica do poder político pode ser tudo, menos burra. Pensemos acerca da atual greve dos bancários (2006). Pensemos naquilo que os bancários reivindicam. Percebamos o que os banqueiros oferecem. Vejamos o lucro estratosférico dos banqueiros. Entendamos por que os banqueiros não podem ceder: é a teoria do dominó, cedendo um, não há quem segure os outros que estão na fila lutando por melhoria salarial. Não ceder, ou ceder de forma ínfima, é uma barreira de contenção. Outra conseqüência do “Consenso de Wanshington” é a expropriação lenta, contínua e determinada da força de trabalho do servidor público, que é a parcela mais representativa da classe média: há uma expropriação direta, através da cobrança do imposto de renda, e há várias indiretas, dentre elas os cortes de vantagens. E há uma terceira expropriação: o aumento do custo de vida, que certamente não afeta a parcela da elite que repassa o ônus para os menos favorecidos, e a inflação. Esse achatamento remuneratório, digamos assim, engendra corrupção e desídia. Em uma escala muito mais ampla e perigosa, amordaça a classe média por que a amedronta com o fantasma da impossibilidade de manutenção do seu estilo de vida. É incalculável a dor de um pai típico da classe média que é obrigado a tirar o filho de um colégio particular para colocá-lo em uma escola pública. Percebamos a distorção.



Percebamos, também, a distorção que é o chamado contingenciamento orçamentário. Contigencia-se o orçamento para manipulá-lo. A possibilidade do contingenciamento torna inútil toda a discussão política que origina o orçamento. O que é contingenciado? O dinheiro para as políticas públicas por que estas são lentas e longas, atravessam governos. E o Poder Inconseqüente quer o agora, o imediato. Quer obras, às vezes não tão necessárias, mas para as quais há a demanda de setores específicos e poderosos da elite. Mas não quer um programa para a erradicação da mortalidade infantil por que implica em um longo e lento período de execução. Não quer um investimento consistente na educação por que o retorno não é eleitorável em curto prazo.



Observemos que tudo quanto foi mencionado é decisão política: manipulação do conceito de Estado, criação de inimigos fictícios do Estado, flexibilização de uma cláusula pétrea da Constituição Federal, criação da contribuição previdenciária, necessidade de pagar o superávit fiscal, contingenciamento orçamentário. Decisão de quem detém o Poder Político. Decisão de quem não assume o ônus da decisão e o transfere para essa entidade hipostasiada, abstrata, fictícia, chamada Estado. Decisão de Governo. Por que de concreto há, como nos mostram a ciência, relações de domínio, relações de Poder.



Então é preciso olhar com um olhar crítico essa idéia de “Crise do Estado”. É preciso perceber a função de ocultamento que o termo Estado possui conforme lidamos com ele hoje. Dizemos “Política de Estado” quando deveríamos dizer “Política de Governo”. Por que não podemos nem devemos aceitar que os detentores do Poder usem os aparelhos do Estado como escudo abstrato para ocultar sua manipulação. “Não sou eu, é a lei.” “Cumpro meu dever”. “Obedeço a ordens”. Essas expressões são tão mais perigosas por que isentam seus protagonistas da responsabilidade política que devem ter em relação ao que fazem com seus semelhantes. “Política de ou do Estado”: essa antropoformização dos aparelhos estatais torna impessoais as relações entre dominantes e dominados e permite ampliar e sofisticar os mecanismos de dominação. Óbvio que a grande maioria daqueles que exerce parcelas residuais de Poder não percebe o caráter de “correia-de-transmissão” que envolvem seus atos. Não percebem e virão a ser punidos mais na frente, por que são peças descartáveis, utilizáveis apenas enquanto aperfeiçoam o processo de expropriação que a configuração de poder existente instaura. E mais que em qualquer outro ambiente essa realidade se faz presente no campo jurídico.



É preciso também olhar criticamente as manobras diversionistas decorrentes dessa alienante manipulação: é muito comum encontrarmos em ambientes acadêmicos propostas de “aperfeiçoamento do Estado”. Todas as vezes que escuto essas propostas me lembro que antes os governos imperialistas esmagavam resistências com espadas, lanças e escudos, como o fez Roma; hoje o esmagamento é feito com armas muito mais aperfeiçoadas, como fuzis com mira a laser. O Estado aperfeiçoado é o Estado Orewelliano.


Dessa forma, parece claro que devemos aperfeiçoar a Democracia. É no campo político que são tomadas as decisões que impulsionam os aparelhos do Estado. É preciso crítica, vigilância, participação. É preciso um combate constante, profundo, amplo e disseminado ao autoritarismo. É preciso ampliar até o limite do impossível a inserção dos excluídos no processo político. Caso contrário continuaremos pagando o preço da nossa alienação: confundirmos o aparente com o essencial; o contingente, com o estrutural; o circunstancial com o definitivo.


É preciso crítica, vigilância e participação principalmente por que a tomada, por setores da elite, dos aparelhos do Estado pode engendrar tentações autoritárias: em recente episódio ocorrido (2006) no Norte do País, integrantes da cúpula do Tribunal de Contas, Assembléia Legislativa, Ministério Público, Poder Judiciário e Poder Executivo – uma quadrilha de aparelhos do Estado – foi flagrada em crimes que causaram e causam comoção e indignação, tentações autoritárias e críticas à democracia. Entender assim, entretanto, é um viés equivocado. Ao contrário do que se supõe, somente nas democracias é possível expor publicamente um tumor dessa natureza.



Para que esse processo de crítica, vigilância e participação se tornem efetivo é preciso que nós nos mobilizemos e combatamos aquilo que mudou para pior: a qualidade dos nossos atores políticos. Estamos pagando o preço da nossa omissão. Somos condescendentes. Somos omissos. Somos ignorantes. Não introjetamos a lição que Péricles nos legou através da Oração aos Mortos de Maratona, no sentido de construirmos uma “Paidéia”, uma “Cultura” de Democracia real, concreta, não formal, abstrata. Uma Democracia de inclusão social. Políticas Públicas da Sociedade, não do Estado.



Precisamos combater a manipulação de uma realidade que insiste em saltar ante nossos olhos: o Brasil que vivemos não é aquele que os detentores do Poder nos apresentam. Basta sairmos daqui agora e irmos a postos de saúde, escolas públicas e delegacias de polícia para constatarmos o que essa afirmação quer dizer. As modificações no aparelhamento do Estado são decisões políticas. São essas que devem ser modificadas. O “corpus” político deve configurar o Estado que é sempre autoritário e o colocar a reboque da Sociedade para que a tradição de Democracia enquanto valor seja preservada. Não há crise do Estado; há crise no Estado.

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