Havia uma única e pequenina flor lilás no nicho de cimento no qual algumas poucas plantas ressecadas resistiam bravamente à secura daquele começo de dezembro.
Bárbara desceu da cadeira onde a tínhamos colocado e enquanto se preparava para explorar os seus arredores, pediu nossa aprovação nos olhando com o silêncio próprio dos seus dois anos e pouco.
Em passos trôpegos se dirigiu para o canteiro. Parou. Fixou sua atenção na pequenina flor solitária e, em seguida, estendeu sua mãozinha gorducha. Não a pegou com a mão inteira como seria próprio em sua idade. Com o polegar e o indicador, cuidadosamente, segurou no talo que sustentava a flor e o puxou decidida.
Arrancou a flor na primeira tentativa. Manteve-a na mão e a contemplou durante algum tempo, provavelmente pensando no que fazer. Virou-se para nossa mesa. Olhou para mim, e, atenta ao meu olhar, veio em minha direção bamboleando e estendendo a flor numa oferta silenciosa, enquanto meu coração se apertava lentamente.
Essa flor, a pequenina flor lilás, eu, quanto a ela não tive dúvida: em frente ao local onde então trabalhava havia um mercado aberto de camelôs e, dentre eles, um operador de máquina de plastificação de documentos.
Procurei-o e lhe expus minha história e meu projeto: aprisioná-la entre duas páginas de plástico. Ele entendeu – eu poderia jurar que um ligeiro brilho clandestino formado por um misto de lembrança e saudade surgiu no canto dos seus olhos.
A flor foi depositada em cima de uma folha de plástico, recebeu outra por cobertura e a máquina, previamente aquecida, as comprimiu unindo-as para sempre.
Depois, foi só recortar e depositá-la, para que ficasse guardada, qual talismã, na minha carteira de documentos onde jaz, a primeira flor, lilás, que minha filha me deu de presente quando tinha dois anos e pouco de idade.
De lá para hoje, várias vezes me pego pensando acerca daquele momento mágico, o da oferta da flor. Tento reproduzir em detalhes toda a cena, desde o início até o final, quando então suspendi minha filha e a cobri de beijos.
Os detalhes vão ficando esmaecidos ao longo do tempo e os contornos dos objetos – a mesa, as cadeiras, o terraço, a face de minha esposa, a imagem de Bárbara – vão desaparecendo lentamente, e todo o processo de recordar vai sendo substituído, aos poucos, pelo desejo de compreender algo impossível: o quê se passava na cabecinha dela quando olhou para a flor, resolveu colhê-la e, em seguida, entregá-la a mim? Em que momento decidiu dar esse último passo? Por quê? Como uma criança de dois anos e pouco pode ter em seu ainda pouco povoado universo simbólico, a noção de que a oferta de uma flor é um gesto através do qual se externa um afeto?
Claro que dirão que estou imaginando coisas. Nada teria havido ali de especial. Seria tudo muito simples e fácil de explicar: trata-se de um gesto surgido de uma associação de ideias. Ela viu alguém fazendo isso e se lembrou de fazer o mesmo. Ora, meu Deus! Essas pessoas não creem. Veem tudo cinza. Acham que um arco-íris é tão-só gotículas de água atravessadas por um raio de sol. Percebem o mundo apenas através da lógica do senso comum.
São os homens-ocos, dos quais falou o poeta T. S. Elliot em Os Homens Ocos:
"Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou os pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada".
Por causa dessas mesmas pessoas eu mesmo poderia não acreditar, hoje, em anjos, mas sei que eles existem, existem sim, sou capaz de jurar, basta, para isso, contemplar minha pequenina flor lilás.
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