segunda-feira, 5 de novembro de 2012

SE NÃO FOSSE O ANEL



Honório de Medeiros
 
 
Como se encarnasse um sonho de adolescente, na terceira ou quarta volta em torno do salão onde casais dançavam ao ritmo das músicas daqueles loucos anos 70 ela me apareceu. 

Em um gesto instintivo levantei o copo de rum Montilla com coca-cola, como que oferecendo, enquanto a avaliava. Ali estava uma mulher bonita, muito bonita, pelo menos para o seu padrão: cabelos longos, crespos, cheios, displicentemente soltos e partidos ao meio, emoldurando um rosto oval perfeito no qual pontificavam um nariz diminuto acima de uma boca carmim/carnudo-vermelha e olhos sempre meio escondidos por longos e abundantes cílios; o corpo magro quase oculto por um daqueles vestidos longos, típicos da época, terminava nos tornozelos pousados em sandálias das quais saiam finas tiras de couro que subiam pernas acima. 

O copo foi aos lábios dela e sem trocarmos qualquer palavra nos dirigimos a um batente meio afastado que circundava a área onde ficavam as mesas. 

Então conversamos. Não sei se o primeiro beijo veio logo ou demorou. Não sei acerca do que falamos, mas o passado e o futuro se fizeram presente. Na ânsia de conhecê-la mergulhei meus olhos nos dela querendo alcançar os fatos e pensamentos mais remotos gravados em sua memória. A noite adquiriu contornos mágicos: seu perfume, discreto, suave, era único; o bulício longínquo da festa, um pano-de-fundo perfeito para os silêncios intermitentes; a música tocava em nós. 

Já no final, noite alta, ainda desatento ao fato de que a encontrara vagando sozinha, e que ela não fora procurada, até então, por quem quer que seja, enquanto a multidão se dispersava eu perguntei onde ela morava. Ela me disse, vagamente, que no Centro. E como iria para casa? Não houve resposta. Àquela hora somente havia táxi. Ou carona, já que carro era um luxo distante. 

Poderíamos ir a pé, eu propus, afinal não ficava tão distante, e as ruas e bairros seriam atravessados lentamente enquanto o sentimento nascente fluía mundo afora e saudava a manhã que chegava. Não ocorrera, ainda, a mim, quão estranho era a solidão que a cercava. Se eu não estivesse ali – era o caso de se pensar – ela teria ido sozinha, enfrentando a madrugada, para casa? 

Assim, fomos. Mãos dadas. Silêncios interrompidos por brincadeiras. E beijos. As ruas silenciosas por testemunha. A manhã possuindo a noite. Na altura do velho cinema ela parou e me disse que ali precisaríamos nos separar. Não era possível deixá-la em frente à sua casa. Não questionei. Minha relutância não a oprimiu. Beijei-a e lembrei-lhe o compromisso de me telefonar no momento que acordasse. 

Pegou o caminho da volta. Antes da esquina que a tiraria de meu ângulo de visão olhei para trás. Ela estava lá esperando esse gesto. Beijou a palma da mão, apontou-a para mim e soprou. E meu coração adolescente, feliz, exultou. 

Foi a última vez que a vi. 

Ao longo do dia, ao longo das horas, a espera foi interminável, opressiva. O toque do telefone fazia meu coração disparar. O livro, sequer folheado, jazia pousado no chão ao lado do sofá. 

Passaram-se os dias. Nada. Nenhum rastro. As pessoas que moravam no entorno do lugar onde eu a deixara talvez tenham estranhado meu vai-e-vem incessante, nos primeiros dias, quando ainda havia a esperança de encontrá-la saindo de algum lugar. Depois se acostumaram. Ninguém sabia de nada, ninguém a conhecia. 

Todo tipo de pergunta, a mim mesmo, foi feita. Não houve resposta. Nunca houve. Não haverá.
Poderia parecer algo sobrenatural não fosse, passados todos esses anos, aquela bijuteria – um anel – que teima em me deixar pensativo e um pouco melancólico quando o ponho na palma da mão, e o lenço – naquele tempo ainda se usava – no qual resiste ao tempo a lembrança de um perfume e o contorno impreciso de um beijo calcado a batom.

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