Honório de Medeiros
Como se encarnasse
um sonho de adolescente, na terceira ou quarta volta em torno do salão onde
casais dançavam ao ritmo das músicas daqueles loucos anos 70 ela me apareceu.
Em um gesto
instintivo levantei o copo de rum Montilla com coca-cola, como que oferecendo,
enquanto a avaliava. Ali estava uma mulher bonita, muito bonita, pelo menos
para o seu padrão: cabelos longos, crespos, cheios, displicentemente soltos e
partidos ao meio, emoldurando um rosto oval perfeito no qual pontificavam um
nariz diminuto acima de uma boca carmim/carnudo-vermelha e olhos sempre meio
escondidos por longos e abundantes cílios; o corpo magro quase oculto por um
daqueles vestidos longos, típicos da época, terminava nos tornozelos pousados
em sandálias das quais saiam finas tiras de couro que subiam pernas acima.
O copo foi aos
lábios dela e sem trocarmos qualquer palavra nos dirigimos a um batente meio
afastado que circundava a área onde ficavam as mesas.
Então conversamos.
Não sei se o primeiro beijo veio logo ou demorou. Não sei acerca do que falamos,
mas o passado e o futuro se fizeram presente. Na ânsia de conhecê-la mergulhei meus
olhos nos dela querendo alcançar os fatos e pensamentos mais remotos gravados
em sua memória. A noite adquiriu contornos mágicos: seu perfume, discreto,
suave, era único; o bulício longínquo da festa, um pano-de-fundo perfeito para
os silêncios intermitentes; a música tocava em nós.
Já no final, noite
alta, ainda desatento ao fato de que a encontrara vagando sozinha, e que ela não
fora procurada, até então, por quem quer que seja, enquanto a multidão se
dispersava eu perguntei onde ela morava. Ela me disse, vagamente, que no
Centro. E como iria para casa? Não houve resposta. Àquela hora somente havia
táxi. Ou carona, já que carro era um luxo distante.
Poderíamos ir a pé,
eu propus, afinal não ficava tão distante, e as ruas e bairros seriam
atravessados lentamente enquanto o sentimento nascente fluía mundo afora e
saudava a manhã que chegava. Não ocorrera, ainda, a mim, quão estranho era a
solidão que a cercava. Se eu não estivesse ali – era o caso de se pensar – ela
teria ido sozinha, enfrentando a madrugada, para casa?
Assim, fomos. Mãos
dadas. Silêncios interrompidos por brincadeiras. E beijos. As ruas silenciosas
por testemunha. A manhã possuindo a noite. Na altura do velho cinema ela parou
e me disse que ali precisaríamos nos separar. Não era possível deixá-la em
frente à sua casa. Não questionei. Minha relutância não a oprimiu. Beijei-a e
lembrei-lhe o compromisso de me telefonar no momento que acordasse.
Pegou o caminho da
volta. Antes da esquina que a tiraria de meu ângulo de visão olhei para trás.
Ela estava lá esperando esse gesto. Beijou a palma da mão, apontou-a para mim e
soprou. E meu coração adolescente, feliz, exultou.
Foi a última vez que a vi.
Ao longo do dia, ao
longo das horas, a espera foi interminável, opressiva. O toque do telefone
fazia meu coração disparar. O livro, sequer folheado, jazia pousado no chão ao
lado do sofá.
Passaram-se os
dias. Nada. Nenhum rastro. As pessoas que moravam no entorno do lugar onde eu a
deixara talvez tenham estranhado meu vai-e-vem incessante, nos primeiros dias,
quando ainda havia a esperança de encontrá-la saindo de algum lugar. Depois se
acostumaram. Ninguém sabia de nada, ninguém a conhecia.
Todo tipo de pergunta, a mim mesmo, foi feita. Não houve resposta. Nunca
houve. Não haverá.
Poderia parecer algo sobrenatural não fosse, passados todos esses anos,
aquela bijuteria – um anel – que teima em me deixar pensativo e um pouco
melancólico quando o ponho na palma da mão, e o lenço – naquele tempo ainda se
usava – no qual resiste ao tempo a lembrança de um perfume e o contorno
impreciso de um beijo calcado a batom.
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