* Honório de Medeiros
A memória do Coronel Isaías Arruda insiste em
vencer o tempo e a apatia geral do nordestino com sua história, e aos poucos o transforma em mito na cidade que tomou pelas armas e onde exerceu seu poder de
senhor feudal até que a morte viesse buscá-lo da mesma forma como viveu:
violentamente.
Continuei relatando para Antônio Gomes o resultado da viagem ao
Cariri.
“Estamos em Missão Velha”, disse-lhe. “Enquanto vagávamos no entorno da
pequena praça principal fomos abordados e depois apadrinhados por Esly Almeida
Melo, da velha aristocracia rural caririense e sua tradicional atenção
sertaneja".
"Seu Esly, aposentado, filhos criados e no mundo, descia ou subia em busca da Matriz –
depende do referencial – a pé, limpo, perfumado, barba feita, cabelos bem penteados acomodados na
brilhantina, bem vestido, ‘puxar um terço’."
"Simpático,
conversador, piadista, tornou-se nosso cicerone, historiador informal e foi o
maior responsável pela obtenção, quase milagrosa, através das mãos da
professora e escritora Célia Magalhães, de uma fotografia dos anos 20 onde o Coronel Isaías Arruda, ao lado de vários outros, todos de paletó claro, diferencia-se
pela altura, a trigueirice e o porte altivo."
"Ali estava aquele que foi,
juntamente com Massilon Leite, o responsável pela invasão de Mossoró por
Lampião".
"Célia Magalhães é bem jovem, foi
Secretária de Educação de Missão Velha e escreveu acerca dos ex-prefeitos da
cidade. Ela e seu Esly nos levam até a senhorial residência de Luís Jucá Arraes
Maia, primo do ex-governador de Pernambuco, já falecido, Miguel Arraes."
"Luis
Maia é considerado o “intelectual” de Missão Velha. Já quase não fala e anda, vítima de uma trombose."
"Mostra-nos sua coleção de selos e moedas antigas
avaliada, por baixo, em mais de seiscentos mil reais. Já foi procurado por
colecionadores do mundo inteiro".
"Enquanto ele se comunica precariamente com o
Professor Pereira, que nos acompanha desde Cajazeiras, tento invadir com meu olhar curioso os segredos daquela casa mais que centenária, cercada por
construções muito antigas – sobrados geminados com janelas avarandadas que se
abrem afastando-se cada banda para um lado, e separadas da rua por uma grade de
proteção de ferro batido ornamentada com flores-de-lis estilizadas."
"Nada consigo. O sertanejo abre todas as portas de sua casa aos estranhos bem
recomendados, mas conservam fechadas, a sete chaves, as portas de sua
intimidade."
"Mesmo assim posso compreender até fisicamente a dor da castelã
quando me fala que há mais de quarenta anos está desterrada ali, em Missão
Velha, longe de Fortaleza, da família, dos filhos que se foram, do bulício da cidade grande, do mar, de
tudo quanto ama, pois há o dever de ir, até o fim, no compromisso que assumiu
ao pé do altar."
"‘A pior fase’, disse-me ela, ‘foram os três anos que passei enterrada
no sítio.’"
"Como não compreender essa sensação que acomete aqueles condenados ao ritmo lento da cidade pequena – cinza vida cinza – que anseiam vivamente pela febril velocidade da cidade grande?"
"O verde do Cariri, um verde que se
destaca pelo imenso contraste com o semi-árido dos carrascais, poeira,
sol-a-pino, grotões que havíamos deixado um pouco antes..."
"A mansão feudal de
Isaías Arruda, lá passamos, na qual há, inclusive, sala-de-armas e passagem subterrânea. A
estação de trem, palco de tantos episódios históricos, similar a de Aurora, onde o Coronel Isaías tombou ferido de morte após levar, estranhamente sem reagir, embora estivesse armado, vários tiros
desfechados por inimigos políticos seus."
"O prédio da Prefeitura por ele
construída. A misteriosa história acontecida na casa onde hoje funciona a
Secretaria de Educação. Os escombros de um passado já longínquo, mas presente,
ainda recendendo a pólvora, sangue, baraço e cutelo da aristocracia rural
sertaneja firmada em um ancestral código de honra. Os ‘cabras’, os jagunços, os
cangaceiros. A Igreja legitimadora e terrena, também profana, com seus representantes
abençoadores de bastardos e assassinos, semeadores de filhos e ilusões,
testemunha engajada da vilania com a qual o povo, deserdado de clima, de poder,
de bondade, carrega consigo, como última esperança, o paraíso que lhe foi
prometido e do qual não se sabe se realmente lhe vai ser entregue.”
"O tempo passado e o tempo presente, confundidos na imagem que Missão Velha nos deixa na memória, quando lhe damos nosso adeus, e vamos em busca de outros fragmentos da história do Cariri, dos nordestinos sertanejos, dos homens, enfim".
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