quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

MEMÓRIA: RAFAEL NEGREIROS, O INDOMÁVEL


Rafael Negreiros ao lado de Ivonete Paula em evento na ACDP

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Alguns anos atrás, final dos anos oitenta, eu e Franklin Jorge resolvemos lançar um jornal em Pau dos Ferros que cobrisse, para o Estado, todo o Alto Oeste. Seria semanal e iria para as bancas aos sábados.

Foi algo insano, mas naquela época não tínhamos noção acerca da aventura na qual nos meteríamos, e a história da “Folha do Alto Oeste” um dia será contada, através de “perfis”, “sueltos” e “bicos-de-pena”, como somente Franklin Jorge sabe fazer.

O que importa, entretanto, é registrar que Rafael Negreiros foi nosso primeiro e mais importante colaborador e, já no terceiro ou quarto número criou, com a iconoclastia que o caracterizava, a figura do “ombudsman” jornalístico – que a Folha de São Paulo criaria algum tempo depois, se arrogando pioneira, sem saber que no Sertão do Rio Grande do Norte essa experiência já existira. 

Naquele artigo Rafael Negreiros desancou o jornal com tiradas tipicamente suas: ironias cortantes, entremeadas por observações pertinentes e oportunas acerca do exercício do jornalismo, em um artigo que ele enviou para publicação, divertindo-se com nosso possível constrangimento.

Publicamos, claro, e graças a ele fizemos história. 

Talvez tenha sido essa a única vez que mantive um contato mais estreito com ele, apesar de conhecê-lo desde menino. O final da minha infância e início da adolescência – os últimos anos nos quais morei em Mossoró – foi cheio do que chamávamos de “as histórias de Rafael”, casos que eram contados nas esquinas da província e nos deliciavam pelo espírito de rebeldia, sem que disso tivéssemos noção.

Víamos Rafael – pelo menos eu via – como alguém que tinha coragem de tomar posições. Para mim não importava que posições fossem essas, mas, sim, seu destemor com as quais as assumia e defendia, além do torrencial volume de erudição que envolvia cada escrito. 

Anos depois acompanhei, por intermédio de Fernando Negreiros, filho caçula e amigo meu de infância, seu distanciamento da turbulência que o caracterizava. O tempo, domador de homens, cumprira seu papel como sempre deslealmente, porque escolhera para cúmplice anões morais com os quais Rafael Negreiros se recusava a compartilhar a experiência de sorver a vida daquela forma tão sua e tão peculiar.

Era o fim de uma era de titãs em Mossoró. Homens símbolos. Os contemporâneos dos seus últimos dias – imberbes arrogantes e pragmáticos, desletrados e vazios – sequer sabiam, quando o conheciam, ou dele ouviam falar, com que graça esdrúxula, humor derruidor, inteligência aguda, Rafael desmontava as armadilhas da mediocridade cotidiana. 

E hoje, com raras e honrosas exceções, lembram-no por seu talento menor – o humor, a excentricidade – desconhecendo, lamentavelmente, que se a coragem de firmar opinião usando como veículo a iconoclastia tivesse nome, seria, com certeza, Rafael Negreiros.

Existe ainda uma outra faceta de Rafael que eu considero ímpar. Lembra um poema atribuído a Borges que depois soube-se não ser de sua autoria. 

No poema, em tom confessional, o autor ou a autora lamentava-se, olhando para o próprio passado e adivinhando a velhice que chegava a passos largos, não ter aproveitado um pouco mais da vida com coisas pueris. 

Aparentemente pueris, digo eu, como um banho de chuva, mar, quem sabe de rio ou açude, o cavaqueado com os amigos do peito, a piada pronta, o espírito zombeteiro, discussões literárias, gargalhadas... 

Não importa caro autor ou autora, Rafael Negreiros fez isso por você. 

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