terça-feira, 26 de janeiro de 2010

PATOS, ONDE HOUVE UMA LAGOA (1)



Patos, Paraíba

Saímos cedo de Pau dos Ferros no rumo de Patos, na Paraíba, em busca das raízes de Massilon. Lá chegamos ao meio-dia. Hospedamo-nos no Hotel Zurick. À noite perguntamos ao recepcionista por que esse nome. Com certo sarcasmo sertanejo ele nos disse: “o homem andou por lá e por certo achou esse nome bonito.” Franklin Jorge comenta: “se Cascudo tivesse estado aqui escreveria uma crônica com o seguinte título “Zurick em pleno Sertão paraibano; faria algo grandioso e o dono terminaria recebendo o título de cônsul honorário da Suíça”.
 
Fomo à Matriz. Prédio simples. Chegamos em plena missa das 16:00 horas. Rodeamos a Igreja cujos fundos dão para uma rua estreita, pequena. Olhávamos para uma porta, indecisos, quando um homem trigueiro, alto, encorpado, trinta e poucos anos, cabelo curtíssimo, vestido com uma camisa de mangas compridas abotoada nos pulsos se aproximou maciamente. Perguntei-lhe se ali era a Secretaria da Paróquia. Ele disse que não e nos apontou onde ficava. Perguntei-lhe se era padre. Confirmou com aqueles ademanes típicos, mas discretos, de seminarista, contidos por sua estrutura física maciça embora não desmesurada e nos entregou sua mão também macia para apertarmos. Padre Francisco foi gentil, delicado.
 
Na livraria da cidade perguntamos à vendedora pelas obras dos autores locais. Ela nos apontou, com certa displicência, um canto afastado de uma estante. Encontramos uma gramática em versos, que eu logo comprei, e livros e mais livros de um poeta local. Nada mais. Depois, fomos às ruas: vibrantes, febris, plenamente comerciais. Carros, motos, bicicletas... Pessoas vinham e iam rápidas, com aquele semblante típico de quem precisa chegar logo em algum lugar qualquer, para resolver algo. Não havia pedintes, nem pastoradores de carro, nem lavadores de pára-brisa, nem deficientes físicos. Havia somente uma louca, personagem folclórico, que me aborda na farmácia: “lindão, me dê um dinheiro”. Como não dar? “Ela dá sempre esse golpe em quem não é daqui” diz-me o caixa da farmácia. Raros são os passeantes. Os flâneurs. A maioria mulheres. As mulheres de Patos são belas, não bonitas. Há uma diferença entre ser bela e ser bonita. A mulher, quando é bela, desafia o tempo. Não pede emprestado à juventude aquilo já possui. Belas, as mulheres de Patos. Suavemente arredondadas, como um ideal rafaelita amoldado à realidade anoréxica dos tempos atuais. Altivas. Ou contidas. Ou dissimuladas. Pernas longas, levemente grossas, torneadas. Narizes afilados. Belos dentes. Compõem um contraste marcante com o bulício comercial suburbano que ocupa nossos olhos quando caminhamos pelas ruas da cidade. Não haveria ruas onde não se compra e não se vende? Aparentemente não. Em qualquer lugar há essa atividade febril, tipicamente burguesa, que pressupõe uma interação constante entre as pessoas e que se opõe à percepção do aparente distanciamento das belas mulheres de Patos.
 
“Por que Patos?”, pergunto a Virgílio Trindade, a quem seu primo homônimo Virgílio Trindade, comerciante no Mercado Central, a quem procuramos por indicação de um transeunte como sendo bastante antigo na praça, na tentativa de encontrar dois antigos amigos de meu pai, reputa como escritor. Recebeu-nos muito bem. Tem um programa político em uma rádio importante da cidade. Magro, moreno, careca, sentado por trás de um birô anacrônico em um escritório de um só vão no centro da cidade, nos deu, com uma voz característica de fumante e locutor, um seu livro de crônicas, “Relíquias”. Falou-nos do seu programa político: “é complicado”. “Por quê?” “A gente está falando com alguém ao telefone e no ar e ele grita: eu voto em Lula! Já pensou?”



segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

ESCREVER



Saint-Exupéry

“Porque não existem testemunhos, mas sim homens que testemunham. Não existem aventuras, mas aventureiros. Não existe leitura direta do real. O real é como um monte de tijolos que poderá tomar qualquer forma. Que importa se esse jornalista redigiu o seu livro e não apontou senão o concreto, se ele interveio, obrigatoriamente, entre o real e sua expressão? Ele escolheu os materiais – porque não contou tudo – e lhes impôs uma ordem. A sua ordem. Ao impor sua ordem a essa matéria em bruto, ele construiu o seu edifício. O que é verdade para fatos concretos também é verdade para as palavras” (“Um Sentido para a Vida”; Antoine de Saint-Exupéry).




"PADRE CÍCERO", DE LIRA NETO


parazinet.files.wordpress.com

Pe. Cícero

Concluída na madrugada do sábado, 23 de janeiro do corrente, a leitura de “Padre Cícero”, do escritor cearense Lira Neto, cujo subtítulo é “Poder, Fé e Guerra no Sertão”, Companhia das Letras - “um tijolo” - como diz Aluísio Lacerda, passo a recomendá-lo vivamente aos amigos leitores do blog.


Lira Neto foi, para mim, uma grande e agradável surpresa. Nascido em Fortaleza, Ceará, 1963, já abocanhou o Jabuti em 2007, na categoria “melhor biografia” por “O Inimigo do Rei: Uma Biografia de José de Alencar”. Também escreveu “Maysa: Só Numa Multidão de Amores”, e “Castello: A Marcha para a Ditadura”. Não os li, mas que prometem, prometem.


Duvido que os outros sejam tão bons quanto “Padre Cícero”. Tão bons quanto, assinalo.


Primeiro por que é muito bem escrito: a leitura é muito agradável, flui fácil, o texto é envolvente; segundo por que a reconstituição histórica, inclusive em termos fotográficos, é primorosa; e terceiro, mas, não, por fim, é impressionante a dimensão do personagem principal e daqueles “secundários”, como é o caso do Dr. Floro Bartolomeu, baiano, médico, garimpeiro, político, ferrabrás, a “alma negra” do Padre Cícero, ou mesmo da Beata Maria de Araújo, negra, analfabeta, protagonista do “milagre do Juazeiro”, que consistiu em cuspir hóstias transformadas em sangue, quando da Comunhão. A Beata, que até palmatoradas tomou do Vigário do Crato, e foi exilada durante anos de sua Juazeiro natal por ordem da Igreja, também entrava em êxtase e apresentava os estigmas de Cristo, ao mesmo tempo em que se banhava de sangue para logo depois “acordar” limpa e sem qualquer marca no corpo – fenômenos constatados por padres e médicos.


Mas há outros personagens menores sumamente interessantes: o que dizer do Conde Adolphe Achille van den Brule, ex-camareiro do Papa Leão XIII, companheiro e sócio de Floro Bartolomeu, que se apaixonou por uma Juazeirense e, mesmo sendo casado na Europa e lá tendo deixado dois filhos, casou-se novamente no Cariri, nele fincou raízes e nunca mais voltou?


Além dos personagens, alguns fatos históricos relatados na obra chamam a atenção, como a tomada do poder central, em Fortaleza, pelos coronéis do Cariri tendo, à frente, Floro Bartolomeu e um exército de cangaceiros, jagunços, romeiros e devotos de Padre Cícero, todos pelo “padim” abençoados? Revolta que derrubou, na ponta do fuzil, o Governador Franco Rabelo, amado pelos fortalezenses, e, de permeio, matou o nosso Capitão José da Penha, que com ele se solidarizara?


O livro deixa algumas interrogações no ar: qual o passado de Floro Bartolomeu e o fim do Conde van den Brule? Por outro lado demonstra, à exaustão, como a incompetência da Igreja Oficial, externada, principalmente, dentre outros, por intermédio do Segundo Bispo do Ceará Dom Joaquim José Vieira. Preconceito, racismo, intransigência, autoritarismo, alheamento, burrice, tudo isso serviu como combustível de primeira grandeza para alimentar o incêndio fanático no qual se transformou Padre Cícero.

E o quê dizer de Padre Cícero? Nada. É preciso ler o livro. Entretanto é possível ter uma noção de sua sabedoria tomando conhecimento de seu catecismo ecológico, vazado lá pelos idos da virada do século XIX para o XX, e distribuído com os agricultores:


“Não toquem fogo no roçado nem na caatinga; não cacem mais e deixem os bichos viverem; não criem o boi nem o bode soltos; façam cercados e deixem o pasto descansar para se refazer; não plantem em serra acima, nem façam roçado em ladeira muito em pé: deixem o mato protegendo a terra para que a água não a arraste e não se perca a sua riqueza; façam uma cisterna no oitão de sua casa para guardar água da chuva; represem os riachos de cem em cem metros, ainda que seja com pedra solta; plantem cada dia pelo menos um pé de algaroba, de caju, de sabiá ou outra árvore qualquer, até que o Sertão todo seja uma mata só; aprendam a tirar proveito das plantas da caatinga, como a maniçoba, a favela e a jurema; elas podem ajudar vocês a conviverem com a seca. Se o sertanejo obedecer a estes preceitos, a seca vai aos poucos se acabando, o gado melhorando e o povo terá sempre o que comer; mas, se não obedecer, dentro de pouco tempo o Sertão vai virar um deserto só.”


Enfim, uma grande obra. Para ser lida ou para ser estudada. Ou ambas, nada impede.

domingo, 24 de janeiro de 2010

O JUDICIÁRIO NÃO EXORBITA!



Deu no Estado de São Paulo:
O Judiciário não exorbita (Editorial).

"Primeiro foi o juiz Álvaro Ciardini, da 2ª Vara da Fazenda Pública do Distrito Federal, que, em liminar concedida numa ação popular, afastou da presidência da Câmara Distrital de Brasília o deputado Leonardo Prudente - aquele que escondeu nas meias o dinheiro do "mensalão do DEM".

Em seguida foi o juiz Vinicius Santos, da 7ª Vara da Fazenda do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que determinou que os oito deputados distritais envolvidos no escândalo não poderão votar matérias que se refiram aos pedidos de impeachment do governador José Roberto Arruda.

No despacho o magistrado lembrou aquilo que os deputados não poderiam ter esquecido: "A ninguém é dado o direito de ser juiz da própria causa." E foi além: "A participação de alguém em investigação, em procedimento, onde se apuram fatos relacionados à sua pessoa fere as mais elementares regras da razão. É atentado frontal à razoabilidade, moralidade e impessoalidade, previstos pela Constituição da República."
 
Com isso, o juiz quebrou a cadeia de solidariedade que tem garantido a impunidade de políticos submetidos a Conselhos de Ética e Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), de onde saem absolvidos - frequentemente depois de terem reduzido a pó o decoro - porque são julgados por aliados e íntimos amigos - quando não por eles próprios, como pretendiam fazer deputados distritais de Brasília.

Mas não se pode deixar de observar que foi com muita esperteza que a base aliada do governador José Roberto Arruda aproveitou o despacho do juiz Vinicius Santos para acabar com a CPI da Corrupção na Câmara Distrital.

Seu presidente, o deputado Alírio Neto - não por coincidência, ex-secretário do governador Arruda -, argumentou que o juiz determinara o "reconhecimento da invalidade de todo ato deliberativo já praticado, no qual houve a interferência direta e cômputo do voto dos deputados ora afastados" e extinguiu a CPI, além de considerar nula a composição da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e os atos por ela praticados.

Com isso os aliados de Arruda tentaram retardar o processo de impeachment, pois, anulada a formação da CCJ, o prazo de 20 dias para a apresentação do relatório dos pedidos de impeachment, que acaba na terça-feira, teria de ser reaberto.

Além disso, seria adiado o depoimento do ex-secretário de Relações Institucionais do governador José Roberto Arruda, Durval Barbosa, que, beneficiado por delação premiada, entregou às autoridades as gravações que mostram políticos brasilienses recebendo dinheiro vivo do suposto "propinoduto" exposto pela Operação Caixa de Pandora, da Polícia Federal.

Nesse depoimento, como Barbosa confidenciara a advogados, seriam feitas novas revelações e, provavelmente, exibidas provas gravadas de outras falcatruas perpetradas no esquema do mensalão.

De certo, não contavam os aliados do governador com nova e pronta decisão do juiz Vinicius Santos que, em despacho, esclareceu que a decisão de quarta-feira se referia única e exclusivamente ao processo de impeachment na Comissão de Justiça e na Comissão Especial. Com isso, desarmou a artimanha dos mensaleiros.

O fato é que a Justiça está dando à Câmara Distrital de Brasília o tratamento profilático que deveria estar sendo aplicado pelos deputados que não foram contaminados pela corrupção. É o Poder Judiciário intervindo - legitimamente - para restabelecer o equilíbrio no exercício de outro Poder.

Ultimamente, têm sido frequentes as críticas - às vezes indignadas - de parlamentares e governantes ao Poder Judiciário, quando este interfere em atos legislativos ou determina a perda de mandatos, geralmente por desrespeito comprovado à legislação eleitoral.

Tem-se alegado, nesses casos, a quebra do princípio da separação e independência dos Poderes de Estado. O que os críticos não consideram é que há contrapesos para garantir ou restabelecer, quando necessário, o equilíbrio do sistema.
Assim, não se admite que agentes de um Poder transformem prerrogativas em privilégios ou que usem em causa própria - e ilegítima - as regras do ordenamento jurídico, em detrimento dos princípios de moralidade contidos no Direito positivo.

É por isso que essas interferências do Poder Judiciário no comportamento dos integrantes das Casas Legislativas não significam exorbitância alguma. Antes, fazem parte do sistema imunológico do sistema democrático."


CORPO DE EDITH, RAINHA SAXÃ, VAI PARA CASA


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Edith, Rainha Saxã

"Após mais de um milênio, corpo de Edith, ancestral da realeza europeia, vai para casa"

Publicada em 21/01/2010 às 08h47m, O Globo:

"Edith, uma rainha tão bela e popular que seria uma espécie de Princesa Diana da Idade Média, finalmente voltará para casa, mais de um milênio após sua morte. O corpo que se acredita ser da rainha - Eadgyth era o seu nome saxão - foi identificado numa cripta da Catedral de Magdeburgo, na Alemanha, e será enviado para Inglaterra, onde testes confirmarão que se trata mesmo da irmã de Atelstan, o primeiro rei da Inglaterra unificada; e da esposa do saxão Otto I, o primeiro imperador do Sacro Império Romano-Germânico.

Casamento marcou aliança histórica: enviada como um presente diplomático pelo irmão para Otto, Edith se tornou popular na terra do marido, com quem teve duas filhas. Ela morreu em 946 e arqueólogos disseram que o corpo é o mais antigo de um membro da realizada britânica. Edith é ancestral de praticamente todos os membros de famílias reais europeias. Os descendentes de Edith e Otto governaram o que hoje compõe boa parte do território da Alemanha até 1254.

Neta de outro rei poderoso, Alfredo, o Grande, Edith foi enviada para Otto por Atelstan junto com Adiva, sua outra irmã. Otto poderia escolher a princesa que mais lhe agradasse. Ficou com Edith e despachou Adiva de volta - esta acabou se casando com outro rei, cujo nome se perdeu na História. A Universidade de Bristol recebeu e analisará o corpo, envolvido em seda e dentro de sarcófago de pedra descrito como magnífico."

UMA INFELIZ E DESASTRADA DECISÃO

Deu na IstoÉ desta semana (27/01/10):

“UMA INFELIZ E DESASTRADA DECISÃO

Um tribunal de Buenos Aires determinou que ‘não é crime de ódio racial’ alguém dirigir-se a um judeu e dizer: ‘Adolf Hitler deveria ter matado todos vocês’. A infeliz, imprudente e desastrada sentença foi dada no caso de um homem de origem judaica que recorrera à Justiça porque se sentiu perseguido ao ouvir de um interlocutor, durante uma discussão, a frase citada entre aspas.”

A OPÇÃO PELO REALISMO


heideggerianices.blogspot.com

“Tudo que é compreendido, está certo”.

Oscar Wilde, “Balada do Cárcere de Reading”

Talvez não seja possível, pelo que conhecemos hoje, chegarmos algum dia a alguma conclusão acerca da discussão entre Realismo e Idealismo. Podemos tomar posição, enfileirar argumentos tão mais numerosos quanto o são aqueles que se nos contrapõem no campo das idéias. É possível persuadir a nós mesmos, tão tentadoras parecem as premissas das quais podemos partir para justificar esse ou aquele caminho, mas, com certeza, é brumosa a estrada e sempre somos surpreendidos pela constatação de que nele estamos sem sabermos ao certo de qual lugar partimos e, muito menos, uma vez que o conhecimento engendra tantas novas opções a cada passo, aonde podemos chegar.
Bachelard já o pressentia, na década de 30, apontando a característica pré-científica desse ponto-de-partida ou mesmo do próprio caminho: “desde William James, tem-se repetido freqüentemente que todo homem culto segue fatalmente uma metafísica”. Essa metafísica, para ele, na realidade, são duas: a do Idealismo ingênuo e a do Realismo intransigente. O primeiro seria devedor da utopia da razão absoluta, a quem competiria classificar o universo qual posto em um mundo perfeito, acabado e organizado; o segundo, refém da crença no imediato que a realidade oferece. Pedimos vênia para uma ligeira discordância: encontramos argumentos sólidos para crer no Realismo, não o intransigente, mas aquele que não comporta adjetivos.

Não há como ser diferente. Pode haver algo de mais metafísico que o projeto positivista, essa exacerbação realista surgida para destruir a própria metafísica? E o que seria ele? Nada mais que a crença no conhecimento que derivasse da experiência. Derivar a experiência sensorial das impressões, das sensações não significa outra coisa senão a volta à cena, do antigo critério da lógica indutiva. Mas essa lógica não cumpre a expectativa que teimosamente lhe devotam seus defensores, como o demonstrou David Hume em "Enquiry Concerning Human Understanding".

Mas não somente Hume. Com efeito, o assim denominado “problema da indução” é um dos temas fundamentais de uma das obras mais importantes da epistemologia moderna, qual seja "A Lógica da Pesquisa Científica", de Sir Karl Raymond Popper. Nela, o filósofo austríaco naturalizado inglês retoma a discussão iniciada por Hume e a aprofunda, propondo uma solução para a questão que, também, se constituiu objeto de preocupação de Kant, que tentou superá-la e não o conseguiu, propondo que o princípio da indução fosse válido a priori. A solução proposta por Popper, que é o método hipotético-dedutivo corroborado pela experiência, somente surge em decorrência da sua constatação de que a passagem, conforme Hume anunciara, de “enunciados singulares (por vezes denominados também enunciados ‘particulares’), tais como descrições dos resultados de observações ou experimentos, para enunciados universais, tais como hipóteses ou teorias”, não se justifica logicamente.

Popper acrescenta:

“O problema da indução também pode ser apresentado como a indagação acerca da validade ou verdade de enunciados universais que encontrem base na experiência, tais como as hipóteses e os sistemas teóricos das ciências empíricas. Muitas pessoas acreditam, com efeito, que a verdade desses enunciados universais é ‘conhecida através da experiência’; contudo, está claro que a descrição de uma experiência – de uma observação ou de um resultado de um experimento – só pode ser um enunciado singular e não um enunciado universal. Nesses termos, as pessoas que dizem que é com base na experiência que conhecemos a verdade de um enunciado universal querem normalmente dizer que a verdade desse enunciado universal pode, de uma forma ou de outra, reduzir-se à verdade de enunciados singulares e que, por experiência, sabe-se serem estes verdadeiros. Eqüivale isso a dizer que o enunciado universal baseia-se em inferência indutiva.”

Assim, a lógica indutiva, na solução proposta por Popper, passa a ser um meio através do qual se pode submeter à prova uma teoria. É o que Popper denomina de “prova dedutiva de teorias”. Ou seja, é o modelo hipotético-dedutivo, que consiste no seguinte: “A partir de uma idéia nova, formulada conjecturalmente, e ainda não justificada de algum modo – antecipação, hipótese, sistema teórico ou algo análogo – pode-se tirar conclusões por meio de dedução lógica. Essas conclusões são em seguida comparadas entre si e com outros enunciados pertinentes, de modo a descobrir-se que relações lógicas (equivalência, dedutibilidade, compatibilidade ou incompatibilidade) existem no caso. Poderemos, se quisermos, distinguir quatro diferentes linhas ao longo das quais se pode submeter à prova uma teoria. Há, em primeiro lugar, a comparação lógica das conclusões umas às outras, com o que se põe à prova a coerência lógica do sistema. Há, em segundo lugar, a investigação da forma lógica da teoria, com o objetivo de determinar se ela apresenta o caráter de uma teoria empírica ou científica, ou se é, por exemplo, tautológica. Em terceiro lugar, vem a comparação com outras teorias, com o objetivo, sobretudo, de determinar se a teoria representará um avanço de ordem científica, no caso de passar satisfatoriamente as várias provas. Finalmente, há a comprovação da teoria por meio de aplicações empíricas das conclusões que dela se possam deduzir.”

E o que não dizer, por outro lado, do Idealismo ingênuo? “Não existem fatos somente interpretações”, observa Friedrich Nietsche, por exemplo, lembrado por Vattimo ( 2001:17) quando este defende sua crença idealista e critica o Realismo. E acrescenta:

“Esta frase de Friedrich Nietsche, que, mesmo com alguma cautela (já que poderia soar ainda como uma outra afirmação metafísica), pode ser assumida como a divisa da ontologia hermenêutica, é também aquela sobre a qual versam as polêmicas daqueles que, sempre mais freqüentemente nos últimos tempos, cedem àquela que proponho de chamar ‘tentação do realismo’”.
Entretanto, podemos considerar, com Popper, haja vista a afirmação acerca da inconclusa discussão mencionada acima, sobre o Realismo não ser demonstrável nem refutável, pois como qualquer outra teoria filosófica ou metafísica despida de conteúdo empírico, excetuando-se, neste caso, a lógica, não podem ser suas asserções submetidas a teste, que mesmo assim parece sensato, no sentido do senso comum erudito, acatar a tese de ser indiscutível o fato de “Qualquer discussão do realismo, e especialmente todos os argumentos contra ele, [terem] de ser formulados em alguma linguagem. Mas a linguagem humana é essencialmente descritiva (e argumentativa), e uma descrição sem ambigüidades é sempre realista: é de alguma coisa – de algum estado de coisas, que pode ser real ou imaginário podendo, então, tal descrição ser submetida a critérios de verossimilitude”. Tese essa bem menos crua, em defesa do Realismo, que a de Samuel Johnson, não o filósofo americano mas, sim, o literato inglês, ao responder a Berkeley, o qual, juntamente com Hume e Kant, constituem o cerne do pensamento idealista: “com um pontapé numa pedra”, dizendo: “refuto-o assim”.
 
Ainda com Popper, admitir ser um dos maiores erros da filosofia apresentar a “evidência por si mesma” como argumento a favor de qualquer sentença, como é feito por praticamente todas as filosofias idealistas, a despeito do caráter conjectural do conhecimento, mesmo quando tratamos com leis naturais, como aquelas que compõem a mecânica de Newton, ontem aparentemente “evidentes por si mesmas”, mas depois entendidas como válidas somente até certo limite pela física relativística de Einstein. Popper lembra que as filosofias idealistas são, muitas vezes, sistemas de apologética de certas crenças dogmáticas, ao mencionar:

“O fato de que uma sentença pareça a alguém, ou mesmo a todos nós, ‘evidente por si mesma’, isto é, o fato de que alguém, ou mesmo todos nós, acreditemos em sua verdade e não possamos conceber que ela seja falsa não é razão para que ela seja verdadeira”.

Com Bachelard, continuando a perfilar argumentos em defesa do Realismo, podemos perceber e criticar as conseqüências do idealismo kantiano, que pretende pôr ordem nas “imagens que faz da natureza, atando-se ao que elas têm de imediato”, deixando de ultrapassar o mero sensitivismo. Ou, com Miaille, especificamente no subuniverso jurídico, perceber o caráter de obstáculo epistemológico que esse Idealismo representa, qual seja o de elaborar uma teoria jurídica que é uma idealização do mundo, não uma explicação científica:

“A questão pode assim ser formulada: dão-nos as abstrações da ciência jurídica uma representação ideológica do mundo do direito, ou, pelo contrário, uma explicação científica? Desde já dou a resposta: a ciência jurídica, tal qual ela é concebida e apresentada, não é senão uma imagem do mundo do direito, não uma explicação. Como é que se manifesta esta representação? É o que temos de procurar explicar agora, para mostrar em que este idealismo constitui um obstáculo epistemológico”.

E Miaille o explica, demonstrando em que consiste esse conjunto de noções, definições, idéias jurídicas que tudo justificam por nada justificarem – moldes proteiformes a serviço do Poder Político. Não por outra razão, como apontado mais além, neste texto, pode-se observar o uso político de aparatos teóricos, tal como o que se faz, por exemplo, ao se mudar o entendimento, o significado, a interpretação de determinada norma jurídica quando ocorre mudança na estrutura do Poder.

Então, uma vez que não é possível escoimar-se de uma metafísica, que o seja através deste auto-de-fé no Realismo. É sensato crer na existência real, objetiva e independente do mundo. É sensato crer que “existem coisas reais, independentes da consciência”. (Hessen, 2000:73). E não é sensato acreditar no Idealismo, bem como no Realismo exacerbado, seja em sua vertente lógico-positivista, empirista, ou fenomenológica.

Ainda, como último argumento em defesa do Realismo, citar Winston Churchill, de quem Popper transcreve um texto do seu “My Early Life – A Roving Comission”:

“Alguns de meus primos que haviam tido a grande vantagem de uma educação universitária costumavam provocar-me com argumentos para provar que nenhuma coisa tem qualquer existência, exceto o que pensamos dela...” “Sempre me apoiei no seguinte argumento, que arquitetei para mim mesmo, há muitos anos... Lá está esse grande sol aparentemente firmado em base não melhor que nossos sentidos físicos. Mas felizmente há um método, inteiramente à parte de nossos sentidos físicos, para testar a realidade do sol... Astrônomos... predisseram por (matemática e) razão pura que um ponto negro passará sobre o sol um certo dia. Olhamos e nosso sentido de visão imediatamente nos diz que os cálculos deles estão confirmados... Utilizamos o que se chama em feitura de mapas militares uma ‘posição cruzada’. Obtivemos testemunhos independentes da realidade do sol. Quando meus amigos metafísicos me dizem que os dados com os quais os astrônomos fizeram seus cálculos foram obtidos originalmente, necessariamente, pela evidência de seus sentidos, digo ‘Não’. Eles poderiam, de qualquer forma em teoria, ser obtidos por máquinas calculadoras automáticas postas em movimento pela luz caída sobre elas sem qualquer mistura dos sentidos humanos em qualquer etapa... Reafirmo com ênfase... que o sol é real, e também que é quente – de fato, quente como o inferno e que, se os metafísicos disso duvidam, devem ir lá e ver.”

Em conclusão, julgo ser possível, dada a fragilidade teórica dos fundamentos do Idealismo e Realismo exacerbado, conceber uma instrumentalização, consciente ou inconsciente, do aparato conceitual de cada uma dessas teorias para outros propósitos que não apenas o da busca do conhecimento. Isso é impensável em termos de uma ciência que se estabelece, ela própria, quando e somente quando suas afirmações (algo real) acerca de algo (existente no espaço e no tempo) sobrevivem às críticas, aos testes, às provas. Quanto menos frágil for o fundamento de uma teoria científica, menos ela se presta a manipulações de natureza política.



sábado, 23 de janeiro de 2010

ESCREVER


literal.terra.com.br

Rubem Fonseca

“Os escritores fazem isso, saem pelo mundo buscando assunto para seus livros. Puchkin dizia que precisão e brevidade são as principais qualidades da prosa. O cinema não tem os mesmos recursos metafóricos e polissêmicos da literatura. O cinema é reducionista, simplificador, raso. O cinema não é nada.

O cinema não é nada? Se eu me sentar no corredor de um hospital vejo um filme – as pessoas se movimentando, falando, chorando, carregando coisas, esperando, etc. O cinema não é mais que isso. Pode ver um livro também, olhando o corredor. A literatura também não é mais que isso" ("Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos"; Rubem Fonseca).


O "ESPERTO" NA POLÍTICA

Meu amigo Fulano me disse que tinha se aposentado da política. “Como assim?”, perguntei-lhe. “Quer dizer que não vai mais exercer qualquer cargo público?” “E se seu candidato voltar ao Governo?” Meu amigo, que foi do segundo ou terceiro escalão do governo de um dos estados vizinhos (claro!) abriu um sorriso matreiro e respondeu condescendente: “eu não quero mais ocupar cargo algum, mas vou ajudar meus amigos por que você sabe como é, tenho filhos para ajudar a criar, e no nosso mundinho só vai p’ra frente quem se dá bem com os ômi”.

Meu amigo Fulano é um homem esperto, dentro daquela categoria que o finado ex-padre Zé Luiz genialmente criou lá pelo começo dos anos 80. Dizia ele, e nunca aceitou essa história de ex-padre – “uma vez padre, sempre padre” – que há dois tipos de homens, dentre outros, que merecem atenção: os inteligentes e os espertos. E para ilustrar sua tese elencou, em sua coluna dominical no Poti, de um lado os espertos, do outro, os inteligentes. Não é preciso dizer o rebuliço que essa crônica causou na província.

Pois bem, meu amigo Fulano é um homem esperto. Não tem o vôo dos condores, quando muito dos galináceos, mas sabe evitar uma panela e enxerga bem além dos seus passos. Em um certo sentido, jamais admitido nem por ele, nem por quem lhe fornece o meio para sobreviver, é alguém que vive de expedientes: ajeita aqui, ajeita acolá, facilita p’ra um, dificulta p’ra outro, torna-se da cozinha do poderoso, na qual chega na hora do café-da-manhã trazendo as últimas novidades e os próximos pedidos.

Duvido que na atual estrutura de Poder na qual vivemos a política nossa de cada dia, em tudo e por tudo idêntica à dos nossos ancestrais, diferenciando-se apenas quanto à aparelhagem tecnológica utilizada – se antes era a cavalo que a informação seguia, hoje é via imail – o coronel com saias ou sem elas possa viver sem esse tipo de agregado. Ele é imprescindível para as pequenas coisas: pequenos delitos – é incapaz de pensar os grandes; aliás, é incapaz de pensar: seu destino é pequenas confidências, pequenos favores, pequenas difamações e/ou injúrias, algumas torpezas, cumplicidade nos vícios, solidariedade nos acidentes de percurso, desde que não afetem sua sobrevivência...

Mas é capaz de grandes bajulações, aceita ser o bobo-da-corte do seu senhor feudal – considera-se até honrado em ser alvo de brincadeiras nas quais sua intimidade é exposta publicamente -, quando não, é capaz de desforço físico na defesa da bandeira que empunhou o que o tornará, sem sobra de dúvidas, alvo de muitas e variadas homenagens prestadas nas hostes do “exército” ao qual pertence.

Não por outra razão meu amigo Fulano está fadado a morrer feliz por que realizado na medida em que encaminhar, através de sua rede de amigos granjeados a partir da troca de favores recíprocos, e da benção do chefe político, os seus rebentos. Não lhe digam que hoje só é possível entrar na administração pública através de concurso. Há sempre um caminho para encontrar uma torneira aberta: cargo em comissão, gratificação, empresa de construção de fundo-de-quintal, licitações manipuladas, consultorias e assessorias. “E os concursos públicos, esses, há, nem lhe conto” disse-me ele.

Meu amigo somente precisa tomar cuidado para não cometer algum erro. Aliás, ele precisa ter muito cuidado para não ser usado como boi-de-piranha: quando ele acerta, o mérito é do chefe; quando o chefe erra, a culpa é dele. E precisa ter cuidado, muito cuidado, mas muito cuidado com a ingratidão e o tal de laço-de-sangue. Por que não é possível ter dúvida: entre ele, o fiel correligionário, e o parente, este sempre vence. É o instinto!

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

ANDRÉ DA RABECA


aventureirodotraco.blogger.com.br

Rabeca

Laélio Ferreira

MOTE :

Pobre André, pobre rabeca,
pobres egos colossais

G L O S A :

Viveu uma vida furreca,

morreu de modo banal...

Hoje é assunto em Natal

- pobre André, pobre rabeca!

Motiva, agora, a fubeca:

cobras, lagartos, rivais,

lendas de outros carnavais,

velhos hábitos de infância,

pecados de concordância

- pobres egos colossais !



ESCREVER


fcom.us.es

Amos Oz

"Num conto curto de Tchekhov ou num romance de Balzac encontrou mistérios que, em sua opinião, não existiam nos romances de espionagem ou suspense. Uma vez, há muitos anos, refletiu sobre a possibilidade de escrever, ele mesmo, uma pequena história de espionagem quando se aposentasse, para descrever nelas as coisas conforme as conheceu durante todos os anos em que esteve a serviço. Mas desistiu da idéia por que não achou, em suas ocupações nada marcante ou excitante. Dois pássaros na cerca em um dia de chuva, um velho falando sozinho em um ponto de ônibus da Rua Gaza, estes e outros acontecimentos lhe pareciam mais fascinantes do que tudo que lhe ocorrera no serviço de espionagem" ("Conhecer uma Mulher"; Amos Oz).

AUTO-PROMOÇÃO

Este blog agradece a Carlos Santos, Charles M. Phelan, François Silvestre, Franklin Jorge e Laurence Bittencourt por freqüentá-lo.

"SEU LULA"


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Ali e acolá, em livros que somente alguns lêem, seja por que deliberadamente os procuram, seja por um desses acasos da vida nos quais eles aparecem sem que saibamos como nem muito menos a razão, me deparo com seu nome. Está posto em um pé-de-página, ou em algum parágrafo, incidentalmente, fugazmente. Recentemente, ao reler a literatura norteriograndense acerca da saga lampiônica em Mossoró – Raul Fernandes e Raimundo Nonato da Silva – lá estava seu nome, “en passant”, como teria dito, para trazer expressões próprias do jogo de xadrez, que amava tanto, até o cotidiano.
 
Foi exatamente o jogo de xadrez que me levou a conhecê-lo. Eu e vários de minha geração, a quem ele pacientemente ensinou a jogar. Tínhamos em torno dos oito anos e nosso mundo era muito simples: brincar no Colégio Diocesano, brincar no patamar da Igreja de São Vicente, brincar em casa nas raras vezes em que a rua nos era proibida por castigo ou doença. E brincar de aprender a jogar xadrez nas tardes provincianas de Mossoró, na pequena casa onde Lula Nogueira - “Seu Lula” - vivia sozinho com o filho solteirão – uma figura misteriosa a quem quase nunca víamos e acerca de quem falávamos aos sussurros.
 
“Seu” Lula morava em uma casinha branca com área de entrada diminuta, porta e janela dando imediatamente para a sala, saleta, salinha que era de visita e jantar ao mesmo tempo. Do lado esquerdo de quem entrava dois quartos: o primeiro, com janelão para a rua, era o seu; o outro, do filho. A sala dava para uma pequena cozinha dela separada por uma mureta onde pontificava um filtro de água de cerâmica e um varal de madeira de empilhar pratos, meio escondidos por um pano. Tudo muito normal, tudo muito comum não fosse uma mesa oficial de xadrez colocada perpendicularmente à janela da sala para aproveitar a luz do sol, na qual ficavam postados, desde sempre, livros e revistas argentinas acerca do jogo, além de majestosas e manuseadas peças tipo “Stauton” para os embates enxadrísticos.

Embora possa me lembrar de “Seu Lula nas calçadas de nossa rua conversando, principalmente na roda de “Seu Napoleão”, onde o escutei, entre perplexo e admirado, certa vez, afirmar enfaticamente que somente morreria após a passagem do ano 2000, essas incursões eram raras. Certo, mesmo, era passar em frente à sua casinha, fosse manhã ou tarde, e encontra-lo defronte ao tabuleiro de xadrez, mão esquerda com dedos polegar e indicador apoiando a cabeça, cigarro esquecido embora aceso entre os dedos médio e anular, enquanto a mão direita movia as peças para cima e para baixo, para um lado e para o outro, ou na diagonal, na tentativa de criar ou solucionar problemas enxadrísticos que já haviam lhe granjeado reputação nacional. Podia, também, ser o caso de estar, simplesmente, reproduzindo uma partida de xadrez de grandes mestres internacionais.
 
Depois eu, como os outros, fui embora. O mundo nos esperava. Nunca esquecemos – aqueles que fomos seus alunos – nosso professor de xadrez. Basta, ainda hoje, ver peças tipo “Stauton”, ou mesmo um tabuleiro oficial, que volto no tempo para aqueles dias já longínquos quando um menino magro, tímido, e um ancião de mãos nodosas, emoldurados pela claridade solar que ultrapassava a janela da sala e escandia a fumaça dos muitos cigarros fumados ou esquecidos, jogavam intermináveis partidas nas quais somente a profunda gentileza do professor impedia uma humilhação contínua ao aluno.









quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

LEIA COMO O ESTADO SE APROPRIA DE PARTE DA REMUNERAÇÃO DO SERVIDOR PÚBLICO


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Barnabé

Esqueça sua idéia do que seja o “Estado”. É mais simples entender que “Estado” é algum lugar onde poucos mandam em muitos. Esses poucos podemos chamar de “elites”, assim mesmo, no plural, vez que há várias: reacionária, conservadora ou progressista, por exemplo, conforme queiram voltar no tempo, manter tudo como está ou avançar em busca de reformas ou rupturas estruturais acerca da distribuição da riqueza do mundo.

Essas elites, para aumentarem ou perpetuarem seu poder, necessitam de instrumentos, meios ou mecanismos através dos quais seja possível governar os muito, muitos mesmo, que são mandados. Então as elites precisam de leis que regrem esses muitos, e exércitos, polícias, juízes, promotores, advogados, auditores, médicos, professores, assistentes sociais, enfim, um segmento significativo da sociedade para aplicá-las.

Esses instrumentos nada mais são que servidores públicos, trabalhadores que por intermédio do seu capital material (sua força física) ou simbólico (sua força intelectual) aparentemente servem ao Estado, mas, na realidade, em sua essência, são aparelhos das elites que os criam, instauram, e utilizam.

Pois bem, essa força física ou intelectual é o capital do servidor. É ele que o servidor “vende” ao Estado em troca de uma remuneração ou pagamento pela “utilização”.

Convém observar que pelo “contrato” firmado entre o servidor e o Estado, cujas premissas são constitucionais, aquele não pode ter sua remuneração reduzida por este. Ou seja, trocando em miúdos, o Estado não pode reduzir a o pagamento (remuneração), segundo a Constituição Federal, sob qualquer pretexto, do servidor público.

Não vamos entrar, aqui, no aspecto da apropriação indireta do capital do servidor, realizada fora do seu ambiente profissional, como por exemplo, quando parcela de seu pagamento (remuneração) é levada através de tributação confiscatória: é o caso da tabela de deduções (limites de gastos com médicos, p.ex., a serem abatidos do valor devido) do imposto de renda que nunca é corrigida pela inflação, fazendo com que paguemos cada vez mais na medida em que cresce o custo das coisas.

Vamos, sim, tratar da apropriação direta, feita pelo Estado, na remuneração do servidor, ao longo de todos esses anos, sem que ele receba qualquer aumento, apesar da corrosão imposta pelo processo inflacionário. Ou da cobrança, a partir da reforma da Previdência, da contribuição Previdenciária incidente sobre os proventos da aposentadoria.

São esses apenas dois exemplos de como o Estado (instaurado ou implantado por certa Elite, não necessariamente aquela da qual fazemos parte) se apropria de parte do pagamento pela venda, a ele, do capital do servidor. Há outros, mas esses dois bastam.

No primeiro, o Estado enriquece ilicitamente, diga-se de passagem, tendo em vista a Constituição Federal, à custa dos servidores, quando não preserva seu valor de compra (a remuneração) inicial com a qual foi contratado, já que cada vez mais a eles paga menos, pelo mesmo trabalho, como conseqüência da inflação. No segundo, desrespeitando o direito adquirido, ao tributar quem já cumprira sua parte no contrato, os aposentados.

A fome do Estado é gigantesca, pantagruélica. E, infelizmente, somente é saciada com a carne da arraia-miúda que é a classe média, da qual parte expressiva é constituída por servidores públicos. Os tubarões estão fora de perigo, sejam eles bancos, multinacionais, ou mesmo o indefectível FMI, este já pago várias vezes via juros escorchantes assumidos pelo Brasil.

Acresça-se que o servidor público não tem como sonegar: seu imposto sobre a renda é cobrado na fonte, ao contrário de todos os megacontribuintes que, ao longo dos anos, enriquecem através das brechas da lei, do trabalho de competentes bancas advocatícias, e de auditores fiscais corruptos. É a velha história: o pau sempre quebra nas costas do mais fraco.

Nesse conflito entre capital e trabalho, o senso comum aponta logo dois fatores a chamarem nossa atenção: a incapacidade do explorado em reverter esse quadro, por não conseguir percebê-lo, e a incapacidade dessa Elite em entender que todo buraco tem fundo. Assim, continua crescendo a terrível dívida social que essas elites (não todas) têm com os excluídos, enquanto, ao mesmo tempo, o capital continua a crescer.

Torçam elas, essas elites, para Marx não estar certo, e não acontecer seu entredevoramento. Quanto aos servidores públicos, até quando permanecerão inertes ante esse processo de depauperamento financeiro?













quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A DIFERENÇA ENTRE O POLÍTICO E O LADRÃO

Vingou-se, para mim, um motorista de táxi:

"- O Sr. sabe qual a diferença entre o político e o ladrão?"

- Não.

- "O político a gente escolhe; o ladrão escolhe a gente."

NASSAR, UM CASO PARADIGMÁTICO DE SÍNDROME DE BARTLEBY


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Nassar

Pinçado de: http://www.releituras.com/

"José Castello, jornalista voltado para livros e autores, teve publicado em 1999 o livro "Inventário das Sombras" (Editora Record - Rio de Janeiro, pág.173), no qual traça o perfil de diversos escritores. Autor de "O Poeta da Paixão", "O Homem sem Alma", "Na Cobertura de Rubem Braga" e "Uma Geografia Poética", assim vê o escritor Raduan Nassar (parte):

(...)


Atrás da máscara

'Nós buscamos outras realidades porque não sabemos como desfrutar da nossa; e saímos de dentro de nós mesmos pelo desejo de saber como é o nosso interior.'


Montaigne


Raduan Nassar não suportou ser um grande escritor e desistiu da literatura para criar galinhas. Trocou a criação estética, que é complexa e desregrada, pela mecânica suave da avicultura, e parece muito satisfeito com isso, tanto que, resistindo a todos os apelos, se recusa a voltar atrás em sua decisão. Meteu-se assim em uma situação embaraçosa na qual o exterior (a figura do escritor) e o interior (o ato de escrever) se confundem, armadilha em que, de modo mais discreto, todos os escritores de alguma forma estão presos, e que não chega a configurar uma escolha, mas um destino. Raduan abandonou a ordem do verbo, que está sempre contaminada pelo vazio e pelo espanto, para retornar à ordem natural dos animais, que é mais silenciosa, mas também mais previsível. Ovos, poedeiras, rações, pequenas pestes podem ser controlados; a escrita, não.

O sucesso de seus dois primeiros livros, Lavoura arcaica e Um copo de cólera, parece ter excedido em muito aquilo que Raduan esperava de si, e, ultrapassado pela própria obra, ele tomou a decisão de recuar. O sucesso, em seu caso, tornou-se uma carga: ele é aquele que não suporta vencer e, assim que a vitória se configura, precisa fracassar para se tornar menos infeliz. Restou a sombra de algo intolerável, a literatura, que, vista sem as pompas da reputação e da fama, tem a aparência de uma emboscada. Escrever não é só seguir uma rotina, manter-se atento e cumprir as regras dos manuais.


Mas por que terá Raduan, ao tomar a decisão de abandonar a literatura, conservado para si a imagem de escritor? Por que terá resolvido ser um homem com duas sombras — uma do escritor consagrado, outra do sujeito que desistiu de ser escritor? Raduan não é um Rimbaud, que, ao resolver que a escrita não o interessava mais, virou a página de sua biografia e, trocando de máscara, foi viver como um mercenário na África. Ao contrário, mesmo desistindo da literatura, ele não deixou de se apresentar, quase obstinadamente, como um escritor militante. Raduan é, ninguém tem dúvida, um grande escritor. Por isso, a solução que deu a seu impasse chega a parecer, às vezes, mentirosa. Quem estará dizendo a verdade: o Raduan que desistiu da literatura e se tornou só um homem silencioso com suas galinhas, ou o Raduan que, mesmo sem escrever, insiste em se ver como um escritor?" (...)

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

DOIS MOMENTOS DA IGREJA


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Cai Montségur

"Matem todos, Deus saberá quem são os seus". Assim falou Arnold Amaury, o monge cisterciense, quando seus guerreiros cruzados, a um passo de atacar a cidade de Béziers, em 22 de julho de 1209, tinham se voltado em sua direção para perguntar se deviam distinguir os fiéis ao catolicismo dos cátaros heréticos.

É o que nos conta Stephen O'Shea em seu "A heresia perfeita", cujo subtítulo é "A vida e a morte revolucionária dos cátaros na idade média".

A "Cruzada Albigense" se estendeu de 1209 a 1229 e foi deflagrada por Inocêncio III, sob a alegação de erradicar a heresia popular que grassava no Languedoc, região francesa que se estendia dos Pirineus à Provence e que incluia cidades como Toulouse, Albi, Carcassone, Narbonne, Béziers e Montpellier. Na verdade os barões feudais do Norte da França - dentre eles o Rei - cobiçavam as terras e as riquezas dos seus pares do Sul, principalmente o condado de Toulouse, que era suserania de Pedro de Aragão.

As duas décadas de sangue deram lugar a quinze anos de revolta e repressão até o cerco de Montségur, em 1244. No final, mais de duzentos de seus defensores, os líderes cátaros, foram arrebanhados e tangidos até uma clareira na neve para serem queimados vivos. Resultado do guerra de extermínio foi o surgimento da Inquisição e suas técnicas que atormentariam a Europa e a América Latina durante séculos, sob o comando dos Dominicanos. Técnicas essas que estabeleceram o modelo para o controle totalitário das consciência individual em nossos dias, diz-nos O"Shea.

Autos-de-fé, enceguecimentos, enforcamentos em massa, catapultar de corpos por sobre as paredes dos castelos, pilhagens, saques, julgamentos secretos, exumação de cadáveres, estupros, sevícias, tudo em nome da fé!

Em 27 de agosto de 1689, em correspondência dirigida a Domingos Jorge Velho, Frei Manuel da Ressurreição, Arcebispo e Governador do Rio Grande parabeniza-o: "E dou a Vossa Mercê o parabem de um avizo que do Recife me fez o Provedor da Fazenda estando para dar á vela a embarcação que o trouxe de haver Vossa Mercê degollado 260 Tapuyas".

De 26 a 30 de outubro de 1689 Domingos Jorge Velho mata 1.500 tapuias e aprisiona 300. Em 12 de janeiro de 1690 Frei Manuel da Ressurreição manda que se busque "trilhas de Bárbaros, como Vossa Mercê me diz se acham, os não faça o nosso descuido ousados".

Em 4 de março do mesmo ano o Governador Geral determina aos três cabos de guerra que exterminam os tapuias: "Se não devem esperar nos Arraiais, em que se acham as mesmas armas; senão seguindo-os até lhes queimarem, e destruirem as Aldeias, e elles ficarem totalmente debelados, e resultar da sua extincção, não só a memória, e temor do seu castigo, mas a tranquilidade, e segurança com que sua Magestade quer que vivam, e se conservem vassallos, como por tão duplicadas ordens tem recommendado a este Governo".

Está em "Cronologia Seridoense", de Olavo Medeiros Filho. 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

DIÁRIO DE VIAGEM




Martins, a "bela serra"

De volta à Mossoró, após irmos a Uiraúna e Martins.

O projeto de visita a São Miguel foi trocado por um convite de Etelânio Figueirêdo e Catarina para conhecermos a Casa Grande da Fazenda Canadá, em Uiraúna, aquela mesma invadida por Lampião e que Massilon não deixou depredar, por que conhecía seus proprietários.

Teodoro Figuerêdo e sua esposa, seus tios, nos receberam com aquela gentileza que caracteriza o sertanejo. Nos mostraram tudo. A Casa Grande começou a ser construída nos Séc. XVIII, no ciclo do couro. O sobrado, mais recente, é de 1900, início do Séc. XX. Tudo tão interessante, tão belo, que eu fiquei de voltar com Bárbara Lima para fazermos um ensaio fotográfico.

De lá, um almoço e a fidalguia de Seu Bosco e Dna. Socorro, pais de Catarina, no Curupaity, nos aguardava. Comida farta e da melhor qualidade, uma tradição que há de ser mantida, se Deus quiser. Depois da conversa na varanda, o cafezinho, os agradecimentos, pegamos a estrada no rumo de Martins.

Na "bela serra" encontramos, eu e Carlos Santos, Raimunda e sua família. O pato, a ser degustado no dia seguinte, domingo, foi logo garantido. Fomos aos mirantes. Terminamos no Jacu, maravilhados com as luzes das cidades se recortando contra o negro da noite, lá embaixo, no vale. Como Martins é especial...

Hoje, já em Mossoró, visita à Fundação "Coleção Mossoroense", do grande Vingt-Un Rozado. Ciceroneados por Caio Cezar Muniz, o curador da coleção, poeta aclamado, autor de "E Na Solidão Escrevi", 1996, "Notívago", 1998, a educação em pessoa, eu e Kidelmyr Dantas, que anda preparando um livro acerca de Luis Gonzaga, tivemos acesso ao trabalho de "recolocar o bonde nos trilhos" que Vingt Un concebera e criara.

Fomos presenteados com algumas publicações da coleção: dentre elas, preciosidades de Raimundo Soares de Brito, a tanto tempo tão silencioso. Terá sido acometido da Síndrome de Bartleby?

Amanhã visito o Museu de Mossoró, em busca dos jornais da década de 20. Quero entender os meandros políticos daquela época nesta cidade. Buscar ecos do passado, para  explicar certos fatos ainda nebulosos...

Hoje a noite, no Café Massilon, bate-papo de beira de calçada, uma das boas coisas do mundo quando o vento bate, o escuro chega, os amigos estão próximos, e os "causos" vão sendo contados, um a um, mentira após mentira, a perder de vista, até a hora que o sono bate.

Vou indo.


sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

DIÁRIO DE VIAGEM

Estou no Alto Oeste.

Sediado em Pau dos Ferros, mais precisamente.

Eu e Carlos Santos fomos visitar, ontem, o jornalista Jânio Rêgo em Doutor Severiano, na sua Catingueira, onde ele se refugia, de vez em quando, dos afazeres do dia-a-dia, contemplando, até onde a vista alcança, o verde das serras que margeiam a estrada para Ereré, Ceará. Terras que foram do fidalgo de grande porte e altivez serena Seu Chico Petronilo. Conseguimos arrancar um almoço de primeira, como somente as casas-grandes do Sertão sabem fazer.

Vamos ainda a São Miguel - prentendo levar Carlos Santos até a Casa Grande dos Diógenes, em Pereiro, Ceará, uma maravilha do Século XVIII em pleno Sertão. Quem quiser saber mais acerca da Casa Grande leia "A Estranha Pereiro", aqui mesmo neste blog, um pouco mais abaixo.

Depois é visitar os amigos em Pau dos Ferros: Etelânio Figueiredo, Laércio Souza, João Batista Fontes, Maria Rêgo, Santídio Fernandes, Nilton Figueirêdo, Comadre Neli Suassuna, a família, os amigos de ontem e de hoje. Todos.

Comer a peixada de Ernandes Lima. Receber as bençãos de Áurea Lima e Dona Dulce de Queiróz.

Quem sabe encontrar José Edmilson de Hollanda pelas calçadas.

Botar as cadeiras na calçada e sorver o sereno da noite.

Depois, Martins, onde pontifica o Senhor de Cajuais, o grande François Silvestre, e o clima é ameno e a conversa corre solta. Ouvir, também, a gargalhada de Raimunda enquanto comemos a galinhada que somente ela sabe preparar. Quem sabe temos a sorte de encontrar Dona Manolita Pereira em seu chalé encantado no Sítio Canto? E poderemos, então, sorver um Porto enquanto a vista se derrama pela imensidão das serras?

Viver, enfim, cumprir essa sina com leveza e galhardia...

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

DICA DE LEITURA


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Do blog de Bárbara

http://www.barbarademedeiros.blogspot.com/

"A dica de leitura de hoje é de um livro que eu li e gostei tanto, que no meu gosto superou até o romance de Edward e Bella, em Crepúsculo. A história é muito mais romântico, se passa antigamente e depois que eu a li, a saga Crepúsculo se tornou chata. Se trata do livro Orgulho e Preconceito, de Jane Austen. É uma história que eu recomendo muitissímo, e emocionante do início ao fim. Não tem nenhum vampiro, mas nem por isso é chato. A autora sabe como prender nossa atenção do início ao fim, e nos deixar com aquele gostinho que quero mais toda vez que lemos. Espero que vocês gostem."

A ESTÁTUA


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“Quem terá sido aquele?” Passávamos ao lado da praça. Pequena, retangular, sem bancos – como pode?, pensei – duas castanheiras raquíticas postas aleatoriamente, os restos algo arruinados de contornos de cimento e mosaico guardando o que outrora fora um projeto de jardim e, no centro, a estátua, ou melhor, o busto e seu olhar fixo, fitando o vazio.

“A imobilidade das estátuas me incomoda”, continuou. Propus pararmos e descobrirmos quem teria sido o homenageado. Estacionamos. Ao longe, por trás – ou pela frente? – uma pequena capela antecedida por um cruzeiro de madeira relativamente grande, postado em um pedestal também retangular de cimento. Em uma placa feita de metal barato, corroída pela ferrugem, um nome e uma data, talvez a da inauguração. Nada mais. Sobre o topo do busto excrementos dos pombos que rurulavam ao nosso redor, nitidamente incomodados com a quebra de sua rotina, compunham uma estranha e irregular coroa esbranquiçada.
“E agora?”. Apontei para algumas pessoas que passavam ao lado. “Vamos perguntar a elas”. Em vão nosso esforço. Eles bem que tentaram. Não sabiam quem tinha sido. Olharam um para o outro e arriscaram dizer que ouviram falar que fora um homem muito rico. Só.

“Agora é uma questão de honra”. Fatigamo-nos perguntando aos passantes. Nada. Sugeri irmos à Prefeitura. Pegamos o carro e fomos embora, não sem um último olhar para o busto, ou melhor, para os olhos imobilizados olhando o infinito além da realidade que o cercava, indiferente a sol, chuva, vento, poeira e cocô de pombos.

Na Prefeitura mandaram-nos logo até o chefe do arquivo-morto, um velhinho inquieto, seco, mirrado, de bigodinho fino à lá Rodolfo Valentino, tão carcomido quanto os papéis que ele guardava e com os quais se confundia de uma forma tão perfeita que nenhuma literatura conseguiria expressar. “Aquele”, perguntou, “ah, faz tempo...” “Foi um homem rico que doou terras para a construção de uns prédios para a Igreja”. “Não tem mais parentes aqui”.

“Por que não limpam o busto e colocam uma placa explicando quem ele foi?” “Bom, meu senhor, como pode ver eu sou apenas um guarda-livros. O Prefeito é outro”. “E onde ele está?” “Que eu saiba, viajando.”

Depois, a estrada. “A glória é vã, a glória é vã, a glória é vã”, repetia meu amigo, como a querer inculcar definitivamente, em seu espírito, essa concepção acerca da fatuidade da luta do homem para sobressair. A seu tempo e a seu modo, mesmo aqueles que ocuparam por um longo período a atenção dos homens terminam desconhecidos quando confrontamos aquilo que ele realmente foi com sua descrição feita pelos historiadores. “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade, tu és pó e ao pó retornarás”, prosseguia ele, enquanto sua cantilena confundia-se com o barulho do motor do carro, a paisagem passava rápida e nós, aos poucos, esquecíamos esse episódio que muito depois seria um borrão na nossa memória e uma crônica misto de muita fantasia, pouca realidade e alguma verdade.

CORTESIA




“Ainda sou tosco, rude, sequer conheço a cortesia e a cortesia, você sabe, dá a medida de um homem...” (“Um Sentido para a Vida”; Antoine de Saint-Exupery).

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

BILHETE DE LAURENCE NÓBREGA



Bárbara

Bilhete de Laurence Nóbrega para Bárbara, depois de ler seu "O Sentido da Vida", neste blog:

"Espero que a missão de Bárbara seja bem difícil, para que ele demore muito por aqui.

Eu, quando mais moço, achava que não viveria muito, pois era o mais afoito dos filhos do meu Pai. Não morri cedo, não corri nem tornei-me herói, desmentindo Millor.

Mas acho que já resolvi tudo e aproveito para, enquanto o trem não chega, passear por esta cidade para onde me mandaram a serviço. Observo prédios e pessoas, procurando descobrir a beleza da sua arquitetura e a nobreza do seu caráter.

Faço novos e melhores amigos e, com eles, aprendo e me divirto muito.

Talvez, se vier de novo por aqui, não cometa os mesmos erros e dê mais valor ao que realmente importa. Talvez, quem sabe, novamente não seja importante, mas necessário, pelo menos para alguns.

Vida longa para Bárbara.

Laurence"