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Honório de Medeiros
O carro parou ao
lado da criança. Havia como que um assento de cimento – se é que se pode dizer
assim – ao lado da banca de revistas, mas ela não deu muita atenção ao carro,
nem mesmo quando seus ocupantes saíram e um deles lhe fez cócegas na cabeça e
passou apressado.
A mãe, sentada, de
cabeça baixa, cotovelo cravado nas pernas, tinha os olhos ocultos pela mão
direita espalmada e não modificou sua postura para ver o que se passava ao seu
redor. De relance se pôde perceber que parecia insensível ao tráfego
barulhento, enquanto sua mão esquerda segurava firmemente o pulso da criança.
Entraram na banca.
Compraram jornais. Separaram, de comum acordo, um chocolate para ser dado à
criança. Saíram. Nada mudara. Ao se aproximarem perceberam as roupas de ambas –
singelas, mas compostas. Ofereceram o chocolate sem dizerem qualquer palavra. A
mãozinha frágil o pegou, ávida, enquanto um “oba!” despertava a atenção da mãe.
Esta, tirando a mão dos olhos e encarando os dois homens que observavam sua
filha deixou a descoberto um rosto ainda jovem, banhado em lágrimas.
- “Minha senhora”,
perguntaram, “porque está chorando?”
“Fome!”, respondeu.
A criança, de um
louro amarelado que ressaltava sua ascendência negra, magrinha, magrinha,
lambia, deliciada, o chocolate totalmente despido. Não se dava conta do que se
passava ao seu lado.
- “Fome?”. Perguntaram
novamente.
- “É”. “Não tenho vergonha em dizer”. “Os
senhores sabem se tem alguma Casa de Apoio aqui perto?”
- “Tem uma logo
naquela rua”, responderam.
- “Está fechada”.
“Tem o Albergue”, ela continuou, “na descida da ladeira, mas ele cobra vinte
reais para o pernoite e refeições”.
Fez-se um silêncio
incômodo, doloroso. Será que ali estava alguém querendo aplicar um golpe,
explorando aquela infância comovente que agora brincava de lamber, um a um, os
dedinhos sujos de chocolate, eles se perguntaram.
- “Vim do interior
no carro da Prefeitura trazer meu marido para o hospital de emergência, mas não
posso ficar lá e ele só sai segunda”
Era uma sexta-feira
radiante, ensolarada...
- “Eu ia ficar na
casa do meu pai. Ele mora aqui, mas se mudou e não mandou seu endereço novo. O
carro da Prefeitura só vem na segunda, o que vou fazer para dar de comer a essa
criança? Pedir eu não peço. Falei com o motorista da Besta para ele nos levar
que eu pagava lá. Ele disse que não fazia fiado”.
Enquanto falava, as
lágrimas pingavam uma a uma no regaço do vestido. As mãos torciam uma à outra.
A bolsa, preta, de material ordinário, flácida, vazia, separava-a da criança
que então olhava, atenta, um pequeno jorro de água que brotava da torneira mal
fechada e originava um pequeno córrego a deslizar por entre o capim limitado
por pedras de contenção. Os olhos da mãe já há muito não encaravam nada nem
ninguém. Estavam perdidos no vazio. O desabafo era para o mundo que a cercava.
Eles apenas o desencadearam. Parecia alheada de tudo.
- “Olhe”, disse um
deles estendendo a mão que segurava a cédula.
Ela olhou durante
algum tempo antes de pegá-la. Abriram as portas do carro.
- “Como é o nome
dos senhores?” Levantara-se, puxando a menina.
- “Por quê?”
- “Eu quero rezar
pelos senhores”.
Foram-se. Pelo vidro retrovisor era possível perceber a imagem que se
distanciava. Continuavam no mesmo lugar, imóveis, as duas, olhando o carro.
Mesmo pelo espelho era possível perceber uma mão segurando, firmemente, a
cédula, enquanto a outra não largava a criança que dava adeus, em câmara lenta
– tão pequena, tão frágil – destacando-se delicadamente contra o cinza da banca
de revistas.
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