quarta-feira, 25 de novembro de 2009

A PEQUENINA FLOR LILÁS


Criança e flor

Por Honório de Medeiros

Havia uma pequenina flor lilás no nicho de cimento onde algumas plantas resistiam bravamente. Era um restaurante em um terraço, ao cair da noite cálida de Natal. Bárbara desceu da cadeira na qual a tínhamos colocado e enquanto se preparava para se aventurar pediu nossa aprovação com o olhar com o silêncio próprio dos seus dois anos e pouco. Em passos ainda trôpegos se dirigiu para o canteiro. Parou. Fixou sua atenção na pequena flor solitária e, em seguida, estendeu até ela sua mãozinha gorducha. Não a pegou com a mão como deveria fazer na sua idade. Com o polegar e o indicador, cuidadosamente, pegou no talo que sustentava a flor e o puxou decidida. Arrancou a flor na primeira tentativa. Com a flor na mão a contemplou durante algum tempo, como se resolvesse o que fazer. Virou-se para nossa mesa. Olhou para mim e, atenta ao meu olhar, veio em minha procura bamboleando com a flor estendida numa oferta silenciosa enquanto meu coração derretia lentamente antegozando o instante em que a receberia.



Essa flor, a pequenina flor lilás, eu, quanto a ela não tive dúvida: em frente ao local onde trabalhava havia um mercado aberto de camelôs e, dentre estes, alguém operava uma máquina de plastificação de documentos. Procurei-o e lhe expus meu projeto: aprisionar aquele instante através do enclausuramento da flor entre duas páginas de plástico. Ele entendeu – eu poderia jurar que um ligeiro brilho clandestino formado por um misto de lembrança e saudade surgiu no canto dos seus olhos – e a flor foi depositada em cima de uma folha de plástico, recebeu outra por cobertura e a máquina, previamente aquecida, as comprimiu unindo-as para sempre. Depois, foi só recortar e depositá-la, para que ficasse guardada, qual talismã, na minha carteira de documentos onde jaz, ela, a primeira flor, lilás, que minha filha me deu de presente quando tinha dois anos e pouco de idade.



De lá para hoje, várias vezes me pego pensando acerca daquele momento mágico, o da oferta da flor. Tento reproduzir em detalhes toda a cena, desde o início até o final, quando suspendi minha filha e a cobri de beijos. Os detalhes vão ficando esmaecidos ao longo do tempo, os contornos dos objetos – a mesa, as cadeiras, o terraço, minha esposa, a imagem de Bárbara – desaparecendo lentamente, e todo o processo de recordar vai sendo substituído, aos poucos, pelo desejo de compreender algo impossível: o quê se passava na cabecinha dela quando olhou para a flor, resolveu colhe-la e, em seguida, entregá-la a mim. Em que momento decidiu dar esse último passo? Por quê? Como uma criança de dois anos e pouco poderia ter em seu ainda pouco povoado universo simbólico, a noção de que a oferta da flor é um gesto através do qual se externa um afeto?



Claro que dirão que estou sonhando. Nada houve ali de especial. É tudo muito simples e fácil de explicar: trata-se de um gesto surgido de uma associação de idéias. Ela viu alguém fazendo isso e lembrou-se de fazer o mesmo. Ora, meu Deus. Essas pessoas não crêem. Não conseguem extrapolar seu materialismo árido. Percebem o mundo apenas através dos seus nexos lógicos. São os homens-ocos, dos quais fala o poeta T. S. Elliot em “A Terra Desolada”. Por causa delas eu mesmo não acredito, hoje, em fadas, mas sei que elas existem, existem sim, sou capaz de jurar...

Um comentário:

Maisa disse...

Muito bom... PARABENS!!

PS: Eu acredito em fadas!! =)