sábado, 13 de setembro de 2025

TODOS ESTAMOS ILHAS





 * Honório de Medeiros

O mundo está se fragmentando.
Cada homem, hoje, é uma ilha em permanente guerra contra as outras.
Tudo quanto formava a unidade entre as pessoas, tal qual a crença em Deus, a fé na Razão, a vida comunitária, se desfaz lentamente.
Não nos damos mais as mãos, a não ser quando por algum interesse menor.
O altruísmo morre. O egoísmo cresce.
Todos são donos da verdade única, e agimos como se quem conosco não concordasse, fosse um inimigo visceral.
Breve esse individualismo exacerbado, que se firma nos nossos piores defeitos, há de nos conduzir para uma realidade na qual cada um será somente por si, e ninguém por todos.

* honoriodemedeiros@gmail.com
@honoriodemedeiros
Imagem: Honório de Medeiros

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

CORONELISMO NO RIO GRANDE DO NORTE: A ELEIÇÃO DAS PEDRAS EM PAU DOS FERROS

 





* Honório de Medeiros[1]

 

Desde 1856, pelo menos, duelam Fernandes e Rêgos pelo poder em Pau dos Ferros, principal cidade do Alto Oeste potiguar. Cento e sessenta e quatro anos de luta política![2]

Em 2020, assim como em 2024, de um lado tivemos o ex-prefeito Leonardo Nunes Rêgo – o nome já diz tudo – e, do outro, enquanto principal nome da oposição, o ex-prefeito Francisco Nilton Pascoal de Figueiredo, muito embora sua candidata tenha sido a atual prefeita, Marianna Almeida.

Nilton Figueiredo, como é conhecido, é descendente de Childerico Fernandes de Queirós, que do seu segundo casamento, com Maria Amélia Fernandes (Mãe Marica), teve Umbelina Fernandes da Silveira, mãe de Maria Fernandes de Figueiredo (Dona Lalia), sua avó paterna.[3]

Em 1864, na sessão do dia 23 de dezembro, a ata da Câmara Municipal dá conta de requerimento apresentado por alguns vereadores ao Presidente da Província solicitando fosse-lhes “relevada” a aplicação de algumas multas a eles impostas.

Requeriam a eles, diretamente, alegando que a Câmara não se reunira em outubro e novembro passados, porque seu presidente, Manoel Pereira Leite, aliado dos Rêgos, estava foragido e “perseguido pela força do Delegado de Polícia”.

Assim decorreram os anos subsequentes, afirma o cronista, José Dantas.

No período que vai de 1865 a 1872, os Fernandes dominaram a Câmara Municipal, presidida por Viriato Fernandes e Hemetério Raposo de Melo, casado com Umbelina Fernandes, filha de Childerico Fernandes de Queirós.

No dia 6 de outubro de 1872, houve eleição para juízes de paz dos distritos e vereadores à Câmara Municipal.

Durante quinze dias vieram os eleitores votar, mas não lhes tomaram os votos. A Junta Paroquial, presidida pelo 3º Juiz de Paz, Galdino Procópio do Rêgo, instalou-se na Igreja Matriz, para realizar a eleição, sob o protesto dos Fernandes, que argumentavam acerca da sua incompetência para presidi-la.

A discussão transformou-se em violenta pancadaria dentro da igreja, e, fora, os liderados de ambos os grupos políticos travaram-se em briga corporal, armando-se de paus e pedras.

Muitos foram os feridos, e a Matriz foi seriamente danificada. Cessada a luta, a Junta Paroquial cercou a igreja com um grupo armado, para evitar outra confusão.

Os Fernandes, inconformados, organizaram outra Junta, sob a presidência do 1º Juiz de Paz, Childerico José Fernandes de Queiróz Filho[4], e realizaram outra eleição, na Casa da Câmara.

Submetida a documentação das duas Juntas à apreciação da Câmara Municipal, esta, em 16 de novembro de 1872, sob a presidência do Dr. Hemetério Raposo de Melo decidiu, por unanimidade de votos, a favor da eleição realizada na Casa da Câmara.

Foram, então, diplomados o Tenente Coronel Epiphanio José de Queiróz, Alferes José Alexandre da Costa Nunes, Manoel Francisco do Nascimento Souza, Manoel Queirós de Oliveira e Pedro Lopes Cardoso.

Vários argumentos foram levados em conta para a decisão, dentre eles o de que o eleitorado foi impedido de entrar na Matriz por uma força armada de clavinote, bem como o encerramento da eleição ter ocorrido no Sítio “Logradouro”, de propriedade dos Rêgos quando, à meia-noite, os últimos votos foram recolhidos em um chapéu improvisado de urna.

Entretanto, o Governo da Província não lhes foi simpático, e anulou a eleição realizada na Câmara dos Vereadores e, em 27 de outubro de 1873, por Aviso Ministerial, a Câmara foi cientificada que o Governo Imperial confirmava a eleição promovida pela Junta Paroquial.

Tiveram, assim confirmadas suas diplomações, Galdino Procópio do Rêgo, João Bernardo da Costa Maya, Norberto do Rêgo Leite, Florêncio do Rêgo Leite Gameleira, e João Afonso Batalha.

O povo, que a tudo e todos alcunha quando sua atenção é despertada, não deixou por menos: batizou o episódio de “eleição das pedras”.


[1] Trineto do Capitão Chiderico José Fernandes de Queiróz, por parte do seu primeiro casamento, com Guilhermina Fernandes Maia.

[2] FREIRE, Cônego Manoel Caminha e outros. Revista Comemorativa do Bi-Centenário da Paróquia e Centenário do Município de Pau dos Ferros. Natal. Sebo Vermelho. Edição fac-similar. 2015.

[3] FERNANDES, João Bosco e FERNANDES, Antônio Mousinho. Memorial de Família.Teresina. Halley S/A. 1ª edição. 1994.

[4] Trisavô de Francisco Nilton Pascoal de Figueiredo.

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

A RETÓRICA É UMA TÉCNICA DE PODER

 

Imagem: Honório de Medeiros


* Honório de Medeiros


Na verdade, a Retórica é uma técnica para a obtenção e manutenção do Poder, muito além de uma mera técnica de persuasão, como propõem alguns teóricos.

A persuasão é, apenas, uma das faces da Retórica, tal como a manipulação ou a sedução.

A Retórica pressupõe a existência, em polos distintos, de alguém a almejar que o Outro faça ou deixe de fazer algo.

Há uma tentativa de circunscrever a Retórica ao espaço da persuasão, que ocorre quando o Outro cede, por vontade própria, posto que convencido, à vontade do persuasor.

Nada menos verdadeiro: na tentativa de persuasão do Outro, em ocorrendo, por mais ética que seja,  a vontade do persuasor se impôs à do persuadido, alterando sua percepção das coisas e dos fenômenos.

Como a ninguém é dado a primazia de saber o que é certo ou errado, se o Outro é persuadido sem que isso tenha ocorrido por si mesmo, sem interferência externa, então temos, mesmo quando inconscientemente, uma imposição de vontade.

Evidente que no mundo das verdades da ciência, não se há que falar em persuasão: aqui a demonstração lógica se impõe por si mesma.

Na persuasão, a ocultação inconsciente da intenção de imposição da vontade do persuasor pressupõe, na maioria das vezes, uma crença, a fé nos próprios desígnios de quem persuade, mas nem sempre é assim.

Aquele que tenta persuadir não raro o faz deliberadamente, querendo influenciar o Outro a modificar sua vontade. Em tese, seria esse um dos alicerces da Democracia.

A manipulação, por sua vez, é "la bête noire" da Retórica. O propósito a ser obtido é escuso. Aqui não há limite ético quanto à intenção da alteração da vontade do Outro.

Assim ocorre, também, no que diz respeito à sedução.

Qual a diferença entre manipulação e sedução? Sutil. Somente pode ser percebida por intermédio da introdução da noção de “vontade”.

Essa noção, segundo Hannah Arendt[1], foi introduzida na discussão filosófica por intermédio de São Paulo, em sua famosa Carta aos Romanos. Através dela, podemos entender por que o “eu quero” nem sempre corresponde ao “eu consigo”.

Ou seja, minha razão pode determinar claramente o rumo a ser seguido, entretanto não consigo me colocar em movimento.

Na manipulação[2], a razão e a vontade do Outro, enganado, aderem à vontade do persuasor; na sedução, a razão é contra, mas cede por não ter forças para a recusa.

Na sedução o Outro não é enganado e não muda sua percepção das coisas ou fenômenos, entretanto não consegue resistir ao sedutor.

Seja persuasão, seja manipulação, seja sedução, todas são instrumentos da Retórica, que é uma técnica de obtenção e manutenção do Poder, e têm, como objetivo, fazer com que a vontade de quem a utiliza influencie, seduza ou manipule, no sentido de alterá-la, as ações do Outro.

[1] Responsabilidade e Julgamento; ARENDT, Hanna.

[2] Justiça versus Segurança Jurídica e Outros Fragmentos; de MEDEIROS, Honório.

honoriodemedeiros@gmail.com
@honoriodemedeiros

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

HISTORIADORES DO RIO GRANDE DO NORTE

 





Da esquerda de quem olha, para a direita, Gustavo Sobral, Honório de Medeiros e André Pignataro

Livro Historiadores do Rio Grande do Norte apresenta perfis de historiadores potiguares.

A editora "Biblioteca Ocidente" acaba de publicar o livro Historiadores do Rio Grande do Norte, organizado por Gustavo Sobral, Honório de Medeiros e André Felipe Pignataro.

O livro reúne perfis biográficos de historiadores potiguares dos séculos XIX e XX. A obra é a primeira do gênero publicada no Rio Grande do Norte, um marco para a preservação e valorização da memória histórica e intelectual do estado.

Cada capítulo foi escrito por convidados, entre pesquisadores, professores, escritores, estudantes e historiadores, que adotaram diferentes estilos, do acadêmico ao literário, do ensaístico ao tom de homenagem.

O resultado é um mosaico de abordagens que reflete também a diversidade dos próprios historiadores retratados.

O livro está disponível para download gratuito no site da Editora Biblioteca Ocidente; https://revistagalo.com.br/selo-bo/; e também em gustavosobral.com.br.

Para quem deseja adquirir a versão impressa, o título pode ser encontrado na loja. uiclap.com

Outras publicações dos organizadores:

Governo do Rio Grande do Norte, organizado por Gustavo Sobral, Honório de Medeiros e André Felipe Pignataro e Potiguariana IHGRN de Gustavo Sobral e André Felipe Pignataro. Mais informações e acesso gratuito às obras no site gustavosobral.com.br.

domingo, 7 de setembro de 2025

O IDEALISMO RADICAL É A LOUCURA DA RAZÃO

 

Arte: ideiasparalelas.blogspot.com



* Honório de Medeiros


O idealismo radical é a loucura da razão: estamos à mercê de uma idéia de realidade que somente existe em nossa imaginação. Algo como, talvez, o sonho de um semideus demiurgo. Sonhamos que sonhamos.
Como não lembrar Chuang Tzu?
"Chuang Tzu sonhou ser uma borboleta. Ao despertar não sabia se era Tzu que havia sonhado que era uma borboleta ou se era uma borboleta e estava sonhando que era Tzu”.
Lembra a realidade imaginária de Matrix, única e exclusiva criação de um sonho induzido, conduzido e coletivo, no qual sonhamos que estamos vivos: uma instigante analogia com o idealismo radical.
Conduz-nos à fonte de tal ousadia alegórica, qual seja a ancestral concepção hindu de que a realidade imaginária é algo criado por Maya, a deusa da ilusão, que nos faz crer que estamos vivos e conscientes quando, na realidade, nada mais fazemos que sonhar.
Outro estranho paralelo é o mito da caverna de Platão, com o qual aprendemos o quanto estamos distantes do real, imersos na contemplação de nossas próprias sombras.
E a razão lúcida, sobreviveria por si somente?
Pensar, pensar o pensamento, pensar o pensamento pensado, enveredar pelo caminho do pensar exponencialmente não seria outro caminho para encontrarmos, no infinito, o próprio idealismo radical?
 
honoriodemedeiros@gmail.com / @honoriodemedeiros

sábado, 6 de setembro de 2025

O QUE RESERVAVA CADA CAMINHO QUE NÃO PERCORREMOS?


* Honório de Medeiros


Cada um de nós, no presente, é refém das escolhas que fez no passado.

Bifurcações, encruzilhadas, caminhos com possibilidade única de retornar ou seguir em frente, qualquer opção tomada nos encaminhou a um futuro escolhido e desfez, naquele preciso instante, para sempre, a possibilidade de vivermos o que foi deixado para trás.

Muito embora às vezes pudéssemos ter uma pálida ideia do que viria quando a opção foi feita, são tantos os desdobramentos seguintes que qualquer certeza logo se desfaz, tal sua evanescência.

Angustia-nos saber, hoje, que a opção foi um ponto-sem-volta, que nunca saberemos, concretamente, o que aconteceria se, no passado, tivéssemos seguido de forma diferente.

Aquela rua que não foi transposta, a esquina que não foi dobrada, o adeus que foi ou não dado, o não ou o sim que proferimos em certo lugar, há tanto tempo, o que nos reservava cada caminho que não percorremos? 

@honoriodemedeiros

honoriodemedeiros@gmail.com

Imagem: @honoriodemedeiros e @barbaramichaellalima

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

ATÉ QUE TUDO CESSE, NÓS NÃO CESSAREMOS

 

CENTRO ACADÊMICO AMARO CAVALCANTI DO CURSO DE DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE


* Honório de Medeiros


Em 1979, entrei no Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Vinha do Curso de Matemática, mas, a mim, faltara vocação.

Ainda estávamos em plena ditadura militar. Críticas ao Governo eram feitas com muito receio. Não fazia muito tempo que a repressão implicava em tortura e desaparecimento.

No Planalto, o Presidente João Figueiredo iria substituir Ernesto Geisel e continuar a “abertura política lenta e gradual”, timidamente iniciada por seu antecessor, sob a batuta do General Golbery do Couto e Silva.

O Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti, do Curso de Direito, cujo grito de guerra era “até que tudo cesse, nós não cessaremos”, fora extinto em anos anteriores, assim como todos os outros, substituídos por Diretórios Acadêmicos que representavam cada Centro Universitário.

A razão era óbvia: era muito mais fácil os órgãos de repressão controlarem diretórios acadêmicos, em bem menor número, que centros acadêmicos, um por cada curso existente na Universidade.

Nos corredores do curso de Direito, um grupo de estudantes, do qual eu fazia parte, se reunia habitualmente para discutir política, principalmente a participação no processo de democratização que se desenrolava à conta-gotas no Brasil, e livros, muitos livros.

Tínhamos em comum o hábito da leitura, o amor pela discussão, o interesse pela política.

Em certo momento, logo no começo do curso, resolvemos dar um passo além: refundarmos o Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti, do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, de tantas e gloriosas tradições.

Realizamos duas notáveis Assembleias Extraordinárias, para as quais todos os alunos do curso foram convidados e compareceram em massa.

Contávamos, também, com a simpatia de alguns poucos professores do curso, principalmente o Professor Jales Costa, de saudosa memória pelo exemplo, cultura e empatia com seus alunos.

Aprovada a proposta por unanimidade, ressurgiu, então, o Centro Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Seu primeiro presidente, eleito pela última Assembleia, foi João Hélder Dantas Cavalcanti. Tive a honra de ser o segundo, dessa vez com disputa eleitoral.

O Centro Acadêmico protagonizaria momentos impressionantes, logo após seu retorno às atividades: fizemos o primeiro debate, no Brasil, nos estertores da ditadura, em pleno auditório da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cedido, para nosso espanto, pelo Reitor à época, professor Diógenes da Cunha Lima, justiça lhe seja feita.

O evento foi noticiado pela grande imprensa brasileira. Em noite memorável, Aluízio Alves e José Agripino Maia debateram, sob a mediação do Professor Jales Costa, acerca dos destinos políticos do Brasil e do Rio Grande do Norte, naquela que seria a primeira eleição direta para Governador do Estado após 1964.

Aqui ressalvo a conduta do então Prefeito de Natal, por eleição indireta, José Agripino Maia. Eu e João Helder fomos a sua residência para convidá-lo. Sabíamos que toda seu “entourage” era contra sua ida ao debate.

Fizemos o convite, ponderando acerca de quão ruim seria para sua imagem as fotos de sua cadeira vazia em pleno auditório lotado, bem como quão ruim seria para a democracia que estava ressurgindo sua negativa em participar.

Jussier Santos, um dos seus secretários municipais, fez uso da palavra se colocando contra a participação de José Agripino, alegando que toda a plateia presente seria, com certeza, claque de Aluísio Alves.

José Agripino, entretanto, não hesitou e confirmou sua presença. Ponto para ele, nós, e a democracia.

Não paramos. Dias depois colocamos para debater entre si, sob minha mediação, os dois candidatos principais, no mesmo pleito, ao Senado da República pelo Rio Grande do Norte: Roberto Furtado, pela oposição, e Carlos Alberto de Souza, pela situação.

Carlos Alberto levou uma claque disciplinada para aplaudi-lo, liderada por Eri Varela, seu assessor. A noite foi tumultuada, mas tudo terminou acontecendo da melhor forma possível.

Continuando o exercício de ousadia, realizamos vários encontros nos quais foi discutida abertamente, com a presença maciça de estudantes e professores, a relação entre marxismo e Direito.

Para um desses debates foi convidado, especialmente, o ex-Governador Cortez Pereira, naquele momento ainda cassado em seus direitos políticos. Cortez Pereira uma vez me disse que tinha sido sua primeira manifestação pública desde a cassação.

Por fim, e não menos importante, fizemos também o primeiro debate, no Brasil, entre os candidatos a Reitor à sucessão do Professor Diógenes da Cunha Lima, mesmo que o pleito viesse a ser, como de fato o foi, realizado de forma indireta.

Todos concorrentes compareceram. Lá estiveram Pedro Simões, Dalton Melo, Jales Costa, Genibaldo Barros e Lauro Bezerra.

Resgato essas lembranças graças sob o impacto das manifestações que estão ocorrendo no Brasil e que, segundo minha avaliação, são muito importantes politicamente.

Desejo ardentemente que o povo enseje as mudanças que o Brasil precisa, principalmente no que diz respeito ao combate feroz e determinado contra a corrupção.

E tendo resgatado essas lembranças aproveito para homenagear meus companheiros de luta daquela época: João Hélder Dantas Cavalcanti, Evandro Borges e Rossana Sudário, em nome dos quais abraço todos quanto estiveram conosco naquelas gloriosas manhãs na sala F1, do Setor V, do Centro de Ciências Sociais Aplicadas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, gritando, juntos, felizes, ansiosos para mudar o Brasil: “até que tudo cesse, nós não cessaremos”.

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@honoriodemedeiros

domingo, 31 de agosto de 2025

CANGAÇO E CORONELISMO NO RIO GRANDE DO NORTE

 

José Augusto Bezerra de Medeiros

* Honório de Medeiros


Quem critica o Cangaço hostiliza a História e não entende o que é o Poder. 

O Cangaço lança luz sobre a História e o Poder, consequencia de sua intrincada trama com o Coronelismo e o Fanatismo (Misticismo).

São os seguintes os principais cangaceiros que escreveram parte de sua história no Estado do Rio Grande do Norte: José Brilhante de Alencar Souza ("Cabé”), nascido em Pombal, na Paraíba, em 1824, e morto em Pão de Açúcar, Alagoas, em 1873; Jesuíno Alves de Mello Calado (“Jesuíno Brilhante”), nascido em Martins, RN, em 1844, e morto em Belém de Brejo do Cruz, novembro/dezembro de 1879; Macilon Leite de Oliveira (“Massilon”), nascido em Timbaúba dos Mocós, 1897, e morto em Caxias, Maranhão, em 1928; e Virgolino Ferreira da Silva (“Lampião”), nascido em 4 de junho de 1898, em Serra Talhada, Pernambuco, e morto em 28 de julho de 1938, em Poço Redondo, Sergipe.

O único norte-rio-grandense foi Jesuíno Brilhante, o primeiro dos cinco grandes da história do cangaço: Jesuíno, Antônio Silvino, Sinhô Pereira, Lampião e Corisco, em ordem cronológica. 

Existe a suspeita de que Virgínio Fortunato da Silva (“Moderno”), viúvo de uma irmã de Lampião, Angélica Ferreira da Silva, era dos Fortunato de Alexandria, no Rio Grande do Norte, mas isso nunca foi comprovado. 

E são os seguintes os fatos na História do Rio Grande do Norte nos quais Coronelismo e Cangaço estão fortemente entrelaçados: a invasão de Martins por Jesuíno em 1876; a invasão de Apodi por Massilon em 1927; a invasão de Mossoró por Lampião e Massilon em 1927. 

Todos essas atividades cangaceiras estão conectadas com o Coronelismo. 

Não houve Coronelismo no Sertão nordestino sem entrelaçamento com o Cangaço; não houve Cangaço sem Coronelismo. Acrescente-se a esses ingredientes o Fanatismo (Messianismo) e teremos um ponto-de-partida para a real história da época dos coronéis e cangaceiros.

Sempre tratamos esses fatos pelo COMO aconteceu e de forma folclórica, no sentido negativo do termo, mas precisamos nos indagar o PORQUÊ factual que os originou.

Tanto o Coronelismo quanto o Cangaço são expressões particulares do momento histórico específico que caracteriza o fim da República Velha no Sertão nordestino, muito embora seu padrão, enquanto disputa pelo Poder, seja recorrente na história das civilizações, sob outras formas, haja vista, por exemplo, o feudalismo europeu e japonês, e sua semelhança com esses objetos de estudo. 

As invasões de Apodi e Mossoró são indissociáveis, se constituem em epicentro de um processo político que durou aproximadamente dez anos e dizem respeito a disputas políticas entre famílias senhoriais do Sertão paraibano e potiguar, tendo como fio-condutor, protagonista, o cangaceiro Massilon. 


 Rafael Fernandes Gurjão


Em 1924, José Augusto Bezerra de Medeiros, representante da fina flor da aristocracia rural algodoeira do Rio Grande do Norte, chegou ao poder. Seu intento, segundo cronistas da época, era construir uma oligarquia semelhante a dos Maranhão.

Em 1927, o Rio Grande do Norte, cujas principais regiões eram Natal, o Oeste e o Seridó, estavam sob seu controle político, a despeito do crescimento político e econômico dos Fernandes cujas raízes estavam fincadas na Região que começava em Mossoró, passava por Apodi, Pau dos Ferros e terminava em Luis Gomes, fronteira com a Paraíva. 

Em 1928 Zé Augusto elegeu seu sucessor, o sobrinho-afim Juvenal Lamartine, controlando o Seridó e tendo o Oeste como aliado.

Entretanto, em 1930 veio a Revolução que culminou com o golpe político que elevou Getúlio Vargas ao Poder. 

Getúlio entregou o Poder, após uma série de interventores, a Mário Câmara, aliado de Café Filho e dos adversários de Zé Augusto no Estado. 

Zé Augusto reagiu. Driblou as pendengas com os Fernandes, afinal faziam parte da mesma base econômico-política, qual seja a aristocracia rural algodoeira que dominava o Seridó e o Oeste, e juntos criaram o Partido Popular para lutar contra a candidatura de Mário Câmara em 1934.

Assim, na mais cruenta eleição que jamais houve no Rio Grande do Norte, o Partido Popular saiu vitorioso, e Rafael Fernandes, o líder da família Fernandes, foi eleito Governador do Estado.

Zé Augusto elegeu-se Deputado Federal.

Durante a campanha foram assassinados o Coronel Chico Pinto, em Apodi, e Otávio Lamartine, filho de Juvenal Lamartine. Espancamentos, ameaças, humilhações, depredações, torturas, foram incontáveis.

O Coronel Chico Pinto era ligado aos Fernandes; Otávio Lamartine a Zé Augusto.

À sombra de ambos, tramando contra, outros coronéis; à sombra desses coronéis, cangaceiros...

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sábado, 30 de agosto de 2025

MANOELITO PEREIRA, OU DA ARTE DE APRISIONAR UM INSTANTE

 


Manoelito Pereira

* Honório de medeiros

Alguns anos atrás o antigo Centro Mossoroense promoveu, em Natal, uma exposição com pequena parte do acervo fotográfico de Manoelito Pereira.

Ao mesmo tempo, prestou-lhe uma homenagem através de seus descendentes.

E os mossoroenses, além de outros interessados, puderam constatar seu talento através das fotografias expostas na Capitania das Artes.

Vivo fosse, talvez Manoelito tivesse encarado com ressalvas as fotografias escolhidas para a exposição. Faltaram aquelas que melhor expunham sua arte: os tipos populares, os nus artísticos, a própria cidade.

Sim, porque já naquela época, ou por isso mesmo, ele construiu um legado contemporâneo do futuro - em termos de arte os conteúdos, como o querem alguns filósofos, ditam a forma - jamais o contrário.

Embora seja compreensível a razão do Centro Mossoroense ter escolhido as fotografias de membros de antigas famílias da cidade para o evento, não seria demais a lembrança do caráter paroquiano dessa escolha. 

No final das contas a exposição, que pretendia homenagear Manoelito, transformou-se numa homenagem de mossoroenses a mossoroenses através das fotografias expostas.

Assim é que não se via outra coisa, na Capitania das Artes, senão mossoroenses procurando a si mesmo e a seus ancestrais nas imagens.

Um fato no mínimo curioso, para um evento aberto ao público para homenagear a arte - embora também a memória por ele construída - de um artista finalmente e justamente lembrado.

Não importa. De qualquer maneira a homenagem, merecida, foi feita.

E o melhor, do acontecimento, foi chamar a atenção dos próprios mossoroenses para o valor incalculável do acervo doado por sua família a Mossoró.

Não é à-toa a importância que estudiosos de grandes universidades do sul dão ao acervo.

Tornado público, talvez seja mais difícil sua destruição, embora não haja mais como recuperar o muito que se perdeu, ao longo do tempo.

Saliente-se que o valor da obra de Manoelito não reside apenas no aspecto histórico.

Se, através das lentes de suas máquinas fotográficas, captou e registrou quase cinquenta anos da vida de Mossoró, muito mais se torna fundamental seu trabalho quando o observamos a partir de uma perspectiva acadêmica e, com os olhos de estudiosos, agradecemos sua contribuição para entendermos a evolução de uma cidade com as características de Mossoró.

Entender como Mossoró avançou no tempo é entender aspectos da história das cidades, do Sertão, Nordeste, Brasil, enfim, de nós mesmos.

Ou seja, o instante que Manoelito aprisionou é, aos olhos do estudioso, um imenso objeto de estudo a ser desvendado e compreendido. Lá estão, à sua espera, congeladas no espaço e no tempo, com arte, imagens que revelam fenômenos históricos, sociológicos, econômicos.

Debruçados sobre eles, assim como se debruçaram outros sobre as pinturas, as estátuas, a arte, enfim, dos antigos, estudiosos construíram a história da humanidade.

Entretanto, mais que alguém desejando fazer o registro de várias épocas, Manoelito construiu arte. Neste aspecto, não se sabe se sua vida imitou a arte, ou o contrário.

Como todo artista, estava à frente de seu tempo não só no que diz respeito à arte em si, mas também ao seu estilo de vida.

E parecia compreender essa perspectiva, quando transcendia a diuturnidade das exigências comerciais que lhe eram impostas pela necessidade de sobrevivência compondo fragmentos-imagens de uma beleza sem par, mesmo se somente lhe era solicitado o aprisionamento de um instante específico através de uma fotografia.

Ele não fotografava, compunha. Transformava o árido em fértil, o cinzento em festa para os olhos, o jogo de sombras em arte.

Repousa sobre o meu birô de trabalho uma foto de minha mãe, feita por ele, onde está estampado, com rara felicidade, o melhor de seu talento.

Não podia ser diferente: virou lenda a exigência e rispidez com a qual, mesmo no tumulto de casamentos ou outras festas, produzia as fotografias a ele encomendadas.

E, compondo, reafirmou a crença - pelo menos para uns poucos - de que somente artistas como ele, antenas da raça, ungido dos deuses, conseguem tornar-se eternos.

honoriodemedeiros@gmail.com
@honoriodemedeiros

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

JUSTIÇA? QUE JUSTIÇA?

 

Themis (falaguarda.blogspot.com)


* Honório de Medeiros


Aos meus alunos do curso de Filosofia do Direito, vez por outra eu propunha o seguinte problema: 

“Façam de conta que vocês são chefes de uma estação de trens, responsáveis, entre outras coisas, pela direção que as locomotivas devem tomar em seus percursos diários 

Um dia, durante o expediente, vocês recebem um comunicado urgente lhes informando que uma das locomotivas que passam em sua estação está completamente desgovernada e em alta velocidade. 

Em sua estação vocês têm a possibilidade de direcionar a locomotiva, apertando os botões A ou B, por duas diferentes opções. 

Seu tempo para decidirem é extremamente curto. Algo como segundos. E implica em salvar vidas. 

Vocês sabem que na linha A trinta homens estão trabalhando na manutenção. Na linha B, cinco homens. 

Qual a decisão de vocês?”. 

Em todos os anos de ensino, a resposta foi sempre a mesma: todos optaram por apertar o botão B. Ao lhes indagar porque faziam assim, respondiam-me que parecia certo escolher a linha na qual estavam menos homens. 

Então, eu lhes perguntava: “e se, na linha B, estava um engenheiro de manutenção, que por coincidência, era pai de vocês”? 

Seguia-se um silêncio embaraçoso. A grande maioria se recusava a responder à questão. 

Questões como essas começam a ser esmiuçadas pela psicologia social, um ramo que em muito deve seus avanços à combinação de duas vertentes poderosas: a teoria da seleção natural de Darwin, e o afã em larga escala, tipicamente americano, de realizar pesquisas de campo. 

É nesse nicho que transitou Leonard Mlodinow, festejado autor de “O Andar do Bêbado”, em seu novo livro denominado "Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas". 

Mlodinow é doutor em física e ensina, ou ensinou, no famoso Instituto de Física da Califórnia. Mais que isso, ele é coautor, junto com Stephen Hawking – sim, isso mesmo – de alguns livros de inegável sucesso tanto de público quanto de crítica. 

Em "Subliminar", Mlodinow, fundamentado em vasta pesquisa, nos encaminha a hipóteses instigantes, como essa que eu transcrevo abaixo: 

“Como enuncia o psicólogo Johathan Haidt, há duas maneiras de chegar à verdade: a maneira do cientista e a do advogado. Os cientistas reúnem evidências, buscam regularidades, formam teorias que expliquem suas observações e as verificam. Os advogados partem de uma conclusão à qual querem convencer os outros, e depois buscam evidências que a apoiem, ao mesmo tempo em que tentam desacreditar as evidências em desacordo. 

Acreditar no que você quer que seja verdade e depois procurar provas para justifica-la não parece ser a melhor abordagem para as decisões do dia a dia. 

(...) 

Podemos dizer que o cérebro é um bom cientista, mas é um advogado absolutamente brilhante. O resultado é que, na batalha para moldar uma visão coerente e convincente de nós mesmos e do resto do mundo, é o advogado apaixonado que costuma vencer o verdadeiro buscador da verdade”. 

Muito embora o autor se refira a advogados, claro que ele alude a todos quanto lidam com a tarefa de produzir, interpretar e aplicar a norma jurídica. 

Em assim sendo faz sentido acreditar, como muitos acreditam, que os juízes, por exemplo, primeiro constroem um ponto de partida extrajurídico (sua visão do mundo, seus valores, seus interesses pessoais etc.) e, somente depois, buscam evidências que apoiem suas futuras decisões. 

Isso é o que denominamos de "Retórica", aquela esmiuçada por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca em "A Nova Retórica". 

A resposta acerca de como os operadores do Direito constroem esse ponto de partida pode ser lida em um dos mais instigantes capítulos da obra de Mlodinow: “In-groups and out-groups”. Nesse capítulo o autor chama a atenção para um epifenômeno que, hoje, é fato científico: a tendência que temos de favorecer “os nossos”, amplamente estudada pela "Sociologia" e "Antropologia" a partir da "Teoria da Seleção Natural": 

“Os cientistas chamam qualquer grupo de que as pessoas se sentem parte de um ‘in-group’, e qualquer grupo que as exclui de ‘out-group’. (...) É uma diferença importante, porque pensamos de forma diversa sobre membros de grupos de que somos parte e de grupos dos quais não participamos; como veremos, também veremos comportamentos diferentes em relação a eles.

Quando pensamos em nós mesmos como pertencentes a um clube de campo exclusivo, ocupando um cargo executivo, ou inseridos numa classe de usuários de computadores, os pontos de vista de outros no grupo infiltram-se nos nossos pensamentos e dão cores à maneira como percebemos o mundo. 

Podemos não gostar muito das pessoas de uma maneira geral, mas nosso ser subliminar tende a gostar mais dos nossos companheiros do nosso "in-group".

Essa constatação – de que gostamos mais de pessoas apenas por estarmos associados a elas de alguma forma – tem um corolário natural: também tendemos a favorecer membros do nosso grupo nos relacionamentos sociais e nos negócios (...)” 

Ou seja, como diz o senso comum: para os amigos tudo; para os indiferentes, a lei; para os inimigos, nada... 

Se assim o é, e a ciência vem demostrando que sim, um dos corolários da obra de Mlodinow é pelo menos intrigante, e dá razão ao que dizem, desde há muito, vários pensadores, ou seja, acerca da "visão de estamento", estudada por Raymundo Faoro em "Os Donos do Poder", que contamina as decisões do aparelho judiciário.

Não somente do aparelho judiciário. Contamina a produção, interpretação e aplicação da norma jurídica. 

Isso, também, pensam os marxistas e anarquistas. Quanto aos darwinistas, nem se discute mais o assunto. Para quem não é anarquista, marxista, ou darwinista, basta Gaetano Mosca, autor de "The Ruling Class", "A Teoria da Classe Política", que também aborda, brilhantemente, essa perspectiva, quando trata da "classe política dirigente". 

Quase um consenso. 

E quanto ao mundo jurídico? Neste caso, ainda está muito atrasada a discussão. Ainda há "juristas" que discutem se Direito é ou não ciência!


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terça-feira, 26 de agosto de 2025

A BUSCA POR MASSILON

 


* Honório de Medeiros


Sempre me perguntam como me encaminhei para o estudo do cangaço. Eis a resposta...

As férias de minha meninice, excetuando quando ia para o Sertão do Alto Oeste Potiguar, nos meses chuvosos de julho, foram passadas na Praia de Tibau (do Norte).

As noites eram típicas do nosso verão litorâneo, com muito vento e pouquíssimas nuvens, frio mais intenso quanto mais tardia se fizessem as horas, todas à luz do lampião de gás no alpendre que nos agasalhava, e no qual eu ficava entre dormitando e acordado, medroso com a escuridão, acompanhando de relance as figuras que o bruxuleio da luz desenhava nas paredes e ouvindo as conversas dos adultos.

Para lá eu ia como companhia oficial de minha tia, a dona da casa, tão logo chegassem os primeiros dias de janeiro. Nessa época o centro de poder familiar era plenamente exercido por Tio Ezequiel[1], irmão de minha avó materna, líder da família e homem considerado muito rico para os padrões de então.

Ele era o principal acionista de Alfredo Fernandes Indústria e Comércio, uma empresa com sede em Mossoró e que se dedicava, principalmente, ao beneficiamento de algodão.

Nele me impressionava o distanciamento que sabia impor, sem elevar, a voz e seu vagão de trem permanentemente guardado em um galpão imenso vizinho ao escritório central da empresa, para ser usado em seus deslocamentos até o Sertão, em suas férias anuais, mês de julho, na Fazenda João Gomes, latifúndio encravado nas proximidades de Marcelino Vieira, cuja casa-grande foi construída por ancestrais comuns[2].

Era, então, no entorno de Tio Ezequiel, que a família se reunia quando ele ia a Tibau, para a casa de seu sobrinho Chico Sena[3], passar o final-de-semana.

Conversava-se debaixo do alpendre a respeito de tudo: a vida, a morte, a seca, a invernada, a carestia, a fartura, a política, mas a noite sempre terminava com alguma história antiga da família Fernandes, principalmente os episódios vividos por Childerico, o "Novo", que se fora para a Amazônia entre menino e rapaz, mais precisamente o Acre, ou pelo outro Childerico, sobrinho daquele, que tivera o bando de Lampião, por angustiantes momentos, na propriedade rural que ele administrava, quando de sua fuga de Mossoró[4].

Naquela época Tio Childerico, o que se fora, já era lenda aqui e na Amazônia. As histórias que se contavam a seu respeito, boa parte por Calazans Fernandes em sua obra "O Guerreiro do Yaco", diziam respeito a anos passados no meio da selva sem qualquer contato com a civilização, convivência com índios desconhecidos de hábitos indescritíveis, riquezas fabulosas amealhadas com a venda de borracha, quilômetros e mais quilômetros de terras adquiridas e perdidas em um passe de mágica.

O "Guerreiro do Yaco" foi o primeiro volume de uma trilogia romanceada, jamais acabada, de sua vida[5].

Quanto ao outro Childerico, sua história era mais recente: dizia respeito à passagem do bando de Lampião, após o ataque frustrado a Mossoró, pela propriedade “Veneza”, gerenciada por ele e pertencente a Alfredo Fernandes, seu primo legítimo.

Dizia respeito, também, à atitude de um cangaceiro, por nome Massilon, de quem Tia Bebela, esposa de Childerico, se valera para proteger seus filhos, principalmente Fernando Fernandes, recém-nascido, das torturas das quais era ameaçado por não conter seu choro.

Massilon fora, no dizer de Tia Bebela, seu “anjo-da-guarda”. Por essa razão, até morrer, todo ano mandava celebrar uma missa em sua intenção e em ação de graças pelo salvamento de seus filhos.

Ainda por outra razão minha relação com o cangaço é bastante antiga: nasci e cresci à sombra da Igreja de São Vicente, a igreja da “bunda redonda”, brinquei, assisti missa, novena de Santo Antônio, sem perder o contato com as marcas que o combate contra Lampião deixou em suas paredes e torre.

Na mesma rua onde nasci e me criei e onde moraram meus pais até que os levasse os desígnios de Deus, no seu final, número 85, ali onde a Francisco Ramalho termina, do lado direito de quem vai para o bairro da Paraíba e com a Igreja de São Vicente a sua esquerda, ficava a casa onde Tio Ezequiel, Tio Chico Sena, que na época tinha dezesseis anos, e alguns empregados de Alfredo Fernandes, montaram resistência armada aos invasores[6].

Cenário bastante conhecido por mim e que me valeu uma nota 10, muitos anos depois, quando fazendo um trabalho escolar em cartolina, apresentei, junto com meus colegas de grupo, uma maquete no qual se vislumbrava como tinha acontecido a invasão de Mossoró e a posterior fuga dos cangaceiros.

Em 1977, ano do cinquentenário do combate, foi inaugurada a Escola 13 de Junho tendo como sede, ironicamente, a casa que ficava exatamente no extremo oposto à de Tio Ezequiel. Minha mãe fora nomeada sua primeira Diretora e naquelas festividades conheci o primeiro ex-cangaceiro ainda vivo: Asa Branca.

Mas somente anos depois, graças a dois acontecimentos distintos embora relacionados, resolvi sair em busca de Massilon.

O primeiro deles foi uma conversa em tom de brincadeira com o jornalista Jânio Rêgo, amigo de infância, acerca de um artigo, escrito por Aléxis Gurgel, que ele lera no Jornal “O Mossoroense”, e que inovava quanto ao suposto motivo real que levara Massilon a empreender seu projeto relativo à Mossoró[7].

O segundo foi conhecer e me tornar amigo de Paulo Gastão, o Presidente, à época, da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço – SBEC, e Kydelmir Dantas, um dos maiores pesquisadores do tema, no Brasil.

A essa confluência de acontecimentos se agregou o interesse de sempre acerca da história da minha família materna, da qual é momento precioso, segundo minha avaliação, desde a história dos Fernandes do Alto Oeste potiguar, à resistência oposta por Rodolpho Fernandes à Lampião[8], passando antes pela luta de Agostinho Pinto de Queiroz[9] na revolução de 1817, as aventuras de Childerico Fernandes, o "Guerreiro do Yaco", na Amazônia, a história política do interventor Rafael Fernandes, dentre outros, bem como os episódios conhecidos ou aqueles obscuros e nebulosos que ainda não vieram à luz, relacionados com os acontecimentos de 1927 em Mossoró.

Agregou-se também, como algo que latejava permanentemente em minha memória, o fascínio pela história desse “cangaceiro” obscuro, valente, sem o qual, com absoluta certeza, jamais teria havido a invasão de Mossoró.

Por todos esses motivos surgiu o livro "Massilon: Nas Veredas do Cangaço e Outros Temas Afins".

[1] Na residência de Ezequiel Fernandes de Souza houve uma trincheira na luta contra Lampião em Mossoró. Tio Ezequiel, que havia sido pai recentemente, viu sua esposa, Ester, ser acometida da febre puerperal que a vitimou, em decorrência da invasão. Informação de sua sobrinha Francisca Ida Fernandes Marcelino, irmã de minha mãe, casada com José Marcelino de Oliveira e cunhada do médico João Marcelino, o mesmo que tratou de Jararaca em Mossoró.

[2] Em 1742 Francisco Martins Roriz, morador da Ribeira do Jaguaribe, fundou no alto da serra uma fazenda de criar e plantar, que daria origem ao povoado que tomou seu nome: Martins. Lembra Manoel Onofre Jr., em "Martins, a Cidade e a Serra", que a origem da Capela à margem da Lagoa dos Ingás e em torno da qual a povoação cresceu, está envolta em lenda: reza a tradição que a esposa de Francisco Martins desapareceu de casa sem deixar vestígio. Desesperado, Martins fez uma promessa a Nossa Senhora da Conceição: se achasse a mulher – viva ou morta – mandaria construir, no local, uma capela em honra daquela santa. Logo mais seria localizada, bem à margem da lagoa, o corpo da mulher do sertanista, já em estado de putrefação. E Martins cumpriu o voto, mandando erigir a capela ali mesmo. 

[3] Francisco Fernandes de Sena (Chico Sena) estava na trincheira de seu tio, Ezequiel Fernandes de Souza. Tinha 16 anos. Foi Interventor em sua terra natal, Pau dos Ferros, RN.

[4] Childerico Fernandes de Souza (1889-1978), filho de Francisca Fernandes de Souza e Hipólito Cassiano de Souza. Nos primeiros anos do século XX foi trabalhar no Acre com seu tio materno Childerico José Fernandes de Queiroz Filho, o ”Guerreiro do Yaco”. Esteve com seu tio na revolução de 1912, segundo nos informa Arnaldo Fernandes de Souza em "Os Fernandes de Souza", que depôs o prefeito de Sena Madureira, Acre. Morava na fazenda Veneza quando Lampião a invadiu, em 1927, após atacar Mossoró, em episódio por demais conhecido na literatura do cangaço. Era tio materno de minha mãe.

[5] Em 1939 Câmara Cascudo escreveu artigo acerca da morte de Childerico José Fernandes de Queiroz Filho (falecido em 26 de março de 1939), o “Guerreiro do Yaco”, título da obra homônima de Calazans Fernandes, e esclareceu porque tantos “Childericos” na família Fernandes: "Agostinho Pinto de Queiroz, agricultor na Serra do Martins, no Rio Grande do Norte, homem vivo e curioso, aderiu ao movimento republicano que rebentara em Portalegre no ano de 1817. Preso pelos legalistas cearenses, trazido para Natal, foi enviado aos cárceres baianos, onde sofreu até 1820 quando voltou aos ares da terra velha. Em 1831 marchou contra o caudilho Pinto Madeira e tal raiva lhe tinha que arrancou do nome Pinto e o substituiu por Fernandes. Presidente da Câmara Municipal de Martins, faleceu em 1869. Desse Agostinho Pinto de Queiroz ou Agostinho Fernandes de Queiroz vem uma tradição comovedora na família inteira. Prisioneiro na cadeia da Bahia, Agostinho teve um grande amigo na pessoa de um oficial chamado Childerico. Dispensa de serviços, melhora na alimentação, livros para ler, notícias para Martins, tudo Childerico arranjava. Indultado, Agostinho Pinto de Queiroz fez a singular promessa de manter na família o nome daquele a quem devia tantos obséquios. Até hoje, há mais de cem anos, a família Fernandes cumpre a imposição emocional de seu antigo chefe. Há sempre vários Childericos, nome de reis merovíngios, entre os sertanejos norte-riograndenses. Childerico José Fernandes de Queróz Filho foi um dos fiadores da promessa secular. Usou nome feudal e guerreiro, tatalante e sonoro como grito de excitação e de arrancada. Setuagenário, esse Childerico acaba de falecer, a 26 de março de 1939, no Rio de Janeiro, com uma história atribulada e valente. Eram essas as histórias que devíamos contar nos livros escolares, a glória útil e serena, o combate político, a honra lavada nos santos suores do trabalho contínuo, as batalhas pela vida limpa sob a bandeira sem nódoa do esforço inextinguível. O “Guerreiro do Yaco” depôs, pela força das armas, em 1912, comandando mais de uma centena de homens, o prefeito de Sena Madureira (AC)”.

[6] Membros da trincheira: Pedro Fernandes Ribeiro, Francisco Fernandes Sena, Raimundo Nonato Fernandes e dois trabalhadores armados de rifles – Murilo Eufrázio da Costa e Velho Chico, além do meu tio-avô materno Ezequiel Fernandes de Souza, além de outros.

[7] Artigo escrito em “A Gazeta do Oeste” de 17 de agosto de 2003 sob o título “O cangaceiro Massilon”.

[8] À época da invasão de Lampião a Mossoró era Prefeito de Pau dos Ferros meu tio bisavô materno Cel. Adolfo Fernandes. Manoel Rodrigues de Melo, em seu Dicionário da Imprensa no Rio Grande do Norte, informa que "A República, de 28 de junho de 1919, registrava o aparecimento deste jornal (“O Momento”) nos seguintes termos: ‘No dia 4 do corrente circulou na Vila de Pau dos Ferros o primeiro número d’O Momento, órgão do Partido Republicano Federal naquela localidade, sob a direção política do Coronel Adolfo Fernandes, tendo como diretor o Dr. Guilherme Lins e gerente o Sr. Galdino de Carvalho’. Segundo o jornal 'A República' seu colega pauferrense viria dar suporte à política estadual do Desembargador Ferreira Chaves".

[9] Quanto à mudança do nome de Agostinho Pinto de Queiróz para Agostinho Fernandes de Queiróz, conforme João Bosco Fernandes, em "Memorial de Família": "quando o Desembargador Vicente de Lemos fazia a remodelação do Arquivo da Secretaria do Governo, encontrou a prova documental desse fato e a entregou a um bisneto daquele revolucionário. Esse documento foi publicado em “A República”, no dia 30 de abril de 1926. Ver "História do Rio Grande do Norte", de Tavares de Lyra.

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