O candidato
Por Honório de Medeiros
Costa está com os olhos fulgurantes de felicidade: brilham eles arregalados pela adrenalina que JR, perfidamente, faz o sistema orgânico injetar no seu sangue ao lhe falar, às vezes arrebatadamente, às vezes melifluamente, que o patamar da riqueza já foi alcançado, falta o do poder político, que lhe está naturalmente destinado por que ele foi, é, e será um vencedor, na justa medida em que construiu sua própria história. Agora o Estado todo precisa tomar conhecimento dessa trajetória e usufruir do seu talento. Costa titubeia e expõem algumas fracas objeções. Nada sério. Nem ele mesmo quer acreditar nessas objeções. As imagens de uma possível derrocada, um desastre, são dilaceradas por outras mais vibrantes, cheias de vida, nas quais o povo, alucinado, ergue as mãos em sua direção como se seu futuro dele dependesse, como uma cópia viva da estátua de péssimo gosto, aos moldes do realismo socialista stalinista cravada no centro de Mossoró, em frente à Matriz, de um seu filho morto tragicamente em um acidente aéreo, na qual o finado olha para o infinito enquanto, em um piso abaixo, o povão, com o semblante de quem está em algum dos infernos de Dante, olha para ele e clama por um lugar no Paraíso.
JR, jornalista, publicitário, é envolvente e conta com alianças táticas entre os presentes na mesa do shopping para desenvolver seu aliciamento ou diversão. Ou os dois. Alianças essas costuradas ao longo de uma convivência nascida nos patamares da Igreja que lhe viu crescer, cevada nos bancos escolares, curtida nas esquinas da vida. Costa é de outra geração e está só, é uma ilha cercada de malandros. As serpentes que o isolam e chamam sua atenção, em um jogo infernal cuja melhor expressão é a famosa tática do urso e do texugo, no qual um bate e o outro lambe a pancada, entendem-se com um olhar. Palavras entre elas, as serpentes, quase não são necessárias: a mesa está posta, o baralho é conhecido, as regras do jogo são as mesmas de sempre, o alvo está definido, falta apenas o abate, após o enredamento com a malha cuja tessitura é constituída da mais fina vaidade, esse defeito ou qualidade que satanás entregou aos astutos para fazerem cair os soberbos.
O processo segue seu curso normal: “quem”, pergunta JR, “dentre esse pessoal que está aí”, diz ele enquanto as mãos, através dos dedos indicadores, passeiam por um horizonte indefinido e circular, “possui um perfil igual ao seu? Quem pode bater com as mãos no peito e dizer: eu me fiz sozinho, sem parentes, sem compadres, sem golpes de sorte, sem políticos que me ajudassem; com todos lidei na arena dos negócios sem receber concessões; com todos travei a dura luta pela sobrevivência? Ninguém.” Estabelece-se um silêncio dramático e estratégico. JR prossegue: “e digam para mim, não é este o momento certo para uma ruptura dentro das regras?” Entenda-se o “ruptura dentro das regras”: Costa pode ficar tranqüilo que mesmo sendo a dele uma candidatura fora dos padrões aos quais os políticos locais aderem desde ontem e sempre, não haverá, da parte dele, intenção de ser hostil a quem quer que seja para não causar sobressaltos inadministráveis. “Perfeito” lembra um dos ofídios. “Certíssimo”, diz outro. Um, ainda, do grupo, serve de contraponto, para reforçar o enredamento: “mas para isso ele terá que gastar muito”. Costa se sobressalta. Como todos quantos se fizeram sozinhos, é muito seguro do paraíso que conquistou. “Ora, ora”, diz JR. “Que diabo de campanha será essa na qual o candidato gastará seu dinheiro? Negativo. Alguns, escolhidos a dedo, gastarão por ele.”
É a felicidade, vê-se nos olhos de Costa. E o ofidário se regojiza. O que mais se há de fazer em uma tarde modorrenta senão essa imensa onda? Esse imenso cerco e abate? Costa tem que ir embora. Assume compromissos vagos, aperta a mão de cada um, levanta a cabeça, despede-se e vai, a borboletear cumprimentos aqui e ali, enquanto na mesa recém-abandonada, a aposta geral é que o medo de dar um passo maior que a perna vai fazer o projeto durar tanto quanto o efeito da cerveja no sangue: quase nada.