terça-feira, 15 de dezembro de 2009

MISSÃO VELHA: O TEMPO PASSADO E O TEMPO PRESENTE


Missão Velha, Ceará, Sertão profundo

Por Honório de Medeiros

A memória de Isaías Arruda insiste em vencer o tempo e a apatia geral do brasileiro com sua história, e aos poucos se transforma em mito na cidade que tomou pelas armas e onde exerceu seu poder de senhor feudal até a morte viesse buscá-lo da mesma forma como viveu: violentamente. Continuo relatando para Antônio Gomes o resultado da viagem ao Cariri. “Estamos em Missão Velha”, continuo. “Enquanto vagávamos no entorno da pequena praça principal fomos abordados e depois apadrinhados por Esly Almeida Melo, da velha aristocracia rural caririense e sua tradicional atenção sertaneja. Seu Esly, aposentado, filhos criados e no mundo, descia ou subia – depende do referencial – a pé, limpo, perfumado, barba feira, cabelos na brilhantina, bem vestido, em busca da Matriz para ‘puxar um terço’. Simpático, conversador, piadista, tornou-se nosso cicerone e historiador informal e foi o maior responsável pela obtenção, quase milagrosa, através das mãos da professora e escritora Célia Magalhães, de uma fotografia dos anos 20 onde Isaías Arruda, ao lado de vários outros, todos de paletó claro, diferencia-se pela altura, a trigueirice e o porte altivo. Ali estava aquele que foi, juntamente com Massilon Leite, o responsável pela invasão de Mossoró por Lampião.

Célia Magalhães é bem jovem, foi Secretária de Educação de Missão Velha e escreveu acerca dos ex-prefeitos da cidade. Ela e seu Esly levam-nos até a senhorial residência de Luís Jucá Arraes Maia, primo de ex-governador de Pernambuco já falecido, Miguel Arraes. Luis Maia é considerado o “intelectual” de Missão Velha. Já quase não fala e anda em decorrência de uma trombose. Mostra-nos sua coleção de selos e moedas antigas avaliada, por baixo, em mais de seiscentos mil reais. Já foi procurado por colecionadores do mundo inteiro. Enquanto ele se comunica precariamente com o Professor Pereira, que nos acompanha desde Cajazeiras, tento invadir com o olhar curioso os segredos daquela casa mais que centenária, ilhada por construções muito antigas – sobrados geminados com janelas avarandadas que se abrem afastando-se cada banda para um lado, e separadas da rua por uma grade de proteção de ferro batido ornamentada com flores-de-lis estilizadas. Não consigo. O sertanejo abre todas as portas de sua casa aos estranhos bem recomendados, mas conservam fechados, a sete chaves, as portas de sua intimidade. Mesmo assim posso compreender até fisicamente a dor da castelã quando me fala que há mais de quarenta anos está desterrada ali, em Missão Velha, longe da família, dos filhos, do bulício da cidade grande, do mar, de tudo quanto ama, pois há o dever de ir, até o fim, no compromisso que assumiu ao pé do altar. ‘A pior fase’, disse-me ela, ‘foram os três anos que passei enterrada no sítio.’ Como não ser capaz de compreender essa sensação que acomete aqueles que condenados ao ritmo lento da cidade pequena – cinza vida cinza – anseia pela febril velocidade da cidade grande?

O verde do Cariri, um verde que se destaca pelo imenso contraste com o semi-árido dos carrascais, poeira, sol-a-pino, grotões que havíamos deixado um pouco antes... A mansão feudal de Isaías Arruda, na qual há, inclusive, sala-de-armas e passagem subterrânea. A estação de trem, palco de tantos episódios históricos. Em uma delas, similar, em Aurora, Isaías tombou ferido de morte após levar, sem reagir, vários tiros desfechados por inimigos políticos seus. O prédio da Prefeitura por ele construída. A misteriosa história acontecida na casa onde hoje funciona a Secretaria de Educação. Os escombros de um passado já longínquo, mas presente, ainda recendendo a pólvora, sangue, baraço e cutelo da aristocracia rural sertaneja firmada em um ancestral código de honra. Os ‘cabras’, os jagunços, os cangaceiros. A Igreja legitimadora e terrena, profana, com seus representantes abençoadores de bastardos e assassinos, semeadores de filhos e ilusões, testemunha engajada da vilania com a qual o povo, deserdado de clima, de poder, de bondade, carrega consigo, como última esperança, o paraíso que lhe foi prometido e do qual não se sabe se realmente vai ser entregue.”

Nenhum comentário: