domingo, 6 de dezembro de 2020

CANGAÇO: MINHA BUSCA POR MASSILON

 


* Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)

Sempre me perguntam, em palestras, entrevistas, debates, por qual razão deixei de lado meus escritos acerca de Filosofia do Direito e me encaminhei para o estudo do cangaço. Eis a resposta...

... As noites da minha infância, quando em férias, excetuando quando ia para o Sertão do Alto Oeste Potiguar, foram passadas na Praia de Tibau, (do Norte) na mesma casa onde meus pais viveram sua lua-de-mel.

Eram noites típicas do nosso verão litorâneo, com muito vento e pouquíssimas nuvens, frio mais intenso quanto mais tardia se fizessem as horas, todas estas passadas à luz do lampião de gás no alpendre que nos agasalhava e no qual eu ficava entre dormitando e acordado, medroso com a escuridão, acompanhando de relance as figuras que o bruxuleio da luz desenhava nas paredes e ouvindo as conversas dos adultos.

Para lá eu ia como companhia oficial de Tia Liliosa, a dona da casa, tão logo chegassem os primeiros dias de janeiro. Nessa época o centro de poder familiar era plenamente exercido por Tio Ezequiel[1], irmão de minha avó materna, líder da família e homem considerado muito rico para os padrões de então. 

Ele era o principal acionista de Alfredo Fernandes Indústria e Comércio, uma empresa com sede em Mossoró, correspondente comercial até mesmo em Londres, e que se dedicava, principalmente, ao beneficiamento de algodão.

Nele me impressionava o distanciamento que sabia impor sem elevar a voz e seu vagão de trem permanentemente guardado em um galpão imenso vizinho ao escritório central da Firma, em Mossoró, para ser usado em seus deslocamentos até o Sertão, nas suas férias anuais, em julho, na Fazenda João Gomes, latifúndio encravado nas proximidades de Marcelino Vieira, cuja casa-grande foi construída por nossos ancestrais comuns[2]

Era, então, no entorno de Tio Ezequiel, que a família se reunia quando ele ia a Tibau, para a casa de seu sobrinho Chico Sena[3], passar o final-de-semana. Conversava-se debaixo do alpendre a respeito de tudo: a vida, a morte, a seca, a invernada, a carestia, a fartura, a política, mas a noite sempre terminava com alguma história antiga da família Fernandes, principalmente os episódios vividos por Tio Childerico, o "Velho", Tio Childerico, o que se fora para a Amazônia entre menino e rapaz, mais precisamente o Acre, ou Tio Childerico, o “Novo”, e seu encontro com o bando de Lampião[4].

Naquela época Tio Childerico, o que se fora, já era lenda aqui e na Amazônia. As histórias que se contavam a seu respeito diziam respeito a anos passados no meio da selva sem qualquer contato com a civilização, convivência com índios desconhecidos de hábitos indescritíveis, riquezas fabulosas amealhadas com a venda de borracha, quilômetros e mais quilômetros de terras adquiridas e perdidas em um passe de mágica, boa parte delas contadas por Calazans Fernandes em sua obra O Guerreiro do Yaco, primeiro volume de uma trilogia romanceada de sua vida[5], e inacabada.

Quanto a Tio Childerico, o “Novo”, sua história era recente e mais singela: dizia respeito à passagem do bando de Lampião, após o ataque frustrado a Mossoró, pela propriedade “Veneza”, gerenciada por ele e pertencente a Alfredo Fernandes, seu tio. E dizia respeito à atitude de um cangaceiro, por nome Massilon, de quem Tia Bebela se valera para proteger seus filhos, principalmente Fernando Fernandes, recém-nascido, das torturas que lhe infligia “Menino de Ouro”. 

Massilon fora, no dizer de Tia Bebela, seu “anjo-da-guarda”. Por essa razão, até morrer, todo ano mandava celebrar uma missa em sua intenção e em ação de graças pelo salvamento de seus filhos.

Ainda por outra razão minha relação com o cangaço é bastante antiga: nasci e cresci à sombra da Igreja de São Vicente, a igreja da “bunda redonda”, brinquei, assisti missa, novena de Santo Antônio, sem perder o contato com as marcas que o combate contra Lampião deixou em suas paredes e torre.

Na mesma rua onde nasci e me criei e onde moraram meus pais até que os levasse os desígnios de Deus, em seu final, número 85, ali onde a Francisco Ramalho termina, do lado direito de quem vai para o bairro da Paraíba e com a Igreja de São Vicente a sua esquerda, fica a casa onde Tio Ezequiel, Tio Chico Sena, que na época tinha dezesseis anos, e alguns empregados de Alfredo Fernandes, montaram resistência armada aos invasores[6].

Cenário bastante conhecido por mim e que me valeu uma nota 10, muitos anos depois, quando fazendo um trabalho escolar em cartolina, apresentei, junto com meus colegas de grupo, uma maquete no qual se vislumbrava como tinha acontecido a invasão de Mossoró e a posterior fuga dos cangaceiros. 

Em 1977, ano do cinquentenário do combate, foi inaugurada a Escola 13 de Junho tendo como sede, ironicamente, a casa que ficava exatamente no extremo oposto à de Tio Ezequiel. Minha mãe fora nomeada sua primeira Diretora e naquelas festividades conheci o primeiro ex-cangaceiro ainda vivo: Asa Branca. 

Mas somente anos depois, graças a dois acontecimentos distintos embora relacionados, resolvi sair em busca de Massilon. O primeiro deles foi uma conversa em tom de brincadeira com o jornalista Jânio Rêgo, amigo de infância, acerca de um artigo que ele lera no Jornal “O Mossoroense”, escrito por Aléxis Gurgel, e que inovava quanto ao suposto motivo real que levara Massilon a empreender seu projeto relativo à Mossoró[7]. E o segundo foi conhecer e me tornar amigo de Kydelmir Dantas e Paulo Gastão, o primeiro Presidente, à época, da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço – SBEC, e o segundo um dos maiores pesquisadores do tema, no Brasil.

A essa confluência de acontecimentos se agregou o interesse de sempre acerca da história da minha família materna, da qual é momento precioso, segundo minha avaliação, desde a fundação de Martins, a resistência oposta por Rodolpho Fernandes à Lampião[8], passando pela luta de Agostinho Pinto de Queiroz[9], as aventuras de Childerico Fernandes, o Guerreiro do Yaco, na Amazônia, a história política do interventor Rafael Fernandes, dentre outros, bem como os episódios conhecidos ou aqueles obscuros e nebulosos que ainda não vieram à luz, relacionados com os acontecimentos de 1927 em Mossoró.

E se agregou também, como algo que latejava permanentemente em minha memória, o fascínio pela história desse “cangaceiro” obscuro, valente, sem o qual, com absoluta certeza, jamais teria havido a invasão de minha terra natal.

Por todos esses motivos surgiu o livro "Massilon: Nas Veredas do Cangaço e Outros Temas Afins".

[1] Na residência de Ezequiel Fernandes de Souza houve uma trincheira na luta contra Lampião em Mossoró. Tio Ezequiel, que havia sido pai recentemente, viu sua esposa, Ester, ser acometida da febre puerperal que a vitimou, em decorrência da invasão. Informação de sua sobrinha Francisca Ida Fernandes Marcelino, irmã de minha mãe, casada com José Marcelino de Oliveira e cunhada do médico João Marcelino, o mesmo que tratou de Jararaca em Mossoró.

[2] Em 1742 Francisco Martins Roriz, morador da Ribeira do Jaguaribe, fundou no alto da serra uma fazenda de criar e plantar, que daria origem ao povoado que tomou seu nome: Martins. Lembra Manoel Onofre Jr., em Martins, a Cidade e a Serra, que a origem da Capela à margem da Lagoa dos Ingás e em torno da qual a povoação cresceu está envolta em lenda: reza a tradição que a esposa de Francisco Martins desapareceu de casa sem deixar vestígio. Desesperado, Martins fez uma promessa a Nossa Senhora da Conceição: se achasse a mulher – viva ou morta – mandaria construir, no local, uma capela em honra daquela santa. Logo mais seria localizada, bem à margem da lagoa, o corpo da mulher do sertanista, já em estado de putrefação. E Martins cumpriu o voto, mandando erigir a capela ali mesmo. A primogênita de FRANCISCO MARTINS RORIZ, falecido em 1786, MARIA GOMES DE OLIVEIRA MARTINS, casou-se com MATHIAS FERNANDES RIBEIRO, nascido pela década de 50 do século XVIII, na freguesia de São João Batista da Vila de Princesa (atual Açu, Rn), filho de FRANCISCO COSTA PASSOS e VIOLANTE MARTINS, citados na obra Povoamento e Povoadores do Cariri Cearense, de Joaryvar Macedo. Do casamento nasceu, em 1778, MARIA JOSÉ DO SACRAMENTO, que casaria com DOMINGOS JORGE DE QUEIRÓZ E SÁ. Por sua vez deste casamento nasceu, dentre outros, JOSÉ FERNANDES DE QUEIRÓZ E SÁ, que se consorciou com MARGARIDA GOMES DA SILVEIRA, os quais geraram CHILDERICO JOSÉ FERNANDES DE QUEIRÓZ. Do casamento de CHILDERICO JOSÉ FERNANDES DE QUEIRÓZ (falecido em 4.2.1890) com GUILHERMINA FERNANDES MAIA nasceu FRANCISCA FERNANDES DE QUEIRÓZ MAIA, que se casou com HIPÓLITO CASSIANO DE SOUZA (1863-1937). Este casamento originou MARIA EMÍLIA FERNANDES DE SOUZA (1887-1956), que consorciada com OSÓRIO BERNARDINO DE SENA, gerou ALDEIZA FERNANDES DE SENA MEDEIROS, mãe do Autor, casada com FRANCISCO HONÓRIO DE MEDEIROS. 

[3] Francisco Fernandes de Sena estava na trincheira de seu tio, Ezequiel Fernandes de Souza. Tinha 16 anos. Foi Interventor em sua terra natal, Pau dos Ferros, RN. 

[4] Childerico Fernandes de Souza (1889-1978), filho de Francisca Fernandes de Souza e Hipólito Cassiano de Souza. Nos primeiros anos do século XX foi trabalhar no Acre com seu tio materno Childerico José Fernandes de Queiroz Filho, o ”Guerreiro do Yaco”. Esteve com seu tio na revolução de 1912, segundo nos informa Arnaldo Fernandes de Souza em Os Fernandes de Souza, que depôs o prefeito de Sena Madureira, Acre. Morava na fazenda Veneza quando Lampião a invadiu, em 1927, após atacar Mossoró, em episódio por demais conhecido na literatura do cangaço. Era tio materno de minha mãe. 

[5] Em 1939 Câmara Cascudo escreveu artigo acerca da morte de Childerico José Fernandes de Queiroz Filho (falecido em 26 de março de 1939), o “Guerreiro do Yaco”, título da obra homônima de Calazans Fernandes, e esclarece por que tantos “Childericos” na família Fernandes: "Agostinho Pinto de Queiroz, agricultor na Serra do Martins, no Rio Grande do Norte, homem vivo e curioso, aderiu ao movimento republicano que rebentara em Portalegre no ano de 1817. Preso pelos legalistas cearenses, trazido para Natal, foi enviado aos cárceres baianos, onde sofreu até 1820 quando voltou aos ares da terra velha. Em 1831 marchou contra o caudilho Pinto Madeira e tal raiva lhe tinha que arrancou do nome Pinto e o substituiu por Fernandes. Presidente da Câmara Municipal de Martins, faleceu em 1869. Desse Agostinho Pinto de Queiroz ou Agostinho Fernandes de Queiroz vem uma tradição comovedora na família inteira. Prisioneiro na cadeia da Bahia, Agostinho teve um grande amigo na pessoa de um oficial chamado Childerico. Dispensa de serviços, melhora na alimentação, livros para ler, notícias para Martins, tudo Childerico arranjava. Indultado, Agostinho Pinto de Queiroz fez a singular promessa de manter na família o nome daquele a quem devia tantos obséquios. Até hoje, há mais de cem anos, a família Fernandes cumpre a imposição emocional de seu antigo chefe. Há sempre vários Childericos, nome de reis merovíngios, entre os sertanejos norte-riograndenses. Childerico José Fernandes de Queróz Filho foi um dos fiadores da promessa secular. Usou nome feudal e guerreiro, tatalante e sonoro como grito de excitação e de arrancada. Setuagenário, esse Childerico acaba de falecer, a 26 de março de 1939, no Rio de Janeiro, com uma história atribulada e valente. Eram essas as histórias que devíamos contar nos livros escolares, a glória útil e serena, o combate político, a honra lavada nos santos suores do trabalho contínuo, as batalhas pela vida limpa sob a bandeira sem nódoa do esforço inextinguível. O “Guerreiro do Yaco” depôs, pela força das armas, em 1912, comandando mais de uma centena de homens, o prefeito de Sena Madureira (AC)”.

[6] Membros da trincheira: Pedro Fernandes Ribeiro, Francisco Fernandes Sena, Raimundo Nonato Fernandes e dois trabalhadores armados de rifles – Murilo Eufrázio da Costa e Velho Chico, além do meu tio-avô materno Ezequiel Fernandes de Souza.

[7] Artigo escrito em “A Gazeta do Oeste” de 17 de agosto de 2003 sob o título “O cangaceiro Massilon”.

[8] À época da invasão de Lampião a Mossoró era Prefeito de Pau dos Ferros meu tio bisavô materno Cel. Adolfo Fernandes. Manoel Rodrigues de Melo, em seu Dicionário da Imprensa no Rio Grande do Norte, informa que "A República, de 28 de junho de 1919, registrava o aparecimento deste jornal (“O Momento”) nos seguintes termos: ‘No dia 4 do corrente circulou na Vila de Pau dos Ferros o primeiro número d’O Momento, órgão do Partido Republicano Federal naquela localidade, sob a direção política do Coronel Adolfo Fernandes, tendo como diretor o Dr. Guilherme Lins e gerente o Sr. Galdino de Carvalho’. Segundo o jornal a República seu colega pauferrense viria dar suporte à política estadual do Desembargador Ferreira Chaves". 

[9] Quanto à mudança do nome de Agostinho Pinto de Queiróz para Agostinho Fernandes de Queiróz, conforme João Bosco Fernandes, em Memorial de Família: "quando o Desembargador Vicente de Lemos fazia a remodelação do Arquivo da Secretaria do Governo, encontrou a prova documental desse fato e a entregou a um bisneto daquele revolucionário. Esse documento foi publicado em “A República”, no dia 30 de abril de 1926. Ver História do Rio Grande do Norte, de Tavares de Lyra.

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