* Honório de Medeiros
E-mails para honoriodemedeiros@gmail.com
Imagine que você precise de uma segunda
via do documento do seu carro.
E dirige-se ao Órgão apropriado para
tirá-lo.
Em lá chegando recebe uma ficha que
indica sua vez de ser atendido.
Pelo número da ficha você percebe que
não adiantou chegar cedo.
Seu atendimento, se acontecer,
ocorrerá no final da manhã, começo da tarde, e olhe lá.
No dia seguinte, comentando o
episódio com um amigo, escuta dele: "mas por que você não pagou um
despachante para fazer isso?" "Ele resolveria tudo na mesma hora e
lhe entregaria a segunda via em casa." "Você não teria incômodo algum".
O despachante é aquela figura
nebulosa que abre todas as portas, em qualquer momento, das repartições
públicas, providenciando, nelas, soluções para quem não quer se submeter a
filas e tem dinheiro suficiente para contratá-lo.
A questão é a seguinte: e quanto aos
que não têm dinheiro para contratar um despachante?
E quanto aos que acordaram cedo,
pegaram a fila, esperaram, mas são ultrapassados, às vezes sem saber, pelas
artes e ofícios de quem abre, na hora que deseja, todas as portas?
Como se percebe facilmente trata-se
de uma questão cujo cerne é constituído por moral e dinheiro.
Moral, aqui, para além de como deve
agir o Estado que, conforme a Constituição Federal deve, por intermédio de seus
servidores, agir com absoluto respeito à igualdade entre os cidadãos.
É esse o tema do livro de Michel J.
Sandel, "O Que O Dinheiro Não Compra", professor em Harvard,
professor-visitante na Sorbonne.
Sandel ficou midiático desde que seu
curso "Justice", no qual interagia com seus alunos lhes propondo
questões de natureza moral, apareceu na internet e ganhou o mundo.
Em 2010 a edição chinesa do
"Newsweek" o considerou a personalidade estrangeira mais influente no
País.
Sandel elenca muitos exemplos de
"coisas" que hoje estão à venda, graças à onipresença e influência do
mercado. Trocando em miúdos: graças ao afã do lucro.
Alguns até mesmo cômicos, se não
fossem trágicos: "upgrade" em cela do sistema carcerário; barriga de
aluguel; direito de abater um rinoceronte negro ameaçado de extinção; direito
de consultar imediatamente um médico a qualquer hora do dia ou da noite...
Nos EUA, segundo Sandel, é
florescente o negócio de comprar apólices de seguro de pessoas idosas ou
doentes, pagar as mensalidades enquanto ela está viva, e receber a indenização
enquanto morrer.
Ou seja: quanto mais cedo o segurado
morrer, mais o comprador ganha.
O professor considera que "hoje,
a lógica da compra e venda não se aplica mais apenas a bens materiais: governa
crescentemente a vida como um todo".
E não aceita a teoria dos que
atribuem à ganância essa falha moral, pois, no seu entender, o que está por
trás é algo maior, qual seja a "extensão do mercado, dos valores do
mercado, às esferas da vida com as quais nada têm a ver."
Eu compreendo esse salto que o professor
dá desde a ganância até o mercado.
Mas não concordo.
Para o professor, o mercado deixa o
Homem ganancioso; eu, pelo meu lado, penso que foi a ganância que criou o
mercado.
Se lá na aurora da história do Homem
o primeiro ganancioso tivesse sido silenciado, seu "gen" não teria
sobrevivido.
Ou será que era para ser assim mesmo,
caso contrário não existiria a nossa espécie?
Antes que imputem a mim uma percepção
simplista da questão, saliento logo que ela é mais profunda: diz respeito a uma
discussão de natureza ontológica acerca da realidade social: em última
instância, no que concerne a sua instauração (faz com que ela surja), está o
Homem ou a Sociedade?
Por outra: a Sociedade é gananciosa
porque o Homem o é, ou o Homem o é porque a Sociedade é gananciosa?
Aceita a premissa de que a Sociedade
é gananciosa porque o Homem o é, cabe então perguntar: por que o Homem é
ganancioso?
Essa questão, a verdadeira questão,
não é enfrentada como deveria ser, hoje em dia, por que virou moda escamotear o
óbvio atribuindo ao "sistema", ao "meio", a uma
"realidade exterior a nós", aquilo que somos individualmente.
Fica mais fácil, em assim sendo,
fugir da nossa responsabilidade individual, da moral, do caráter, e nos excluir
da culpa por nossas decisões e atitudes.
Exemplo patente dessa perspectiva vil
e equivocada, mas compreensível e eficaz, é o escândalo do Mensalão, essa nódoa
permanente e intransferível na nossa elite política.
Ao invés do mea culpa, mea maxima
culpa ao qual temos direito nós outros, os cidadãos inocentes deste País de
bandalheiras ao qual sustentamos passivamente ao longo dos anos, bem como à
escumalha dirigente e sua soturna vocação para a ladroagem, lemos e escutamos
cretinices tais quais as que pretendem imputar a responsabilidade pelos
malfeitos acontecidos ao sistema eleitoral e de financiamento de campanhas
eleitorais.
Querem nos fazer crer que quando o
irmão de Zé Genoíno foi flagrado escondendo dinheiro enlameado na cueca, em um
dos mais grotescos episódios recentes da crônica da corrupção tupiniquim, assim
agia porque o sistema não presta.
Faz parte da própria lógica do
aparato intelectual que sustenta uma teoria como essa, a de que o meio cria o
Homem - o determinismo social -, a falta de capacidade técnica para compreender
aquilo que está em jogo em termos científicos, embora não lhe falte meios que a
protejam da luz crua da verdade.
Os defensores de teorias como essas
pululam nas redes sociais.
Mas Darwin está aí, basta lê-lo.
Aliás, como a grande, a imensa
maioria dos nossos cientistas sociais é herdeira de uma tradição marxista que
eles não compreendem em seus fundamentos por lhes faltar preparo e leitura, ou
então são devedores de um funcionalismo anêmico de tradição norte-americana
para o qual a realidade social é um carro que funciona sem a estrada e quem as
produz (caricatura do positivismo), estão atrasados gerações em relação ao que
se discute, em termos científicos, nos centros de pesquisa das grandes
universidades do mundo.
Não compreendem, mas usam.
É mais fácil botar a culpa no
Sistema. Como se fosse responsabilidade apenas do meio o fato de sermos como
somos, nivelando todos por baixo, inclusive aqueles que, ao longo da história,
tornaram-se as nossas referências quando, em alguns momentos, fizeram avançar o
processo civilizatório.
Mas que se há de fazer?
Talvez responder à Baronesa Thatcher: "não, você se enganou, a ganância
não é um bem; o altruísmo, sim, é um bem".
Arte: ip.usp.br
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