Serra do Martins
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Honório de Medeiros
Os olhos claros da garçonete não olhavam
ou faziam de conta que não olhavam os olhos de seus admiradores espalhados
pelas mesas do restaurante onde trabalhava.
Também
não olhavam para os passantes na calçada da praça em frente. Tampouco para nós
outros que estávamos em restaurantes vizinhos e separados por um espaço
puramente imaginário. Mas nós sabíamos que ela sabia dos nossos olhares. Havia
uma sabedoria ancestral, herdada de Eva, naquela sua reserva à nossa admiração.
Sabedoria que a Serra burilara com seu pendor para o isolamento ilhéu. Não é a
Serra uma ilha no vale? Não é Martins com seu frio invernal de Julho, a névoa
como véu ocultando as formas das árvores centenárias nos sobrenaturais caminhos
de barro que conduzem para os sítios, uma ilha no coração do Sertão? Não é
Martins uma ilha? Não o sabia disso Francisco Martins Roriz quando fincou seus
pés portugueses à margem da Lagoa dos Ingás e nela construiu uma Capela
exatamente onde sua companheira foi encontrada morta? Não o sabia que ali
estava um lugar como não havia igual em todo aquele mar de terra, sol, cinza,
pó, pedra e solidão?
Ela, a garçonete, vai e vem. O que
pensará enquanto desliza e atende, alheada de si e da presença de sua beleza, a
beleza das mulheres de Martins, a todos nós que subimos a Serra e nos
entregamos ao prazer ancestral de comer, beber, amar e conversar, receber a
dádiva do frio e das árvores, do céu estrelado e do vale distante onde a
escuridão somente se rende às luzes trêmulas das pequeninas casas isoladas?
Talvez
não pense. Talvez aja mecanicamente. Mas, ali, em Martins, não é possível que a
realidade seja menor que a arte. Ao contrário. Ali, a arte imita a vida. E seu
pensamento, com certeza, não desmerece todo o clima que envolve a cidade. Há
luzes, há cores, há música, há risos, então há romances, amores, paixões que
surgem, outras que desmoronam, no interminável ciclo da vida em plena
efervescência. Em sua cabecinha loura com certeza há a espera ansiosa pelo fim
da noite ou começo da madrugada, como queiram. Há alguém que a espera. Há
palavras, carinhos, compromissos, há tudo quanto é humano e os deuses abençoam.
Não pode ser de outra forma.
Talvez ela seja de um sítio vizinho ou
mesmo distante. Não quero perguntar. Pode ser que conheça algum dos seus
moradores. Alguém sábio, que conseguiu sair de Martins e voltar depois de
muitos anos sem que a saída afetasse seu coração e sua alma. Alguém que não foi
corrompido pelo mundo exterior – por que Martins é uma ilha! -, não esqueçamos.
Esse
sábio já mal vê o mundo, seus olhos estão ficando velados pelo tempo. Não
importa. Com sua idade e sabedoria, o mundo está em sua mente e a sua mente é o
mundo. Ele, quando foi embora, interpretou o mundo a partir de Martins; hoje,
apenas confirma, com sua experiência, que em quase todas às vezes estava certo.
“O mundo lá fora”, diz quando ao seu redor sentam os que o visitam, “não é nada
diferente de nossa Serra. É como uma mulher coberta de joias e vestidos e pintura.
E quando se tira tudo isso, o que fica?” Todos balançam a cabeça concordando.
Todos
estão juntos ali impulsionados por um código imemorial: escutam atenciosamente
quem pode lhes explicar o mundo que o bom Deus lhes legou e que às vezes parece
tão incompreensível. Ainda bem que o bom Deus lhes mandou também algumas
pessoas que tinham o dom de perceber suas mensagens deixadas nas linhas da
natureza e explica-las aos outros. Por isso tais reuniões. Para escutar e
reforçar os laços de solidariedade que os mantinham unidos e protegidos em sua ilha,
Martins.
Agora a garçonete se fora. Quem a terá
recebido em seus braços? Faz frio. A
praça está repleta de silêncio. Os restos da festa jazem espalhados. Alguns
retardatários encaminham-se para suas cobertas. O ar puro e suavemente
perfumado da Serra envolve Martins. Às margens da Lagoa dos Ingás a escuridão
mal deixa perceber suas águas. Mas elas estão ali, muito mais antigas que os
passos dos que viviam, no seu entorno, desde a ocupação portuguesa. Águas
misteriosas que vêm não se sabe de onde. Águas que ouviram o grito de dor de
Francisco Martins Roriz quando se deparou com o cadáver de sua esposa morta por
afogamento. Águas testemunhas, dizem os antigos, dos passos inquietos dos seus
antigos proprietários, os índios, que nas noites enluaradas caminham
incansavelmente da Lagoa dos Ingás para a Casa de Pedra, da Casa de Pedra para
a Lagoa dos Ingás, e assim será até o final dos tempos.
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