sábado, 1 de outubro de 2011

O SISTEMA JOGA SUJO



Honorio de Medeiros


                        O pior da luta contra o Sistema é que não conseguimos individualizar o adversário. Não conseguimos identificar o responsável pela nossa ira. Não conseguimos olhá-lo no olho e lhe dizer o que ele merece escutar.

                        Lutamos contra algo amorfo, sem consistência definida, sem limites delineados, que não oferece resistência imediata e clara. Há pequenos recuos ante nossa indignação, que são apresentados pelos tentáculos do sistema – os seus operadores – e uma imediata, homogênea e difusa contrapressão como resposta ao incômodo que causamos e nós terminamos sendo manipulados e conduzidos, lenta e inexoravelmente, para o lugar que nos foi reservado.

                        Muito abstrato? Exemplifico.

Em uma instituição de ensino superior deste imenso e desgovernado País um velho e experiente professor de História das Idéias Políticas percebeu, em certo momento de desconforto profissional alusivo à “como as coisas estavam acontecendo” no seu Departamento, como quem acorda abruptamente e a realidade penetra sem rodeios sua percepção, um insidioso e ainda opaco processo de mudança nos paradigmas implícitos que governavam a Instituição. Algo sutil, mas persistente.

O velho professor já passara por algo semelhante, em sua longa carreira universitária. Sentiu que a luta era vã, sua resistência inócua, contra o processo que se instalava lentamente, mas decidiu lutar, resistir, para documentar, mesmo que somente para si, tudo quanto estava acontecendo.

“Quando tudo havia começado?”, se perguntou. “Ora, como saber?” Deixou essa questão para trás e tratou de fazer um registro e análise “positivista”, sem levar em consideração possíveis causas estruturalistas, materialistas, marxista-leninistas, do fenômeno em si. Faria o registro, pura e simplesmente dos fatos e os interpretaria a partir da própria lógica do sistema.

Recordou que longe, lá no começo, sua Disciplina, que previa 80 horas/aulas por semestre, fora reduzida para 60 horas/aula. Reduziram, também, para 60 horas/aula a Disciplina co-irmã História das Idéias Sociais. Depois, extinguiram História das Idéias Sociais e a História das Idéias Políticas passou a ser História das Idéias Sócio-Políticas, com as mesmas 60 horas/aula. De uma penada só o Sistema se livrou de vários professores.

Resolveu protestar, então. O Chefe do Departamento o escutou atentamente e se prontificou a levar sua Exposição de Motivos à próxima reunião do Conselho Diretor. Algum tempo depois, sem receber resposta do Chefe, indagou dele acerca da decisão do Conselho. Este lhe comunicou que o assunto estava despertando o devido interesse e que, inclusive, tinha sido encaminhado para a Comissão de Análise, uma instância superior, restando apenas aguardar e ter paciência.

Dias depois o velho professor recebeu formalmente, por intermédio de um Memorando, a notícia da desativação da sua linha de pesquisa. Novo protesto. Nova atitude do dirigente de encaminhar, para escalões superiores, sua queixa. Nova espera. E, como não poderia deixar de ser, nova retaliação: as decisões acerca da rotina futura acerca das relações entre professores e alunos de sua disciplina foram tomadas sem seu conhecimento, sem sua participação.

E o velho professor, no atual estado-de-coisas, ao perceber o esvaziamento profissional para o qual o encaminha o Sistema, passou a duvidar, inclusive, de si mesmo: “será que tudo isso não é o resultado da aplicação dos meios que são usados para afastar aqueles que, como eu, já estão próximos da aposentadoria, abrindo espaço para o “sangue novo” dos “inocentes úteis” que assumiam os paradigmas que lhes eram impostos com questionamentos meramente formais? Lembrou-se de uma antiga tia, professora universitária assim como ele, que se queixava amargamente, pouco tempo antes de sua aposentadoria, de como estava sendo deixada, deliberadamente, para trás em tudo que dizia respeito ao Departamento no qual estava lotada.

Como também se perguntou, muitas vezes, acerca de como o Sistema agia com outras pessoas, individualmente demarcadas, que eram seus opositores, por essa ou aquela circunstância pessoal. Lembrou-se de um amigo que encetara uma guerra solitária e inútil contra o Tribunal de Contas do seu Estado; outro às voltas com o Ministério Público Estadual; outro enredado nas malhas do Tribunal de Justiça; outro sendo massacrado, lentamente, na burocracia da Prefeitura Municipal. Por fim, outro, a quem a posição do seu Sindicato, oportunista e alienada, condenava ao isolamento. Todos vítimas, todos impotentes, todos derrotados.

“Que fazer”, perguntou-se muitas e muitas vezes. Tentar ser um predador, mesmo com os dentes gastos? Imaginar que a experiência compensa o passar do tempo e ir á luta? Ou deixar que tudo passe, sobrevivendo no dia-a-dia, sem se preocupar com o amanhã, agindo como a grande maioria age, engolindo o sapo nosso de cada hora e seguindo em frente? “Não há resposta”, concluiu desanimado. “O Sistema vence sempre”. “É mesmo seguir em frente.” “Caminhante, o caminho se faz ao caminhar”, consolava-se, enquanto a moenda prosseguia, implacável, até que nem o pó de seus ossos existisse mais. Nem o de todos os que viessem pela frente, meras peças de reposição.

Pois a idéia precede a ação, não há ação no vazio da mente, e assim emerge o sistema: uma idéia mutante, uma idéia fora do sistema anterior, fora do padrão, uma idéia que é um vírus em busca de um ambiente fértil no qual se replique, se desenvolva. Um “meme”.

Quando o primeiro ser humano cercou uma área de terra e afirmou que ela lhe pertencia, eis que surge uma idéia-mutante. Uma vez tendo surgido, e sobrevivido, atraiu outras idéias que puderam a ela se conectar, a mutação funcionando como atrator, ensejando o surgimento de uma rede. A rede é o Sistema. O Sistema é idéias e homens. O Sistema passa a se expandir na medida em que supera os obstáculos à sua expansão. Assim foi com o rock; assim foi com o futebol; assim foi com o protestantismo; assim foi, no Direito, com o Positivismo; assim foi com o cálculo integral.

Sistemas destroem Sistemas. O Coronelismo se foi; o Feudalismo se foi; o Cangaço se foi; Roma se foi; todos eles Sistemas que entraram em colapso.

Tudo há de ir, um dia. Enquanto isso, na moenda da vida, homens e idéias são triturados.

Um comentário:

Anônimo disse...

E ainda tem gente, uns inocentes outros hipócritas, que se babam na defesa dessa ética oficial do SISTEMA. Esse cancro incrustado no sexo da sociedade. A foder e parir monstrengos teóricos que se alimentam das vísceras da liberdade. François Silvestre.