quinta-feira, 15 de setembro de 2011

"SEO" CHICO PIU E A TEORIA DA EVOLUÇÃO



Honório de Medeiros

                   Não fossem as fotografias guardadas com muito carinho, nas quais um Honório de Medeiros aparece magro e sorridente, sem rugas e cabelos grisalhos, as lembranças daquele mágico passeio a cavalo, eu e Silvério Crestana, até a fazenda de café de “Seo” Chico Piu, serra acima na área rural de São Carlos, interior montanhoso de São Paulo, tudo seria apenas borrão na minha memória, algo como um filme antigo, com paisagens e pessoas esmaecidas pelo tempo. Pego-as e sorrio, sempre. Depois, um toque de amargor toma conta do espírito e lamenta a juventude passada, os amigos que se foram, os sonhos desfeitos, as promessas não cumpridas, os amores perdidos. “C’est la vie”, diriam os franceses.

                   Naquela tarde conheci “Seo” Chico Piu, homem sob todos os aspectos singular. Em primeiro lugar vivia quase recluso, lá no seu pé de serra. Raras vezes descia à cidade. Bastava-lhe, para viver bem, estar pisando descalço sua terra rica e roxa, cercado por sua gente, que lhe margeava como uma tribo ao seu cacique. “Seo” Chico era baixo, moreno gretado pelo sol, de braços e pernas fortes, espadaúdo, e com uma face como que esculpida em bronze, com traços muito demarcados. Mas o que impressionava eram seus pés. Estes, de fato, se viram sapatos, ou mesmo chinelos, foi em tempos muito idos, segundo suas próprias palavras. Eram verdadeiros cascos, endurecidos por todos os invernos e verões aos quais “Seo” Chico os havia submetido. Segundo nos contou, e sua família confirmava, descia descalço até mesmo para a cidade, onde raramente ia. E, nos pés, não sentia frio ou calor, não era sensível à água ou à rocha mais dura.

                   “Seo” Chico era homem de pouca conversa quando no trabalho ao qual se entregava como qualquer um dos seus trabalhadores. Junto a eles, colhia o café, batia, ensilava, ensacava, derrubava as reses, ferrava-as... Um maestro em pleno exercício de sua arte, cegamente obedecido por seus músicos. Um general a conduzir seu exército com doçura, mas com firmeza. Era, basicamente, dono de cafezais e de rebanho leiteiro, que se espargiam serra abaixo, tendo a Casa Grande como epicentro. Vivesse no Sertão nordestino e nele tivesse aquela terra e todo aquele gado seria um homem de posses, por assim dizer.

No final de uma tarde como aquela, no entanto, tempo esfriando ligeiro indicando noite gelada a chegar, visita no pátio da casa grande e rústica, a sisudez era deixada de lado e o café forte e a aguardente feita sob sua própria orientação lhe iluminavam o semblante e abriam seu coração e mente originando conversas recheadas de casos passados e argutas observações acerca da vida, dos homens e das coisas.

                   Mas tudo que é bom dura pouco.

                   Com a chegada da noite veio a hora de voltar sob a fria luz da lua, a passo leve, nas trilhas estreitas, para manter a compostura e a possibilidade de se envolver com a beleza da serra sob o luar.

Tomamos o último café, bebemos a última caneca de cachaça e ele, se despedindo, bateu na anca da mula que me conduzia, apontou para mim e para si próprio, e como que refletindo, me disse para guardar comigo que o tempo havia lhe ensinado ser a vida, acerca da qual tanto havíamos falado, como uma serra de onde cada um descia na justa medida em que outro subia lhe tomando o lugar.

Dito isso, me lembrou que “seu pensamento” se tratava de um presente, assim como a garrafa da mais pura cachaça de sua moenda que me passou às mãos, deu um passo para trás, ajeitou o casaco de lã por sobre os ombros tocados pelo sereno da noite e lá ficou, a nos observar partindo, com seus pés indiferentes à temperatura que caíra bruscamente e, com certeza, desconhecendo meu conhecimento sorvido dos livros acerca da teoria da evolução que diziam, de forma muito pomposa e circunspecta, aquilo que ele concluira somente observando, no seu pé de serra, a vida passando ao largo.    

2 comentários:

Silverio disse...

Caro Francisco
Parabéns pela crônica de um tempo passado que tanto nos ensinou e nos ofereceu...Cada vez que recordo os grande mestre que conheci o Seu Chico Pio sempre está presente. Passados mais de 30 anos você ainda guarda belas lembranças de uma tarde no alto da Serra de Analândia. Lembro-me bem, ainda tenho algumas fotos. Passamos parte das férias na Santa Clara, na colheita do café e nos finais de tarde fizemos alguns passeios na vizinhança. Período em que nossos sonhos acordavam ameaçados com as dúvidas do futuro. A cada dia avançavamos na construção de uma novo País e de retorno à democracia, mas tantas vezes cansados ou distraídos não percebíamos as tantas oportunidades que estavam em nossas frentes. De fato não podemos deixar que a rotina ameaçe as nossas amizades. Parabéns por recuperar um período que juntos e promovidos pela amizade maior do Gilson nos uniu e nos presenteou com novas amizades como a do Seu Chico Pio.
Grande abraço, Silverio

Cassio Crestana disse...

Parabéns pela crônica, pode viajar no tempo e lembrar vagamente de momentos e frases do "Chico Piu", pois quando meu Avô-Paterno se foi tinha apenas 5 anos, fazem aproximadamente 28 anos e ainda me recordo de seu jeito muito simples e humilde que não se importava com a "evolução", norteado pela ideia que seu trabalho arduo na lida da roça daquela época e sua familia ao qual era o mentor era suficientemente necessário.
No decorrer da leitura desta crônica, pode refletir e lembrar de momentos que meu Avô "Chico Piu" fazia questão de ser muito rigoroso e ao mesmo tempo destribuir balas aos seus netos, quase sempre com seu chapeu e pés no chão, com seu varal de carne seca e linguiça caseira acompanhado de uma cachaça pura.
Percebo ainda hoje suas caracteristicas em meus Tios e Pai, ou seja, em seus filhos Laerte Santarpio, Luiz Santarpio e Antonio Santarpio, que carregam com si a ideia que pouco é necessário para se viver e ser feliz.

Obrigado ao Autor desta crônica, proporcionando estimular e poder buscar lembranças tão ricas, mas dormentes. (Leandro Santarpio - Neto)