sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

A QUESTÃO É MORAL


 

* Honório de Medeiros


Imagine que você precise de uma segunda via do documento do seu carro, e dirige-se ao Órgão apropriado para tirá-lo.

Em lá chegando recebe uma ficha que indica sua vez de ser atendido: pelo número da ficha você percebe que não adiantou chegar cedo e seu atendimento, se acontecer, ocorrerá no final da manhã, começo da tarde, e olhe lá.

No dia seguinte, comentando o episódio com um amigo, escuta: "mas por que você não pagou um Despachante para fazer isso?". "Ele resolveria tudo na mesma hora e lhe entregaria a segunda via em casa". "Você não teria incômodo algum".

O Despachante é aquela figura nebulosa que abre todas as portas, em qualquer momento, das repartições públicas, providenciando soluções para quem não quer se submeter a filas e tem dinheiro suficiente para contratá-lo.

A questão é a seguinte: e quanto aos que não têm dinheiro para contratar um Despachante, acordaram cedo, pegaram a fila, esperaram, mas foram ultrapassados, às vezes sem saber, pelas artes e ofícios de quem abre, na hora que deseja, todas as portas?

Como se percebe facilmente, trata-se de uma questão cujo cerne é constituído por moral e dinheiro.

Moral, aqui, para além de como deve agir o Estado que, conforme a Constituição Federal, deve, por intermédio de seus servidores, agir com absoluto respeito à igualdade entre os cidadãos.

É esse o tema do livro de Michel J. Sandel, O Que O Dinheiro Não Compra, professor em Harvard, professor-visitante na Sorbonne.

Sandel ficou midiático desde que seu curso Justice, no qual interagia com seus alunos lhes propondo questões de natureza moral, apareceu na internet e ganhou o mundo.

Em 2010, a edição chinesa do "Newsweek" o considerou a personalidade estrangeira mais influente no País.

Sandel elenca muitos exemplos de "coisas" que hoje estão à venda, graças à onipresença e influência do mercado. Trocando em miúdos: graças ao afã do lucro.

Alguns até mesmo cômicos, se não fossem trágicos: "upgrade" em cela do sistema carcerário; barriga de aluguel; direito de abater um rinoceronte negro ameaçado de extinção; direito de consultar imediatamente um médico a qualquer hora do dia ou da noite...

Nos EUA, segundo Sandel, é florescente o negócio de comprar apólices de seguro de pessoas idosas ou doentes, pagar as mensalidades enquanto ela está viva, e receber a indenização enquanto morrer.

Ou seja: quanto mais cedo o segurado morrer, mais o comprador ganha.

O professor considera que "hoje, a lógica da compra e venda não se aplica mais apenas a bens materiais: governa crescentemente a vida como um todo".

Ele não aceita a teoria dos que atribuem à ganância essa falha moral, pois, no seu entender, o que está por trás é algo maior, qual seja a "extensão do mercado, dos valores do mercado, às esferas da vida com as quais nada têm a ver".

Eu compreendo esse salto que o professor dá desde a ganância até o mercado, mas não concordo.

Para o professor, o mercado deixa o Homem ganancioso; eu, pelo meu lado, penso que foi a ganância que criou o mercado.

Se lá na aurora da história do Homem o primeiro ganancioso tivesse sido silenciado pelo "meio ambiente", seu "gen" não teria sobrevivido. Ou será que era para ser assim mesmo, caso contrário não existiria a nossa espécie?

Antes que imputem a mim uma percepção simplista da questão, saliento logo que ela é mais profunda: diz respeito a uma discussão de natureza ontológica acerca da realidade social: em última instância, no que concerne a seu surgimento, está o Homem ou a Sociedade?

Por outra: a Sociedade é gananciosa porque o Homem o é, ou o Homem o é porque a Sociedade é gananciosa?

Aceita a premissa de que a Sociedade é gananciosa porque o Homem o é, cabe então perguntar: por que o Homem é ganancioso?

Essa questão, a verdadeira questão, não é enfrentada como deveria ser, hoje em dia, por que virou moda escamotear o óbvio atribuindo, ao "sistema", ao "meio", a uma "realidade exterior a nós", aquilo que somos individualmente.

Fica mais fácil, em assim sendo, fugir da nossa responsabilidade individual, da moral, do caráter, e nos excluir da culpa por nossas decisões e atitudes.

Exemplo patente dessa perspectiva vil e equivocada, mas compreensível e eficaz, foi o escândalo do Mensalão, uma nódoa permanente e intransferível na história da nossa elite política.

Ao invés do mea culpa, mea maxima culpa, ao qual têm direito nós outros, os cidadãos inocentes deste País de bandalheiras que sustentamos passivamente ao longo dos anos, assim como à escumalha dirigente e sua soturna vocação para a ladroagem, lemos e escutamos cretinices tais quais as que pretendem imputar a responsabilidade pelos malfeitos acontecidos ao sistema eleitoral e de financiamento de campanhas eleitorais, enfim, ao sistema político e legal.

Querem nos fazer crer que quando um deputado foi flagrado escondendo dinheiro enlameado na cueca, em um dos mais grotescos episódios da crônica política tupiniquim, assim agia porque o sistema político/legal não prestava.

Faz parte da própria lógica do aparato intelectual que sustenta uma teoria como essa - a de que o meio cria o Homem (o determinismo social) -, a falta de capacidade técnica para compreender aquilo que está em jogo em termos científicos. Os defensores de teorias como essas pululam nas redes sociais, por razões óbvias.

Mas Charles Darwin está aí, basta lê-lo.

Aliás, como a grande, a imensa maioria dos nossos cientistas sociais é herdeira de uma tradição marxista que eles não compreendem em seus fundamentos por lhes faltar preparo, ou então são devedores de um funcionalismo anêmico de tradição norte-americana para o qual a realidade social é um carro que funciona sem a estrada e quem as produz (positivismo), estão atrasados gerações em relação ao que se discute, em termos científicos, nos centros de pesquisa das grandes universidades do mundo.

Não compreendem, mas usam, porque se aproveitam da situação.

É mais fácil botar a culpa no Sistema. Como se fosse responsabilidade apenas do meio o fato de sermos como somos, nivelando todos por baixo, inclusive aqueles que, ao longo da história, tornaram-se as nossas referências quando, em alguns momentos, fizeram avançar o processo civilizatório.

Mas que se há de fazer?

Talvez responder como a Baronesa Thatcher: "não, você se enganou, a ganância não é um bem; o altruísmo, sim, é um bem".


Arte: ip.usp.br
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quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

DA LEGALIDADE (O SUBJETIVISMO ANÁRQUICO JUDICIAL)

 


Honório de Medeiros


O povo deve bater-se em defesa da lei, como se bate em defesa das muralhas” Heráclito de Éfeso (sécs. VI-V a.c. – fragmento 44).
 
Algum tempo atrás, o Supremo Tribunal Federal se debruçou acerca da criminalização da homofobia e transfobia.
O primeiro voto, a favor, foi do Decano da instituição, que em sua opinião, por não ter o Congresso legislado sobre o tema, segundo ele por "evidente inércia e omissão", algo que a Câmara e o Senado negaram, existe, portanto, uma lacuna legal e axiológica no ordenamento jurídico brasileiro, e caberia ao STF, por intermédio da analogia, suplementá-lo.
Celso de Mello propôs que não fosse fixado um prazo para que o Congresso editasse uma lei relativa ao tema, como pedem as ações para isso intentadas, mas que, enquanto os parlamentares não se manifestassem, a homofobia e a transfobia fossem enquadradas na Lei do Racismo (Lei 7.716/1989).
Entretanto, é de sabença geral que os meios de preenchimento de lacunas, no nosso ordenamento jurídico, somente por este deveriam ser indicados, evitando a incerteza do Direito e o subjetivismo anárquico judicial.

Fique claro que este comentário não diz respeito à criminalização ou não. Diz respeito à forma como estava sendo feita.
Ora, a analogia, em matéria penal, é algo estritamente proibido pela Constituição Federal em suas cláusulas pétreas, qual seja o artigo 5º, XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.”
Então, o que levou o Ministro Mello a crer que, mesmo assim, o STF pode ir além da própria Constituição Federal?
A crença de que o STF tudo pode e pode tudo. Que compete a eles, ministros do Órgão, dizerem o que seja o melhor para a Sociedade. Depreende-se tal do que se lê a seguir:

Sendo assim e considerando que a atividade de interpretar os enunciados normativos, produzidos pelo legislador, está cometida constitucionalmente ao Poder Judiciário, seu intérprete oficial, podemos afirmar, parafraseando a doutrina, que o conteúdo da norma não é, necessariamente, aquele sugerido pela doutrina, ou pelos juristas ou advogados, e nem mesmo o que foi imaginado ou querido em seu processo de formação pelo legislador; o conteúdo da norma é aquele, e tão somente aquele, que o Poder Judiciário diz que é. Mais especificamente, podemos dizer, como se diz dos enunciados constitucionais (= a Constituição é aquilo que o STF, seu intérprete e guardião, diz que é), que as leis federais são aquilo que o STJ, seu guardião e intérprete constitucional, diz que são.” (Ministro Teori Zavaski; AI nos EREsp 644.736/PE, Corte Especial, julgado em 06/06/2007, DJ 27/08/2007, p. 170).

Esse é o cerne da doutrina do realismo jurídico, sinteticamente expresso na afirmação de Oliver Wendell Holmes, Jr., antigo ministro da Suprema Corte dos Estados Unidos: “o Direito é o que os tribunais dizem que ele é (the law is what the courts say it is”), visceralmente contrário à tradição jurídica nacional e ao que o povo brasileiro escolheu, por intermédio de seus representantes, em 1988, na Assembleia Nacional Constituinte, e o expressou por intermédio do Princípio da Legalidade, no inciso II, do artigo 5º, enquanto Cláusula Pétrea: "Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".

O desdobramento desse princípio, em matéria penal, está no artigo 5º, inciso XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Outra cláusula pétrea.

Mais claro, impossível.

O próprio Celso de Mello já se referira ao Princípio da Legalidade como um dos princípios mais importantes no Direito Constitucional; o principio capital para a configuração do regime jurídico-administrativo, e que este é a essência do Estado de Direito, pois lhe dá identidade própria”.

Como se nada disso significasse coisa alguma, os ministros do STF enveredaram pela doutrina do Realismo Jurídico, em sua versão tupiniquim, esgrimida enquanto arma de Poder, para conter o alvoroço investigatório do Senado e Receita Federal, mandando um aviso claro ao Congresso e ao Poder Executivo: “mandamos nós; obedece quem tem juízo”.

O que existirá, dentro daquelas paredes luxuosas, que o Poder Legislativo e Executivo não podem investigar?

Pior: ao assumir tal postura, ferem, mortalmente, o Princípio da Soberania da Vontade Popular, essência da Democracia, tão importante que se encontra no parágrafo único, do artigo 1º, da Constituição Federal:

"Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição".

É óbvio, posto tudo isso, que se o Congresso até hoje não quis regulamentar a questão dos crimes de homofobia e transfobia, tal significa que sua vontade, a vontade do Povo é essa. No tempo certo, em seu tempo, no tempo dos legisladores, será feito. O STF não pode dizer nem quando, nem o quê, nem quando pode e deve ser tratado pelo Legislativo.

As leis, inclusive a do contrato social, que emanam do povo, assim as vê Jean-Jacques Rousseau: “são atos da vontade geral, exclusivamente”; “é unicamente à lei que todos os homens devem a justiça e a liberdade”; “todos, inclusive o Estado, estão sujeitos a elas”.

O ideário acima exposto, expressando qual a lei que a todos submete, porque decorrente da vontade geral do povo detentor da Soberania e surgida graças ao contrato social, pode ser encontrado em obras ainda recentes, tal qual o “Curso de Direito Constitucional”, primeira edição de 2007, do Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil Gilmar Ferreira Mendes e outros.

Às páginas 37, lê-se:

"Por isso, quando hoje em dia se fala em Estado de Direito, o que se está a indicar, com essa expressão, não é qualquer Estado ou qualquer ordem jurídica em que se viva sob o primado do Direito, entendido este como um sistema de normas democraticamente estabelecidas e que atendam, pelo menos, as seguintes exigências fundamentais: a) império da lei, lei como expressão da vontade geral"; (...)

Ponto final.


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Imagem: Honório de Medeiros

terça-feira, 16 de dezembro de 2025

D. EFIGÊNIA, OU DA ARTE DE FAZER O BEM

 



* Honório de Medeiros


Dona Efigênia pontificava naquela rua onde morei.

Gorda, imensa, um pouco surda – talvez por puro cálculo – passava o dia sentada em uma cadeira de balanço na ampla sala de estar que dava para um jardim lateral. Um portão de ferro batido, pintado de branco, lhe separava do resto do mundo em sua casa antiga, senhorial, de esquina. 

Sempre perfumada, penteada e bem vestida, ficava o dia inteiro colada a uma mesinha redonda cheia de quinquilharias na qual reinavam, incontestes, o telefone e o rádio.

“Prefiro o rádio”, disse-me ela uma vez quando lhe perguntei qual a razão do eterno silêncio da televisão. “As pessoas participam mais”.

Eu cumpria fielmente o ritual de visitá-la tantas vezes fosse a sua cidade. E tenho certeza que ela gostava de minhas visitas. Prova-o o doce de coco verde sempre disponível e do qual eu gostava imensamente.

Acredito até saber a razão de sua simpatia para comigo: ao contrário da grande maioria dos que a procuravam, eu não estava interessado em fofocas ou, melhor dizendo, meu interesse era secundário, existia apenas na justa medida em que ilustraria alguma opinião sua a respeito de fatos e pessoas, isso sim, extremamente interessante, porque revelava um agudo poder de observação e análise.

Pois Dona Efigênia, viúva, com pensão mais que razoável deixada pelo falecido, além de algumas casas alugadas, filhos dispersos pelo mundo, era uma renomada e rematada fofoqueira, na opinião de quase todos. 

Talvez fofoqueira não fizesse jus ao que de fato ela era. Como uma aranha postada no centro de uma imensa teia ela recebia, analisava e devolvia informações ao longo do dia de uma imensa variedade de informantes: serviçais, comadres, afilhados, sobrinhos, primos, amigos, o carteiro – por quem tinha especial predileção, dado que vivia batendo perna pelos cantos – o leiteiro, as crianças da rua, os vizinhos, pessoas de outros lugares, o padre, o rádio e o telefone.

Devo ter esquecido alguns, óbvio, mas não esqueço sua sala de visitas quase sempre cheia e ela quase sempre em silêncio escutando até que, em determinado momento, chamava alguém para sentar em um banco baixo que ficava estrategicamente perto de sua cadeira de balanço e cochichavam algo durante alguns minutos após os quais a conversava particular era dada por encerrada.

Quando a conheci supus que aquela sua atividade começasse e acabasse conforme comentavam os maledicentes. Diziam estes que tudo aquilo não passava de fofocas de viúva velha. Depois de algum tempo compreendi que ela mesma criara essa camuflagem.

Era assim mesmo que ser enxergada pelos outros. A camuflagem ocultava o verdadeiro propósito de sua atividade diária.

Através da colheita de informações ela ficava sabendo o que de errado havia acontecido no seu entorno: alguma gravidez indesejada, uma demissão inesperada, uma prestação do colégio atrasada, uma virgindade perdida, um exame médico além do alcance de quem dele estava precisando, uma traição que se consumava, uma despensa desabastecida, uma violência doméstica cometida, um recém-nascido abandonado...

Então Dona Efigênia entrava em ação: chamava um, chamava outro, cobrava antigos favores, pedia novos, recebia dinheiro de quem lhe devia e repassava para quem estivesse precisando, dava carões, espalhava conselhos, apontava caminhos, indicava obstáculos, aproximava pessoas, afastava outras, mandava fazer, mandava desmanchar, realizando um metódico, complexo e minucioso bordado social.

Eu conseguira desvendar a charada!

Dona Efigênia, há muito, descansa em paz e, se existe Céu, nos braços do Senhor.

Seu enterro foi algo inesquecível. Houve muitas flores, muitas lágrimas de saudade e gratidão. Dela ficou, em mim, a lembrança de alguém extremamente inteligente. De alguém extremamente bom, no antigo sentido do termo.

Ao longo da vida me pego, de vez em quando, lembrando de alguma observação sua. Invariavelmente paro, componho em minha mente o quadro de sua presença naquela sala de estar hoje silenciosa, sentada em sua cadeira de balanço, pego no seu breviário que eu herdei, e me ponho a ler e é essa a homenagem saudosa que lhe presto.


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sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

UMA HISTÓRIA DA VIDA REAL

 

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* Honório de Medeiros


Nas Seleções do Reader Digest que meu pai colecionava na década de 50 eu lia, anos depois, entre menino e adolescente, uma seção cujo título era “Histórias da Vida Real”.

Não mais me recordo de qualquer dessas “histórias”, exceto uma: durante a Segunda Guerra Mundial, as moças americanas eram incentivadas a participarem do esforço comum americano escrevendo para seus compatriotas combatentes mundo afora.

Um desses combatentes começou a se corresponder com uma garota do interior de um daqueles estados americanos do Oeste.

Passaram-se os anos e as cartas, que começaram cordiais, mas distantes, assumiram um teor cada vez íntimo, com troca de confidências, sonhos, planos e tudo quanto diz respeito a, finalmente, uma correspondência amorosa.

Tudo corria perfeitamente bem, exceto pela recusa obstinada da moça em enviar, para seu correspondente, uma fotografia e o nome da cidadezinha na qual morava. Todas suas cartas eram enviadas da Estação Central de Trem da capital do seu Estado.

Ele argumentava dizendo que gostaria de ter, perto de si, não apenas suas cartas e tudo quanto de bom elas lhe traziam, mas, também, uma imagem sua para a qual pudesse olhar naqueles momentos terríveis pelo qual estava passando. 

Ela lhe respondia, justificando-se, que o amor, entre eles, começara pelo espírito, e assim deveria continuar até o momento em que, finalmente, pudessem se encontrar frente a frente, e uma fotografia poderia lhe dar uma falsa impressão que a realidade viria desmascarar.

Finalmente a guerra terminou. Ele lhe escreveu para combinar o encontro e ela lhe pediu que estivesse em certo dia e hora marcados, na Estação Central de Trem da capital do seu Estado, quando seria reconhecida por trazer, nas mãos, um ramo de rosas.

Essa era a única forma de reconhecê-la que ele dispunha: não sabia nada dela, de sua aparência, família, em qual cidade vivia, e, mesmo, se seu nome era real ou fictício. Todas as conversas mantidas por correspondência diziam respeito a aspectos da guerra e abstrações sentimentais.

No dia e hora combinados, meio-dia em ponto, lá estava ele. Para o trem e ele salta e olha, ansioso, para todos os lados.

Há poucos transeuntes na Estação. Ninguém que aparente ser uma moça desacompanhada portando um ramo de rosas nas mãos. Começa sua frustração.

Será que foi enganado ao longo de todos os anos? Será que tudo quanto ela lhe dizia por carta, o amor que nascera, os planos construídos, eram mentiras?

Parado, a maleta aos pés, a expressão ansiosa, ele olhava em todas as direções tentando encontrar uma explicação para um possível atraso, tal qual um acontecimento de última hora, um obstáculo inesperado...

O tempo passou. Uma hora depois, convicto que tinha sido iludido, ele começou a se dirigir para o guichê de vendas de passagens. Pretendia ir embora o mais rápido possível. Quando se aproximou do guichê viu, sentada, próxima ao local, uma senhora de aproximadamente sessenta anos trazendo, em suas mãos, um buquê de rosas.

“Então é isso?”. “Ela é esta senhora, e por essa razão não teve coragem de me enviar uma fotografia sua?”

Parado, perplexo, pensou em se esconder – não era possível aceitar que aquela senhora fosse sua amada! “E agora?” perguntou a si mesmo, deveria honrar o amor espiritual com o qual se comprometera e que independia de idade ou poderia justificar sua fuga alegando ter sido manipulado?

Não resistiu. Aproximou-se. “Senhora, seu nome é Lucy?”, indagou usando o nome usado por ela nas cartas.

“Não, ela me pediu para ficar aqui algum tempo, com essas rosas na mão, aguardando que alguém viesse a sua procura; ela está ali”, e apontou. Um pouco além, vindo em sua direção, com outro buquê de rosas nas mãos, uma belíssima mulher lhe sorria, enquanto acenava discretamente...


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sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

"É PRECISO DUVIDAR DE TUDO"

 

Kierkegaard

* Honório de Medeiros


“Na cidade de H... viveu, há alguns anos, um jovem estudante chamado Johannes Climacus, que não desejava, de modo algum, fazer-se notar no mundo, dado que, pelo contrário, sua única felicidade era viver retirado e em silêncio”.

Assim começa Johannes Climacus, ou É preciso duvidar de tudo, delicioso texto do escritor – meio esquecido – Soren Kierkegaard, considerado o pai do Existencialismo, nascido em 1813, e morto quarenta e dois anos depois, em 1855, um típico excêntrico pensador do século XIX.

O pequeno livro que tenho em mãos é da "Breves Encontros”, Martins Fontes, que vem publicando opúsculos de autores variados, como Schopenhauer, Cícero, Sêneca, Schelle, e outros menos conhecidos, tal qual o Abade Dinouart e Tullia D’Aragona.

O prefácio e notas, cuidadoso no que diz respeito ao levantamento da história da produção do texto e ao leve perfil do autor, está assinado por Jacques Lafarge, com tradução de Sílvia Saviano Sampaio, professora da PUC/SP, doutora em filosofia pela USP com a tese A subjetividade existencial em Kierkegaard, membro da AMPOF – Associação Nacional de Pós-graduandos em Filosofia.

É preciso duvidar de tudo é dividido em três partes: "Introdução", "Pars Prima" e "Pars Secunda".

A parte primeira contém três capítulos e o primeiro é uma afirmação: “A filosofia moderna começa pela dúvida”. A segunda parte, contendo somente um capítulo, Kierkegaard nomina-a interrogando: “O que é duvidar?”

A mim, particularmente, interessou a seguinte proposição: “a filosofia começa pela dúvida”, essência do Capítulo II, da "Pars Prima". A conclusão de Kierkegaard, falando por intermédio de Climacus, é de que essa proposição se situa fora da filosofia e a ela é uma preparação. 

Perfeito.

No próprio texto Kierkegaard alude ao fato de os gregos ensinarem, aludindo a Platão em seu Teeteto, que a filosofia começa com o espanto. Eu traduziria espanto por perplexidade, mas talvez existam diferenças sutis entre os dois termos que não valham a pena serem esmiuçadas, na justa medida em que não alteram o que é mais importante.

Muito mais recentemente Sir Karl Raymund Popper propôs que o conhecimento novo – não apenas a filosofia – começa por problemas.

Tais problemas surgiriam a partir do conhecimento antigo, ou seja, da expectativa de que regularidades, padrões, se mantivessem.

Ao nos depararmos com algo que o nosso conhecimento antigo não explica, há uma fragmentação nas nossas expectativas surgindo, então, um ou vários problemas a serem solucionados.

Elaboramos uma nova teoria que tenta explicar esse "algo" e, assim, surge o conhecimento novo. 

Podemos ler mais acerca dessa questão em suas obras Conjecturas e Refutações; A Lógica da Pesquisa Científica; Conhecimento Objetivo...

Gaston Bachelard diz tudo isso de forma profunda e elegante, lançando o repto: "o conhecimento é sempre a reforma de uma ilusão". 

Observe-se que tais teorias pressupõem a existência de um conhecimento inato, referendado pela Teoria da Seleção Natural, de Darwin. Pressupõe, ainda, dando-se razão a Immanuel Kant, que a ideia antecede a ação.

Em certo sentido, não há como deixar de dizer que estão certos não somente os gregos, assim como Kiekergaard, Bachelard e Popper. Resta saber se, no início, há o espanto com a dúvida, ou a dúvida com o espanto.

Cabe também observar que Johannes Climacus é um típico caso de personagem acometido da Síndrome de Bartleby, algo que, com certeza, interessaria bastante à Enrique Vila-Matas, referência contemporânea do romance-ensaio.

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segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

COMADRE


* Honorio de Medeiros


O que mais me impressionava em Comadre, como todos nós a chamávamos, no aspecto físico, era seu rosto. 

Nele, o sol e o suor escavaram miríades de rugas finas a recortar sua pele morena, gretada, compondo uma teia que aprisionava nosso olhar imediatamente.

Depois, as mãos. Mãos como garras. Fortes. Calosas. Descoradas por anos a fio de sabão e água. 

Por fim sua vestimenta: sempre um vestido de cor clara, chita humilde, o mesmo modelo, de mangas compridas – que ela, por razões óbvias, usava arregaçadas – que ia até o tornozelo, tudo encimado por uma espécie de coroa de pano branco de margens largas, propositadamente feitas para receber e acomodar o saco de roupas a serem lavadas.

Pois Comadre, como se pode perceber do texto, era a lavadeira não somente lá de casa, mas de praticamente toda a família.

Estava sempre feliz. Na minha meninice de bicho arredio, dado aos livros e devaneios, alternados por impulsos nervosos de convivência alegre, sua gargalhada compunha o sábado, assim como o carneiro guisado e o cuscuz molhado na graxa, na hora do almoço.

Lá em casa, mais aos sábados do em qualquer outro dia por conta da feira, até o meio da tarde o vai-e-vem e converseiro era permanente. 

Entrava-se e saiam. Saiam e entravam.

Todos confluíam para a área-de-serviço, contígua à cozinha: O leiteiro, a lavadeira, o pessoal que vinha com a feira semanal, parentes de outras cidades, aderentes, contraparentes, amigos, amigos dos amigos. 

Todos embalados por uma xícara de café e pão com manteiga.

Conversava-se, cantava-se, declamava-se, discutia-se, fofocava-se, trocavam-se receitas de bolos e de remédios. 

Naquele local, sem que me desse conta naquela época, a solidariedade fincava raízes e se propagava: todos se uniam para se amparar mutuamente. 

Escutavam-se mágoas, partilhavam-se alegrias, construía-se teimosamente a delicada trama de uma vida ancestral, fadada a desaparecer, na qual todos formavam a unidade, e a unidade era a sobrevivência.

Comadre, então, como eu diria muito tempo depois, quando o passado passou a interromper cada vez mais meu presente, era um modelo de sobrevivência. 

Paupérrima, viúva ainda jovem, criou sua dezena de filhos lavando roupa e sempre com aquela alegria de viver que me deixa, ainda hoje, perplexo e angustiado. 

Poderia ter sido um personagem de um Tolstoi tardio, quando o cristianismo primitivo passou a ser sua segunda natureza.

Vezes sem conta, quando próximo de sua tão sonhada aposentadoria, eu lhe perguntei: “Comadre, por que a senhora é tão feliz?” 

“Meu filho”, respondia-me com aquele seu sorriso luminoso estampado na face engelhada, “Deus não nos quer tristes.” 

“Mas Comadre”, retorquia eu, “e o sofrimento que nós vemos no mundo?” “E a violência, a fome, as doenças...?” 

“Olhe, meu filho, como posso duvidar de Deus? Ou acredito ou não acredito.” 

E seguia lépida e fagueira, a chistar, trouxa na cabeça, alegre, feliz, sem sequer desconfiar que sua lógica simples dera um nó em toda a minha metafísica.

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sexta-feira, 28 de novembro de 2025

UMA MISÉRIA DA ALMA

 




* Honório de Medeiros


Ninguém ensina nada a ninguém quanto ao que são, muito menos ao que poderiam ou deveriam ser, pois a verdade de cada um brota, solitária, de dentro para fora, é conquista pessoal, e toda a tentativa de ensinar para quem quer que seja acerca de tudo quanto nos cerca e envolve, sem que o busquem, é uma invasão, uma tentativa de colonização, uma miséria da alma.


honóriodemedeiros.blogspot.com  /  @honoriodemedeiros  /  Imagem: honoriodemedeiros

terça-feira, 25 de novembro de 2025

O DIREITO É FORÇA

 



* Honório de Medeiros



Em Servidão Humana, Somerset Maugham assim começa um parágrafo: “Dizia para si mesmo que a força era o direito” (...)

Os anarquistas, bem como os libertários, pensam da mesma forma.

Os primeiros enxergam na presença do Estado - e, por conseguinte, na do Direito - o supra-sumo do mal.

Os últimos aceitam-no minimalista, ou seja, reduzido a cumprir funções mínimas embora essenciais, como a segurança e/ou a eficácia das leis, sem, no entanto, afastar essa percepção ontologicamente negativa acerca do Direito.

Na realidade o senso comum também coloca essa mesma compreensão no cérebro do povo.

Para o povo a norma jurídica existe unicamente para os pobres, porque quem é rico por ela não é alcançado.

O certo é que o verdadeiro significado da presença da norma jurídica na Sociedade - a razão pela qual ela existe - é extremamente fetichizado, mascarado.

Essa situação é decorrente da própria estratégia que determina sua existência: ela existe, mas, para existir, tem de ser enxergada de uma forma que lhe permita a sobrevivência.

Um engodo, em suma. Uma manipulação.

Note-se que lei, aqui, é a norma jurídica, não aquela causal - como a da gravidade ou a da conservação da matéria. A causal existe independente da vontade do Homem; a norma jurídica é criação humana.

Assim é que, trocando em miúdos, dentre a maioria dos que escrevem livros de direito, melhor dizendo, de filosofia do direito, a lei, por exemplo, corresponde a um ideal a ser atingido e que, ao mesmo tempo, originou sua criação: o Congresso Nacional, tomado pelo mais vívido sentimento de Justiça, resolve aprovar uma lei que tem o objetivo de eliminar alguma maldade, corrigir algo errado.

Ou, para outros, a lei embora não reflita necessariamente algum ideal de justiça - porque, afinal de contas, há aquelas injustas, mas, quem sabe, necessárias - são, no entanto, resultado do Congresso, que é o resultado da vontade popular, e seriam, em assim sendo, essencialmente legítimas.

No fundo, o que se pergunta é qual a legitimidade da lei. Em que se baseiam os homens que a criam, interpretam e aplicam para exigir-lhe o cumprimento?

A resposta, hoje, mais moderna, ainda em vigor, é que a lei é resultado da vontade do povo, que a elaborou, analisou, votou e promulgou através de seus representantes, os congressistas.

Por essa linha de raciocínio, qualquer asneira que o Congresso aprove teria legitimidade, se e somente se vivermos em um regime democrático.

Esse democrático, por si só, já é questionável - afinal, eleições livres são mesmo livres? E onde os votos são comprados e a vontade do povo é manipulada através dos meios de comunicação?

Mas tal é apenas o começo da novela.

Supondo que se aceite o modelo em vigor neste País, o democrático, alegando-se que não há outro melhor, etc e tal, como se voltar contra uma lei quando ela é legal, ou seja, foi feita segundo os padrões formais, mas, no entanto, é injusta, segundo o sentimento popular?

Supostamente pressionando-se os congressistas para mudarem a lei. Essa seria a única resposta que o jogo democrático permite.

E quanto a ir por outro caminho - aquele que os “sem-terra”, por exemplo, utilizam para fazerem valer seu suposto direito legítimo à terra?

Alguns diriam que essa não é mais uma questão jurídica, extrapola seu universo e invade o da política. Outros observariam que a lei é dura mais é lei, e mostrariam o caminho do Congresso.

Não há de faltar quem diga, ao perceber que não interessa às elites resolverem o problema da terra: a força do direito é o direito da força.

E ponto final.


Honório de Medeiros
* Emails para honoriodemedeiros@gmail.com
* Respeitemos o direito autoral. Em conformidade com o artigo 22 dLEI Nº 9.610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998, que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências, pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou.

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

ÀS MARGENS DO RIACHO

 



Às margens do pequeno riacho, sentado e com as costas repousando no espaldar inclinado de uma grande pedra, gozando a sombra de uma quixabeira, o adolescente, absorto, observava o revolutear de uma folha seca em suas águas.

A água fazia a folha ir e vir, às vezes afundar para reaparecer uma pouco mais à frente, acalmar-se e, pouco depois, irromper velozmente contra as pedras que afloravam ante seu percurso, numa sarabanda caótica de recuos e avanços que, mesmo assim, levavam-na riacho abaixo, para seu destino final.

O adolescente, esgotado por uma longa caminhada que o levou até o riacho, devaneava. 

No devaneio, imaginou que aquela água era como a vida, e a folha, ele. Foi uma fugaz imagem, essa, instantânea, mas ficou encravada em sua memória para sempre.

Algum tempo depois, já universitário, entre uma aula e outra, se deitou com dois amigos de infância à sombra do telhado de um depósito que ficava ao lado de um dos auditórios da Universidade.

Estavam começando uma nova fase da vida. Cada um dos amigos expôs o que imaginava ser seu próprio futuro, a partir do curso que estava fazendo. Cismavam, todos.

Quando chegou sua vez de falar, antes mesmo de expor seu pensamento, se lembrou repentinamente daquele instante vivido alguns anos antes, às margens do riacho.

Na medida em que relembrava o episódio, contando-o, acrescentava detalhes não ao fato em si, mas à interpretação. 

Pensava o fato e o interpretava. Agora já não era apenas uma comparação entre sua vida e aquela folha seca que revoluteou nas águas do riacho. 

Era isso e algo mais: a folha seca, embora tivesse um revolutear caótico, não iria além das margens do riacho, e, caso superasse os obstáculos com os quais se deparava, desaguaria no rio que aguardava suas águas, mas, quem sabe, poderia prosseguir até cada vez mais longe, para destino ignorado.

Ao longo dos anos esse episódio passou a ser como que uma chave simbólica, cada vez mais complexa, para abrir a porta que conduzia à sua metafísica pessoal. 

Essa metafísica, esse discurso racional de si para si lhe permitia tentar compreender, na medida do possível, como era a realidade, tudo que o cercava e envolvia, incluindo ele mesmo.

A folha era ele; a realidade, a água...


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Imagem: Honorio de Medeiros

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

HOMEM LOBO DO HOMEM

 



* Honório de Medeiros

Os ingênuos creem que um iluminado possa assumir qualquer Governo e os conduzir ao melhor dos destinos possíveis.

É mais ou menos como crer que alguém possa ser campeão do mundo de Fórmula 1 dirigindo um fusca. 

Ou que um time de futebol de várzea, com Pelé nele jogando, pudesse vencer a Seleção Brasileira. 

Mas o mundo é assim mesmo, que seria dos espertalhões se não existissem os ingênuos?

E a única arma possível contra a exploração do homem pelo homem, qual seja o pensamento crítico, que a maioria dos acadêmicos confunde com crítica ao pensamento, por não saberem a diferença entre conhecer e se instruir, até onde se sabe, desde Sócrates, passando por Jesus Cristo, não faz qualquer sucesso junto aos espertalhões, tampouco entre os ingênuos.

Ai dos ingênuos! Pois é, pensamento crítico não é o mesmo que crítica ao pensamento, muito embora não se possa fazer este último sem aquele primeiro.

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sexta-feira, 14 de novembro de 2025

VAI DAR CERTO!


 

* Honório de Medeiros



- Vai dar certo. Mas só três vezes.

- Três?

- Não se lembra? Eu lhe disse. Mais que três fica perigoso. Uma já é perigoso. Três é bom, se tudo der certo: a primeira para experimentar; a segunda para se saciar; a terceira para se despedir.

- Você é muito esquisito.

- Vai ver que é por isso que você me quer. Ou será que é porque eu sou inteligente, lindo, elegante, charmoso, cheiroso?

- Bicho besta...

- Então, topa? E feche essa porta, mulher, você sabe como são as pessoas neste escritório, basta um nada para fazerem um tudo.

- Topo. E vou logo lhe dizendo: topo mundo pensa que você me come, que come a estagiária.

- Isso aí não tem como evitar, mas tem como manipular.

- Lá vem você.

- Não esqueça tudo que conversamos, viu? Depois das três é cada qual pra seu canto, somente fica a amizade...

- Não precisa ficar dizendo isso o tempo todo.

- É só para deixar bem claro. Você sabe, eu não sou muito de acreditar que uma menina nova e bonita como você queira ir pra cama comigo, um cinqüentão, só porque tem tesão em mim. Se fosse mais velha, eu não dizia nada, mas é muito nova. Será que é froidiano, seu caso?

- Que porra é isso?

- Deixa pra lá.

(...)

- Por que você não atende minhas ligações?

- Não estou atendendo?

- Sim, mas faz muito tempo que estou tentando. E eu que não queria acreditar que você só ia sair mesmo três vezes comigo...

- Eu lhe disse! A gente conversou, tá lembrada?

- Você pode ter comido muitas mulheres, mas não entende nada de coração feminino. Não se mancou que eu estava mesmo afim de você?

- Eu lhe disse que não acreditava nessa história.

- Você não queria acreditar, só queria me comer. Quer dizer que não quer mesmo mais saber de mim?

- Eu lhe expliquei mil vezes. Não dá certo. Eu não vou acabar meu casamento e arranjar inimizade com meus filhos por conta de um caso. Eu lhe disse: não é bom para mim nem para você.

- O que é bom para mim só eu sei. Egoísta!

- Não é isso, eu bem que não queria essa história, você que insistiu, insistiu...

- Quer dizer que não tem jeito?

- Você sabe que não.

- Isso não vai ficar assim!

(...)

- O que é que você tem?

- Nada não, só estou meio chateado, meu amor.

- Com quê?

- A liberdade que uma estagiária lá no escritório vem tomando comigo.

- Como é que é? E porque não botam ela pra fora?

- Ela é muito competente e é quem faz o trabalho todo do sócio novo. Fica chato eu persegui-la. E perigoso. Vão pensar que eu quis dar em cima dela e ela não me deu bola. Você sabe como é escritório que tem estagiárias bonitas. Semana passada o pessoal estava falando em câncer de pele e eu disse que tinha muito medo desse negócio, e que tinha um sinal do tamanho de um feijão do lado esquerdo do pênis, vivia mostrando à dermatologista. Sabe o que ela me disse depois, no corredor?

- O quê?

- Então, doutor, muita mulher já viu esse feijão, não foi?

- E você?

- Dei-lhe um carão grande. Não gostei da intimidade. Por azar algumas colegas dela escutaram. E não gostei de como ela me olhou...

- Deixe isso prá lá. Mas cuidado, eu estou de olho...

- Não brinque com isso não.

(...)

- Pois é, você pode até não acreditar no que eu estou dizendo, mas eu tive mesmo um caso com seu marido e tudo só acabou porque ele me enganou, prometeu que ia lhe deixar e ia viver comigo, e o tempo foi passando e nada.

- Olhe, não acredito em nada disso que você está me dizendo, e até em respeito a ele eu vou desligar. Você procure tratamento especializado, seu problema é psicológico, talvez psiquiátrico.

- Vc está dizendo que eu sou doida, é? Pois eu vou lhe provar, p-o-pro-provar, que não estou mentindo. Você conhece bem os atributos do seu marido, não é? Pois eu vou lhe provar: ele tem um sinal, mais ou menos do tamanho de um feijão, do lado do pau. Agora me diga, tive ou não um caso com ele?

- Desista, querida. Ele me disse, um dia desses, duas coisas: que estava muito chateado com uma estagiária que estava se botando para cima dele, faltando com o respeito, e que descobrira isso quando contou, no escritório, que tinha muito medo de sinais, de câncer de pele, e que tinha um do tamanho de um caroço de feijão perto do pau, como diz você. Eu chequei a história. Me disseram que o sócio dele e a estagiária estavam na hora. Confirmei tudo. Você saiu do escritório porque é oferecida demais. Vive se oferecendo pra tudo quanto é homem que tenha dinheiro. Vá com Deus e mude de vida.

- E você acreditou nesse teatro? Não percebe que ele planejou tudo? Tem nada não: nada melhor que um dia após o outro com uma noite pelo meio. Acorde logo. Se demorar, você vai se lascar.

(...)

- Sabe de uma coisa?

- O quê?

- Eu acho que você comeu a estagiária.

- Você é doida, é?

- Intuição, meu filho, intuição! Mas como eu não posso provar nada...

- Se fosse verdade, o que você faria?

- Ah! Essa vai ser sua angústia. Agora eu lhe digo: você iria chorar lágrimas muito amargas...

- Crie juízo, mulher!


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quarta-feira, 12 de novembro de 2025

OBSTÁCULOS NO CAMINHO DE GESTÕES PÚBLICAS

 



* Honório de Medeiros


Os servidores públicos, no geral, são os verdadeiros heróis nesta imensa bagunça que é a máquina estatal brasileira. 

Altruístas, competentes, dispostos, quando o são, carregam o piano, muito embora, o mais das vezes, não vejam seus esforços serem recompensados. 

Mal pagos, não recebem elogios; são preteridos por carreiristas; estão sempre no centro daquele evento nefando que é a cara da nossa administração pública: quando acertam, o mérito é do chefe, quando erram, a culpa é deles. 

Entretanto, há o outro lado da moeda: parte dos servidores públicos, como em qualquer instituição, são venais; outros, podem não o ser diretamente, mas se omitem, e sua omissão é danosa. 

Veem o errado acontecendo e, qual avestruzes, escondem a cabeça no buraco mais próximo,por medo. 

Não estamos abordando, aqui, o caso daqueles que por cansaço, desencanto, preguiça, mal costume, e assim por diante, impedem que haja qualquer tipo de avanço na administração governamental. 

Há, também, um outro tipo de servidor que é muito prejudicial ao serviço público, qual seja aquele que por compromisso ideológico ou mera opção “tribal” pelo grupo político derrotado, cuida de solapar diariamente a o novo governo. 

É sabido por quem quer que tenha alguma experiência na administração de pessoas na gestão pública, que esse tipo de servidor é um dos maiores obstáculos, ao lado dos corruptos, na implementação de reformas administrativas, ou mesmo de ações, projetos ou programas governamentais. 

O mais das vezes são órfãos de governos anteriores, às vezes oligárquicos, ou têm um projeto específico de natureza ideológica a ser alcançado.

E, por assim serem, criam obstáculos, engavetam documentos, fazem circular indefinidamente decisões que impliquem em ações, projetos e programas importantes, levantam dificuldades inexistentes, criam cizânias no ambiente de trabalho, solapam deliberadamente... 

São o joio entre o trigo (Mateus 13:24-30). 

O gestor público, ao exercer qualquer cargo que implique em tomada de decisões, precisa estar extremamente atento ao acontece no ambiente no qual exerce seu comando.

Às vezes seu órgão é pequeno, mas tem a imensa capacidade de atrapalhar toda a administração. 

Há meios eficazes para eliminar ou conter esse problema. Um deles é o critério do mérito; outro, o do controle; por fim, o último, o da punição. 

Qual o mais apropriado? Os três?


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