domingo, 25 de maio de 2025

1. A OPÇÃO PELO REALISMO

 


* Honório de Medeiros


Tudo que é compreendido, está certo” (WILDE, Oscar; Balada do Cárcere de Reading) 

Talvez não seja possível, pelo que conhecemos hoje, chegarmos algum dia a uma conclusão acerca da discussão entre Realismo e Idealismo. 

Podemos tomar posição, enfileirar argumentos tão mais numerosos quanto o são aqueles que se nos contrapõem no campo das idéias.

É possível persuadir-mo-nos, tão tentadoras parecem as premissas das quais podemos partir para justificar esse ou aquele caminho, mas, com certeza, é brumosa a estrada e sempre seremos surpreendidos pela constatação de que nele estamos sem sabermos ao certo de qual lugar partimos e, muito menos, uma vez que o conhecimento engendra tantas novas opções a cada passo, aonde podemos chegar. 

                Bachelard (1968:11) já o pressentia, na década de 30 do século passado, apontando a característica pré-científica desse ponto-de-partida ou mesmo do próprio caminho: “desde William James, tem-se repetido freqüentemente que todo homem culto segue fatalmente uma metafísica”.

              Essa metafísica, para ele, na realidade, são duas: a do Idealismo ingênuo e a do Realismo intransigente.  O primeiro seria devedor da utopia da razão absoluta, a quem competiria classificar o universo qual posto em um mundo perfeito, acabado e organizado; o segundo, refém da crença no imediato que a realidade oferece.

        Pedimos vênia para uma ligeira discordância: encontramos argumentos sólidos para crer no Realismo, não o intransigente, mas aquele que não comporta adjetivos. 

Não há como ser diferente. Pode haver algo de mais metafísico que o projeto positivista, essa exacerbação realista surgida para destruir a própria metafísica?

E o que seria ele? Nada mais que a crença no conhecimento que derivasse da experiência. Derivar a experiência sensorial das impressões, das sensações, não significa outra coisa senão a volta à cena do antigo critério da lógica indutiva.

Mas essa lógica não cumpre a expectativa que teimosamente lhe devotam seus defensores, como o demonstrou David Hume em Enquiry Concerning Human Understanding. 

Mas não somente Hume. Com efeito, o assim denominado “problema da indução” é um dos temas fundamentais de uma das obras mais importantes da epistemologia moderna, qual seja A Lógica da Pesquisa Científica, de Sir Karl Raymond Popper. 

Nela, o filósofo austríaco naturalizado inglês retoma a discussão iniciada por Hume e a aprofunda, propondo uma solução para a questão que, também, se constituiu objeto de preocupação de Kant, ao tentar superá-la e não o conseguir, propondo que o princípio da indução fosse válido a priori.

A solução proposta por Popper, qual seja o método hipotético-dedutivo corroborado pela experiência, somente surge em decorrência da sua constatação de que a passagem, conforme Hume anunciara, de “enunciados singulares (por vezes denominados também enunciados ‘particulares’), tais como descrições dos resultados de observações ou experimentos, para enunciados universais, tais como hipóteses ou teorias” ( Popper,1972:27),  não se justifica logicamente. 

                   Popper acrescenta:

“O problema da indução também pode ser apresentado como a indagação acerca da validade ou verdade de enunciados universais que encontrem base na experiência, tais como as hipóteses e os sistemas teóricos das ciências empíricas. Muitas pessoas acreditam, com efeito, que a verdade desses enunciados  universais é ‘conhecida através da experiência’; contudo, está claro que a descrição de uma experiência – de uma observação ou de um resultado de um experimento – só pode ser um enunciado singular e não um enunciado universal. Nesses termos, as pessoas que dizem que é com base na experiência que conhecemos a verdade de um enunciado universal querem normalmente dizer que a verdade desse enunciado universal pode, de uma forma ou de outra, reduzir-se à verdade de enunciados singulares e que, por experiência, sabe-se serem estes verdadeiros. Eqüivale isso a dizer que o enunciado universal baseia-se em inferência indutiva.” (OAC:28) 

Assim, a lógica indutiva, na solução proposta por Popper, passa a ser substituída por um meio através do qual se pode submeter à prova uma teoria.

 É o que Popper denomina de “prova dedutiva de teorias”.

Ou seja, é o modelo hipotético-dedutivo, que consiste no seguinte: 

“A partir de uma idéia nova, formulada conjecturalmente,[1] e ainda não justificada de algum modo – antecipação, hipótese, sistema teórico ou algo análogo – pode-se tirar conclusões por meio de   dedução  lógica. Essas conclusões são em seguida comparadas entre si e com outros         enunciados pertinentes, de modo a descobrir-se que relações lógicas     (equivalência, dedutibilidade, compatibilidade ou incompatibilidade) existem no     caso. Poderemos, se quisermos, distinguir quatro diferentes linhas ao longo das     quais se pode submeter à prova uma teoria. Há, em primeiro lugar, a comparação das conclusões umas às outras, com o que se põe à prova a coerência lógica do sistema. Há, em segundo lugar, a investigação da forma lógica da teoria, com o objetivo de determinar se ela apresenta o caráter de uma teoria empírica ou científica, e se não é, por exemplo, tautológica. Em terceiro lugar, vem a comparação com outras teorias, com o objetivo, sobretudo, de determinar se a teoria representará um avanço de ordem científica, no caso de passar satisfatoriamente as várias provas. Finalmente, há a comprovação da teoria por meio de aplicações empíricas das conclusões que dela se possam deduzir.” (OAC:33). 

E o que não dizer, por outro lado, do Idealismo ingênuo?  “Não existem fatos, somente interpretações”, observou Friedrich Nietsche, por exemplo, lembrado por Vattimo ( 2001:17) quando este defende sua crença idealista e critica o Realismo. E acrescenta:

“Esta frase de Friedrich Nietsche, que, mesmo com alguma cautela (já que poderia soar ainda como uma outra afirmação metafísica), pode ser assumida como a divisa da ontologia hermenêutica, é também aquela sobre a qual versam as polêmicas daqueles que, sempre mais freqüentemente nos últimos tempos, cedem àquela que proponho de chamar ‘tentação do realismo’”. 

Entretanto, podemos considerar, ainda com Popper (1975:46), haja vista a afirmação acerca da inconclusa discussão mencionada acima, acerca do Realismo não ser demonstrável nem refutável, pois como qualquer outra teoria filosófica ou metafísica despida de conteúdo empírico, excetuando-se, neste caso, a lógica, não podem ser suas asserções submetidas a teste, que mesmo assim parece sensato, no sentido do senso comum erudito, acatar a tese de ser indiscutível o fato de “Qualquer discussão do realismo, e especialmente todos os argumentos contra ele, [terem] de ser formulados em alguma linguagem.

Mas a linguagem humana é essencialmente descritiva (e argumentativa), e uma descrição sem ambigüidades é sempre realista: é de alguma coisa – de algum estado de coisas, que pode ser real ou imaginário (OAC:48) podendo, então, tal descrição ser submetida a critérios de verossimilitude. 

Tese essa bem menos crua, em defesa do Realismo, que a de Samuel Johnson, não o filósofo americano mas, sim, o literato inglês, ao responder a Berkeley, o qual, juntamente com Hume e Kant, constituem o cerne do pensamento idealista: “com um pontapé numa pedra”, dizendo: “refuto-o assim”. (Blackburn,1977:212). 

Ainda com Popper (1974:302), admitir ser um dos maiores erros da filosofia apresentar a “evidência por si mesma” como argumento a favor de qualquer sentença, como é feito por praticamente todas as filosofias idealistas, a despeito do caráter conjectural do conhecimento, mesmo quando tratamos com leis naturais, como aquelas que compõem a mecânica de Newton, ontem aparentemente “evidentes por si mesmas”, mas depois entendidas como válidas somente até certo limite pela física relativística de Einstein. 

Popper lembra que as filosofias idealistas são, muitas vezes, sistemas de apologética de certas crenças dogmáticas, ao mencionar:

 “O fato de que uma sentença pareça a alguém, ou mesmo a todos nós, ‘evidente por si mesma’, isto é, o fato de que alguém, ou mesmo todos nós, acreditemos em sua verdade e não possamos conceber que ela seja falsa não é razão para que ela seja verdadeira”.[2]

Com Bachelard (1977:12), continuando a perfilar argumentos em defesa do Realismo, podemos perceber e criticar as conseqüências do idealismo kantiano, que pretende pôr ordem nas “imagens que faz da natureza, atando-se ao que elas têm de imediato”, deixando de ultrapassar o mero sensitivismo. Ou, com Miaille (1979:41), especificamente no subuniverso jurídico, perceber o caráter de obstáculo epistemológico que esse Idealismo representa, qual seja o de elaborar uma teoria jurídica que é uma idealização do mundo, não uma explicação científica:

“A questão pode assim ser formulada: dão-nos as abstrações da ciência jurídica uma representação ideológica do mundo do direito, ou, pelo contrário, uma explicação científica? Desde já dou a resposta: a ciência jurídica, tal qual ela é concebida e apresentada, não é senão uma imagem do mundo do direito, não uma explicação. Como é que se manifesta esta representação? É o que temos de procurar explicar agora, para mostrar em que este idealismo constitui um obstáculo epistemológico”. 

E Miaille o explica, demonstrando em que consiste esse conjunto de noções, definições, idéias jurídicas que tudo justificam por nada justificarem – moldes proteiformes a serviço do Poder Político. Não por outra razão, como apontado mais além, neste texto, pode-se observar o uso político de aparatos teóricos, tal como o que se faz, por exemplo, ao se mudar o entendimento, o significado, a interpretação de determinada norma jurídica quando ocorre mudança na estrutura do Poder. 

Então, uma vez que não é possível escoimar-se de uma metafísica, que o seja através deste auto-de-fé no Realismo.

É sensato crer na existência real, objetiva e independente do mundo. É sensato crer que “existem coisas reais, independentes da consciência”. (Hessen, 2000:73). E não é sensato acreditar no Idealismo, bem como no Realismo exacerbado, seja em sua vertente lógico-positivista, empirista, ou fenomenológica. 

Ainda, como último argumento em defesa do Realismo, citar Winston Churchill, de quem Popper (1975:50) transcreve um texto do seu “My Early Life – A Roving Comission”:

“Alguns de meus primos que haviam tido a grande vantagem de uma educação universitária costumavam provocar-me com argumentos para provar que nenhuma coisa tem qualquer existência, exceto o que pensamos dela...” “Sempre me apoiei no seguinte argumento, que arquitetei para mim mesmo, há muitos anos... Lá está esse grande sol aparentemente firmado em base não melhor que nossos sentidos físicos. Mas felizmente há um método, inteiramente à parte de nossos sentidos físicos, para testar a realidade do sol... Astrônomos... predisseram por (matemática e) razão pura que um ponto negro passará sobre o sol um certo dia. Olhamos e nosso sentido de visão imediatamente nos diz que os cálculos deles estão confirmados... Utilizamos o que se chama em feitura de mapas militares uma ‘posição cruzada’. Obtivemos testemunhos independentes da realidade do sol. Quando meus amigos metafísicos me dizem que os dados com os quais os astrônomos fizeram seus cálculos foram obtidos originalmente, necessariamente, pela evidência de seus sentidos, digo ‘Não’. Eles poderiam, de qualquer forma em teoria, ser obtidos por máquinas calculadoras automáticas postas em movimento pela luz caída sobre elas sem qualquer mistura dos sentidos humanos em qualquer etapa... Reafirmo com ênfase... que o sol é real, e também que é quente – de fato, quente como o inferno e que, se os metafísicos disso duvidam, devem ir lá e ver.” 

Em conclusão, julgo ser possível, dada a fragilidade teórica dos fundamentos do Idealismo e Realismo exacerbado, conceber uma instrumentalização, consciente ou inconsciente, do aparato conceitual de cada uma dessas teorias para outros propósitos que não apenas o da busca do conhecimento.

Isso é impensável em termos de uma ciência que se estabelece, ela própria, quando e somente quando suas afirmações (algo real) acerca de algo (existente no espaço e no tempo) sobrevivem às críticas, aos testes, às provas.

Quanto menos frágil for o fundamento de uma teoria científica, menos ela se presta a manipulações de natureza política. 



[1] A corroboração empírica dessa conjectura popperiana é fornecida pela aplicação, à teoria do conhecimento, da medula da teoria da evolução, qual seja o “ensaio e erro”, que é a forma através da qual ocorre o processo de seleção natural.

[2] Convém lembrar que o idealismo apela a uma conduta geral do pensamento de natureza hipotético-dedutiva, no qual as premissas iniciais são dadas como verdadeiras, ao contrário do realismo que, não sendo positivista, baseia-se no método hipotético-dedutivo, onde as proposições de abertura são apenas supostas a título provisório.

* Texto constante do "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon. 

sexta-feira, 23 de maio de 2025

TIVE MEDO

 


* Honório de Medeiros    


Nessa rua, da qual somente se percebe um vislumbre, durante o dia raros sãos os pedestres e mais ainda aqueles carros ansiosos, a passarem velozes, em sua busca frenética e atormentada.

Suas poucas casas, inclusive as comerciais, têm grades. Os vizinhos, poucos - ainda os há - não se conhecem, me disse o vigilante que a percorre durante a noite portando um apito, e, na cintura, um cassetete de madeira, para amedrontar os incautos.

Nunca vi crianças correrem em suas calçadas, gritando uma com as outras, brincando despreocupadas, vigiadas por pais amorosos a conversarem serenos, como ocorria na minha meninice.

Entretanto, outro dia vi uma criança grande dormindo no chão. Quis confortá-lo, mas tive medo.

Natal, algum dia de 2024.

A PEDRA DO BEIJA FLOR

 



* Honório de Medeiros


CHAMAMOS essa pedra de Pedra do Beija Flor.
Fica no terreno entre o muro da entrada e nossa casa no Seridó, Serra de Santana.
Desde o início ela nos cativou, razão pela qual decidimos construir mais para o fundo do terreno, evitando sua remoção.
Lá ficou a pedra, parecendo esperar o momento certo para nos surpreender com sua singularidade.
Um belo dia, em um momento no qual o sol estava numa posição específica, rumando para o poente, e minha esposa olhava para o terreno, a pedra, e rezava, lembrando-se de uma tia muito amada, a quem chamava de "meu beija flor", teve um susto, me chamou e apontou.
Nitidamente, resultado da incidência da luz solar sobre uma fenda, despontava, como consequência de um jogo de luz e sombra, um belíssimo beija flor.
Imediatamente registramos a imagem.
Ela a enviou para um filho de sua tia com o qual crescera, perguntando-lhe o que  via quando olhava a imagem.
Um beija flor, disse ele.
Assim seja.

Noventa e nove anos do nascimento de D. Aldeiza.
Seridó, Serrame de Santana, Cerro, 20 de abril de 2025

* honoriodemedeiros@gmail.com.br
* @honoriodemedeiros

quarta-feira, 30 de abril de 2025

TUDO MUDOU, NADA MUDOU

 


Honório de Medeiros

@honoriodemedeiros

honoriodemedeiros@gmail.com


 Passaram-se os dias, meses, anos, como se fossem grãos de areia por entre os dedos das mãos, e os cabelos agrisalharam; certezas absolutas foram trocadas por dúvidas permanentes; amigos se foram, devorados pela voragem do tempo e das circunstâncias; desaparecimentos lacerantes cicatrizaram; tudo mudou, na mudou; sob o manto da falsa permanência das coisas, avancei na consciência da mudança também ilusória e, no final das contas, voltando os olhos para tudo que passou, neste dia no qual mergulho fundo no outono da vida, percebo que continuo imerso na mesma questão que assombrou meus devaneios de adolescente curioso e angustiado: qual o sentido de tudo isso que me cerca e envolve? Enquanto não compreendo, sigo amando os escolhidos do meu coração e tudo quanto escolhi contemplar:  isso vai me bastando e permitindo sobreviver.

Seridó, Serrame de Santana, Cerro, 26 de abril de  2025.

Imagem: @michaellalima !

                    

sexta-feira, 4 de abril de 2025

OS QUE DIZEM "NÃO"

 


Por Gustavo Sobral

Sobre o mais novo livro de Honório de Medeiros, uma publicação da Biblioteca Ocidente 

Honório de Medeiros descobre o ensaio como forma de expressão e o usa como exercício para expor como a ciência, a história, a filosofia e a literatura trataram a figura do fora do comum, o outsider. Numa forma toda sua, apresenta em livro um ensaio erudito para um tema rebelde.

Um passo de alguém que, ao estudar casos concretos de figuras fora da curva como Massilon e Jesuíno Brilhante, agora sai dos casos em particular para pensar o arquétipo. Também é, observando a obra do autor e o seu último livro, o De uma longa e áspera caminhada (2022), mais um abraço ao exercício de pensar polifônico.

Ler Honório de Medeiros é também ler todos aqueles que foram eleitos para acompanha-lo. Uma bibliodiversidade impressionante e instigante. Talvez, você termine a leitura como uma listinha de autores e livros para ler, porque é um livro que também nos leva para fora.

A leitura corre como um thriller, os assuntos vão se sucedendo, se completando, ou abrindo janelas paralelas (e não). O outsider está lá, como também o seu contrário, o homem comum, e não faltam eles, os cangaceiros, tema caro ao autor, e, nesta parte em especial, o autor é narrador, e temos mais uma camada deste livro.

O livro de Honório de Medeiros é curioso, interessante, novidadeiro, tanto na opção da forma, o ensaio; quanto na eleição do tema, o outsider, sendo ele mesmo, o autor, um outsider ao produzir uma obra incomum. Singular e inclassificável. É o livro do ano.

Publicação caprichada da editora Biblioteca Ocidente, comandada por Francisco Issac Dantas, pode e deve ser adquirido, digital ou impresso, no site da editora: https://revistagalo.com.br/selo-bo/os-que-dizem-nao/

Uma resenha sobre o livro anterior: O fio que conecta a trama e uma apreciação da trilogia:  A trilogia de Honório de Medeiros

Gustavo Sobral é escritor, criador e editor do gustavosobral.com.br


XXX

Por Carlos Santos

Enquanto duelo contra meus moinhos de vento (ou gigantes), representados por uma virose, me fortaleço com as reflexões sábias de Honório de Medeiros.

Ele não é Sancho, jamais serei Quixote – e vice versa. Somos irmãos com algum traço de sanidade. E olhe lá.

“Os que dizem não” é seu mais novo livro. Trata-se de um ensaio sobre seres humanos singulares e o pensamento que contraria o rumo da grande maioria da massa gente, através dos milênios.

Faz-me lembrar “O homem medíocre” (1913), do filósofo e escritor argentino José Ingenieros, ensaio que descreve o indivíduo conformista, alienado e comum, atraso à humanidade. É preciso nadar contra a correnteza.

Minha cura em grande avanço, que se diga, passa pela leitura dos que lançam luz na proa. Honório é guia. Rompe as trevas e encara de frente a mesmice coletiva endêmica.

Cá no sertão, à sombra de uma árvore frondosa, dou uma pausa. Mas, meu descanso é a batalha.

Carlos Santos é criador e editor do Blog Carlos Santos

quarta-feira, 26 de março de 2025

ESSE AMOR...



* Honório de Medeiros


Esse amor que não sufoca, mas, se fazendo necessário, sim. Esse amor que reclama da ausência, e se declara em silêncio, quando a lua chega e ilumina o quarto por entre as persianas, a camisa do pijama se deslocando pelo corpo ao qual cobria para ocultar os nuances realçados pelo luar. Esse amor que é uma dança, às vezes arrebatador como uma valsa, outra, suave como um samba malemolente; às vezes frenético como um rock; outra, coreografado, e complexo como um tango. Esse amor que é suave como uma gota de suor descendo lentamente ao longo do pescoço, ou denso e apaixonante como uma pega de boi na vaquejada raiz; esse amor que é tempestade e calmaria. Esse amor...

quarta-feira, 12 de março de 2025

OS QUE DIZEM "NÃO"

Disponível o livro físico na AMAZON e no site da UICLAP (loja.uiclap.com)

Ebook na aba Editora Biblioteca do Ocidente do site da Revista Galo (www.revistagalo.com.br)


SUMÁRIO

PREÂMBULO

À guisa de introdução.

OS QUE DIZEM “NÃO”

1.    Pensadores existiram e existem que supõem ser o processo histórico impulsionado por seres humanos singulares. 

2. A conjectura de que seres humanos singulares são aqueles que dizem “não” a suas circunstâncias, e, assim, impulsionam o processo histórico.

3. Dizer “não”. 

4. O que é um “outsider”? 

5.  Prometeu: o mito fundante de uma nova perspectiva. 

6. O homem comum. 

CONEXÕES

7. Há algumas histórias no meio do caminho. 

8. Uma outra história, mais complexa.

9. Os excêntricos, dotados de pensamento flexível, e tendentes à divergência. 

10. Todo “não” é um “meme”; todo “meme” é um “não”. 

11. Os cangaceiros: “outsiders”?

ADENDOS

12. O individualismo metodológico.

13. Inato ou adquirido?

14.     O “bem” e o “mal”. 

CONCLUSÃO

15. A experiência de tentar conectar fios soltos em uma trama de urdidura complexa.

16. Uma última palavra. 

BIBLIOGRAFIA

sábado, 22 de fevereiro de 2025

O JUSTO ESTÁ EM MIM

 



* Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com
@honoriodemedeiros


O nominalismo de Guilherme de Ockham questionou a possibilidade de as "Coisas" (“a Coisa-Em-Si”, “ o Objeto”, “o Ser”, “a Realidade”) dizerem, ao Sujeito Cognoscente, aquilo que elas são (suas essências).

Ou seja, nós é que, enquanto demiurgos, ordenamos, organizamos, dizemos aquilo que nossos sentidos apreendem de forma caótica, a partir do nosso conhecimento pré-adquirido (Immanuel Kant, Gaston Bachelard, Sir Karl Popper...).

Podemos rastrear tal concepção, de certa maneira, até o relativismo sofista Protágoras de Abdera, Antístenes versus Platão, mesmo até Parmênides de Eleia, quiça Heráclito de Éfeso.

O nominalismo também impede a fenomenologia de Henri Bergson e Edmund Husserl, bem como a pretensão de uma ciência cujo objetivo seja “compreender”: não é o termo “salinas” (lugar onde se cultiva sal) que me diz algo; eu é que digo algo dele, a partir do conhecimento entranhado que já possuo.

Não por outra razão a beleza desse trecho do Ato II, Cena II, de "Romeu e Julieta":

            "JULIETA - Meu inimigo é apenas o teu nome. Continuarias sendo o que és, se acaso Montecchio tu não fosses. Que é Montecchio? Não será mão, nem pé, nem braço ou rosto, nem parte alguma que pertença ao corpo. Sê outro nome. Que há em um simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume. Assim Romeu, se não tivesse o nome de Romeu, conservava a tão preciosa perfeição que dele é sem esse título.
            Romeu, risca teu nome, e, em troca dele, que não é parte alguma de ti mesmo, fica comigo inteira".

Não há, pois, essência a ser apreendida em um nome, Platão estava errado, os sofistas estavam certos.

Thomas Nagel (Visão a Partir de Lugar Nenhum); São Paulo: Martins Fontes. 2004 (Nota) observa que “Chomsky e Popper rechaçaram as intransigentes teorias empiristas do conhecimento”.

Nominamos relações, processos, evanescências: não há coisas previamente  nominadas dizendo-nos a essência de algo.

O Justo não está fora de mim, está em mim...

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

O ESTADO É INVENÇÃO DO TINHOSO

 

* Honório de Medeiros


O ESTADO - com "E" maiúsculo, é uma invenção do tinhoso. 

Não existe de fato, não é uma "coisa", é uma abstração, uma ruma de leis e homens no Poder, massacrando, espoliando, manipulando os outros - a imensa maioria, em proveito próprio... 

 No começo, disseram que o total do "pacto social", pai do Estado, era necessário para defender os homens comuns dos criminosos,  das doenças, e da ignorância.

A Igreja entrou nessa, para alegria dos reis e seus cortesãos. 

O tempo mostrou que é somente conversa fiada, coisa do tinhoso. O que eles - os criadores desse lero - queriam, era ficar por cima da carne seca, no bem-bom, fazendo maldade. 

E assim tem sido, desde que o homem deixou de rastejar e passou a andar em pé. Nada mais, nada menos. Tanto é que nada mudou, de lá para cá.

Mas Deus tá vendo!

* honoriodemedeiros@gmail.com.br

* @honoriodemedeiros

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

NÃO É TRISTEZA, É CANSAÇO


 * Honório de Medeiros

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“O que você chama de preguiça, eu batizei de cansaço”.

“Isso mesmo, cansaço”.

“Não, não é depressão. Procurei os Doutores, e eles me garantiram que não. São homens cheios de diplomas e certezas. Quem sou eu para deles discordar?”

“Fui atrás desse estranho mundo que os homens estão construindo, a tal da Rede, e os Sábios que lá fazem guarida disseram a mesma coisa”.

“Não ouso contestá-los: tenho até certo receio de que entendam mal algum elogio meu, se houvesse”. 

“Fiquei tranquilo quanto a isso".

“Melancolia? Pode ser. Entretanto, me disseram que a diferença entre tristeza e melancolia é a permanência. Uma é passageira, a outra insiste em não desistir”.

“Mas acho que não. Não estou permanentemente triste, portanto, não estou melancólico”.

“Sequer estou triste”. “Estou cansado, é outra coisa. A tristeza parece ter causa específica, seja ela qual seja”.

“Ela vem, por exemplo, quando perdemos alguém que amamos, ou presenciamos algo injusto e sucumbimos ante nossa impotência...”

“Estar cansado, esse cansaço de tudo e de nada, a vontade de ficar por aqui e ali, sem fazer coisa alguma específica, essa lassidão de corpo e de alma, é diferente”.

“Na tristeza e preguiça eu não me levantaria para pegar um bebê e lhe cobrir de beijos”. “Não ergueria a mão para fazer um carinho, quanto mais muitos outros”.

“Não tiraria o carro da garagem para viajar pelo interior pensando no pôr do sol por trás da Serra do Camará, lá no Sertão de Baixo, ou em ver a lua botando luz nas águas do açude de Cerro Corá, por entre a ramagem de nossa aroeira”.

“Então, como vê, se é que sei de algo a meu próprio respeito, isso é somente cansaço, mesmo. Aquele cansaço que aparece quando o tempo bate na nossa porta e nos diz que há muitas histórias em nossa mente e coração que não foram contadas”. 

“E não serão”. 

“Como a primeira noite que a minha memória agasalhou, foi na praia do Tibau, era uma noite escura, havia o bramido do mar do mês de janeiro, um frio molhado, fiquei maravilhado com a dança dos vagalumes”.

“Ou a noite na qual eu, inocente, contava as estrelas do céu sem lua do Ingá e alguém me advertiu: menino, seu dedo vai criar verrugas!”  

“Deixa pra lá...”

“Enfim, o que resta é isso mesmo, esse cansaço que me agasalha e nos deixa, como dizer, pensativos, ensimesmados, com o olhar perdido no tempo”.

“É somente isso. Nada mais”.

Natal, meados de dezembro de 2024.

Imagem: Honório de Medeiros.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

VIDA ALHEIA



* Honório de Medeiros

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@honorio de medeiros 


Aboletada em um tamborete, na quina da tenda dos temperos, D. Tetê, queixo na mão, compensava a boca fechada com um olhar de águia, curiando os passantes.

Encostei na vizinhança dela, fiz um ar de enfado, e comentei: "detesto quem se incomoda com a vida alheia". 

"Eu também", respondeu ela de bate pronto, ao mesmo tempo em que se ajeitava no tamborete, se preparando para assuntar.

Foi conversa longa, a nossa. Quase de pé de ouvido, ponteada por uma ou outra gaitada  quando, então, ela mostrava os dentes todos, brancos, limpos com raspa de juá, "desde menina".

No final, concordamos que não devemos evitar uma ou outra cutucada na vida alheia, moderadamente, nem que fosse para se prevenir dos feitiços da maledicência descompensada dos outros. "Mal, com mal se paga", ensinou-me ela.

"Temos que rezar, para pedir perdão por esse pecado, não é?" 

"Conversa", disse. "Deus sabe tudo. Ele sabe quem é para perdoar, e quem não é, não adianta pedir".

Que mais eu poderia dizer? Fui derrubado feito garrote na pega, pela sabedoria de D. Tetê. Fazer o quê? 

Tentei uma rasteira: "Se eu aparecer lá na Divisa, comerei uma galinha gorda e um arroz de graxa"? "Se você levar a galinha...", respondeu, com um muxoxo.

"Tá certo, D. Tetê". "Já vai? Que pressa é essa?"  "Sua sabença das coisas da vida, é de juntar menino, comadre. Eu levo a galinha gorda. E puxo o tema, para guardar seus ditos e ouvir sua gaitada..."

Juntei os sacos e me danei no mundo, olhando de vez em quando para trás, com medo da língua dela.

domingo, 17 de novembro de 2024

O SERTÃO ESTÁ NO SERTANEJO

 

* Honório de Medeiros


"O Sertão está dentro da gente", disse João Guimarães Rosa. 

Pode ser. Quem sou eu, para discordar. Mesmo assim, discordo. 

O Sertão está dentro do sertanejo.

Que outro homem andaria em um carrasco igual a esse, cheio de pedras, mato ressequido, poeira, espaço de preás, mocós, punarés, lagartixas, cobras, urubus e cangaceiros, aqui e acolá um juazeiro, no pino do meio dia? 

Nenhum. 

Entretanto, quando chove, ah!, bom Deus, quando chove, qualquer vivente se encanta com a beleza que desponta em cada canto dessa terra maravilhosa. 

Não que a beleza se esconda quando a seca surge. 

É outro tipo de beleza, da qual somente se dá conta, com a melancolia que lhe é própria, o homem do Sertão.

 
Cerro, RN, 15 de novembro de 2024.
Imagem: Honório de Medeiros.
@honoriodemedeiros

segunda-feira, 4 de novembro de 2024

LUZES NO CÉU ENTRE AS ESTRELAS


Imagem: Honório de Medeiros


* Honório de Medeiros

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Contemplo a água, os biguás e os cisnes da Lagoa de Cerro. Como veem, estou satisfeito esperando o por do sol. Lucas e Zé de Maria me garantiram que os sinais de inverno são bons. Eu tinha procurado meu Lunário Perpétuo, para tirar dúvidas, mas não o encontrei. Fiquei mais tranquilo depois da conversa com os meninos da Pousada. O fura-barreira está construindo seu ninho em lugar alto; o mandacaru florou; as aroeiras estão cheia de cachos e a quentura do fim de outubro, tudo promete, me disseram eles. Falta consultar Genilson e o pessoal do Receptivo.Sábado vou lá, puxar o tema. Vamos ver. Daqui a pouco vou subir a encosta até a casa que Deus me permitiu construir com a frente para o nascente, e as costas para o poente. Ivanaldo, o faz-tudo, vai me por a par dos últimos acontecimentos. Vida que segue. Tomara que de noite faça frio e eu veja luzes se deslocando no céu, entre as estrelas ...

Cerro Corá,  31 de outubro de 2024.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

PONTEAR UM ASSUNTO

 


Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com
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 “Sente aqui”, me disse Seu Antônio de Luzia, segurando o braço de uma espreguiçadeira próxima a ele.

Era cedo da manhã, umas seis horas, a bem dizer, mas a passarinhada já tomara conta dos pés de caju no terreno em frente, do outro lado da rua de chão batido, no Feijão, Sítio Canto, Serra da Conceição, Sertão do Norte de Baixo.

“Já tomou café da manhã”? Respondi que sim, e agradeci.
“Traga uma caneca de café para o doutor, essa menina, sem açúcar. Foi coado agora?”

A neta, filha de João, fez carreira casa a dentro, largando o bordado com o qual se divertia sentada no chão, escorada na parede.

Enquanto a caneca não chegava às minhas mãos, cuidamos de pastorar os passantes que iam no rumo da cidade, ou dela vinham, e olhávamos o vai e vem dos canários e sabiás, sem dizer qualquer palavra.

Caneca na mão, café fumegante, tapioca recusada, Seu Antônio virou-se para mim e me perguntou: “Doutor, me responda uma coisa, o senhor que é um homem sabido, estudado e viajado, vai haver uma guerra grande?”

Fiquei surpreso. Conhecia Seu Antônio de muito tempo, e tínhamos uma amizade até certo ponto estreita, nos limites bem claros da antiga cultura arcaica sertaneja.

Homem calado, dado à introspecção, de pouca conversa, limitava-se, aqui e ali, a um dito, ou pequena história, para pontear um assunto, nunca o tinha visto agir dessa forma.

“Seu Antônio, não sei dizer. O Senhor, mais que ninguém, sabe que somente Deus conhece tudo, e eu sou um homem até certo ponto viajado, que já bateu algumas capas de livro, é certo, mas quanto mais vivo, tenho por mim mesmo que menos sei das coisas”.

“É, eu esperava que o Senhor dissesse isso mesmo. Agora, veja o Senhor: se os passarinhos estão voando baixo, as formigas assanhadas, se as pedras estão suadas, o mandacaru florando, é arriscado chover. Não é que vai ser, é que pode ser”.

Durante um fragmento de tempo me lembrei dos escritos do maior dos filósofos do século vinte, Karl Popper, que dizia o mesmo em sua epistemologia, para condenar o determinismo. “Meu Deus do Céu”, suspirei para mim mesmo.

“É verdade”, respondi. “O Senhor me pegou”. “Eu compreendo e admiro suas palavras, que são de sabedoria”. “Está conforme”. “O que eu posso dizer para o Senhor, sem medo de errar, é que eu nunca tinha visto um desmantelo tão grande quanto este que está tomando conta do mundo. Pode ter tido, mas eu não dou conta”.

“É como eu penso, Doutor. Parece o fim das eras. Pode não ser, mas é muita briga, muito ódio”. “Já me conformei”. “Vivi muitos invernos e secas, passei fome e hoje tenho umas coisinhas de nada, uns palmos de terra, andei légua tirana muitas vezes, conheci o coração do homem na sua maldade e bondade, mas tempos como estes, eu nunca vi”.

A conversa prosseguiu por muito tempo. Alguns passantes paravam, tomavam um gole de café mordendo um pedaço de rapadura, davam conta do que ocorria na cidade e no campo, arriscavam uma estória ou outra, formava-se um círculo de pessoas que se desfazia, depois outro, e mais outro, todos reverenciando Seu Antônio de Luzia.

De há muito as cadeiras tinham sido arrastadas para debaixo da cajaraneira frondosa, ao lado da casa, espécie de salão de visitas a ser usado quando o sol chegava forte.

Para o fim da manhã, mormaço se instalando, Seu Antônio me intimou a entrarmos, para pegarmos o feijão da comadre, misturado com arroz vermelho e um pouco de farofa d’água temperada com cheiro verde e cebola, acompanhado por um guisado de carneiro, e rebatido com um naco de rapadura e um copo d’água gelado, seguido por um gole de café coado na hora.

“A rede está armada”, disse Seu Antônio, e eu embioquei quarto a dentro, me deitei alisando o lençol cheirando a flor de laranjeira, cobri os olhos, mergulhei em um sono de meia hora, mais não podia ser, até sonhei que voava feito um beija-flor, mundo afora, e via os homens, mulheres e crianças, em todos os lugares, felizes, sem malquerença, mágoa ou tristeza em seus corações.

                   Deus há de nos proteger...

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

A CORRIDA PARA O CINZA

Imagem: Honório de Medeiros

* Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com
@honoriodemedeiros
 

O sertanejo nordestino raiz não é muito chegado a que lhe peçam favores. Faz parte de sua cultura que cada um cuide de si, pois Deus cuida de todos. 

Entretanto, gosta de ser solidário sem que lhe peçam, pois tal gesto nasce de uma decisão sua, depois de ponderação cuidadosa, na qual o passado do vivente é muito levado em conta.

É claro que isso está desaparecendo na torrente destrambelhada dos tempos:  o rio da vida e suas correntezas estão sendo amoldados pelo chicote castrador das modernidades tecnológicas, que desfaz o que tem substância, transformando-o em farinha rala.

Então é essa corrida para o cinza, onde tudo é igual, e quando aparece um vermelho, amarelo ou verde, com seus matizes, um avalanche de insipidez os desmancha e as cores vivas e belas desaparecem lentamente para que tudo afunde em ordem sem progresso.

Tudo isso me veio à cabeça dia desses, quando de visita ao Serrame do Sertão do Norte de Baixo, mais precisamente na Serra do Camará, lá no Sítio Feijão, quando de uma conversa desapegada, tipo miolo-de-quartinha, que rebentam em qualquer calçada onde tenha mais de um desocupado.

Pois Seu Antônio de Luzia saiu com uma daquelas que até os sabiás cantores,  dos cajueiros que ficam defronte, espiando a conversa, emudeceram. Não é exagero, não. Pode até ser que eles tenham calado o bico espantadas por seu Antônio ter falado.

Ele começou uma das suas raras conversas, no fim da tarde, quase na hora coalhada, dizendo assim: "Outrora..." Todo mundo parou para escutar, mas eu notei que João de Cota ficou mais cismarento que os outros. 

Depois do dito, quando saímos caminhando no rumo das ventas, que é como chamamos esse descambo para o centro, João de Cota me perguntou: "Homem de Deus, o que danado é esse 'outrora'" que Seu Antônio falou?

Fiquei macambuzio um pedaço. Como dizer para ele que essa palavra, mais que uma palavra, é uma era que estava desaparecendo? 

Uma era encoivarada por uma atualidade despida daquela magia que as coisas arcaicas possuem e exalam, como uma água-de-cheiro antiga, uma toada de viola perdida no ontem, o sabor de uma comida da nossa meninice, preparada na banha de porco, que se foi sem deixar rastro, o sorriso gaiato de uma bela mocinha que passa para a missa dominical sustentando um olhar e um meio sorriso a dizer tudo, sem prometer coisa alguma?

É difícil. Muito. Sei que respondi secamente: é o mesmo que "antigamente", ele até se assustou, e não é do meu feitio, mas eu estava mentindo, pois não era somente isso.

Tanto não era tal qual, que amanhã, um por de sol nunca vai ser igual àquele que eu via naquele instante, enquanto caminhava na roça, os sabiás cantando, a noite se indo, enquanto e uma ou outra estrela despontava, ainda tímida, e nos fazia companhia, a zombar de nossa ignorância...

Ô Deus, que saudade.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

O ESTADO É UM NEGÓCIO


Imagem: Honório de Medeiros (Coimbra, 7 de dezembro de 2016)


* Honório de Medeiros

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@honoriodemedeiros


Pedro deve ter uns dezenove anos. Magro, magérrimo, seu corpo ossudo sobra dentro da farda do supermercado. Há sinais claros de subnutrição. No rosto espinhudo um sorriso nervoso aparece e desaparece sem conexão com o que ele diz: sorri quando fala sério, fica sério quando parece brincar com a própria desdita.

Pedro está noivo: quer casar logo, mas não pode. Pergunto-lhe se estuda. “Não tenho tempo”, diz. “Pego aqui às oito da manhã e só largo lá pras oito da noite, e, aí, tenho que pegar ônibus pra Zona Norte, do outro lado de Natal, é quase hora e meia de viagem, chego cansado, só penso em dormir, nem a noiva eu vejo”.

“Está comprando as coisas para o casamento?”, pergunto. “Nada!” “A gente recebe um cartão do supermercado quando entra no trabalho e vai comprando, comprando, lá pra casa mesmo, pros meus pais, e no final do mês quase não recebe nada em dinheiro.” Faz uma pausa e continua: “mas minha noiva tá procurando emprego”.

“Ela estuda?”, continuo. “Terminou o segundo grau, mas não foi em frente por que tem que ajudar em casa.” Pedro segue arrumando as mercadorias nas sacolas enquanto conversa comigo. Diz para mim que folga uma vez por semana, “às vezes”, já que quase sempre aparece um trabalho extra na empresa. E afirma enfático, que vai voltar a estudar, “é só as coisas melhorarem.”

Pedro não sabe, mas sua turma tende a aumentar cada dia mais. A lógica do capital predatório é essa. E anda cada dia mais sofisticada: nos círculos íntimos do Poder o Estado é tratado como “business”. Os termos usados pelos gestores públicos pertencem ao mais fino dialeto econômico/financeiro: é “destino econômico” para cá, “benefícios fiscais” para lá, “mercado interno” ali, “agenda de desenvolvimento” acolá.

É preciso “vender” o Estado, dizem eles. É preciso “captar” investidores, entoam. Pura lógica do capital predatório que amealhando corações e mentes desprevenidos ou ávidos, induz sua entrega à tarefa menos árdua e mais prazerosa de semear facilidades, mão-de-obra barata e grata e outros mimos ao custo óbvio de almoços, jantares, e viagens, para os predadores de fora e os vendilhões de dentro, loucos para espoliar mais uma caterva de ingênuos sob a batuta firme, comprometida e alienada da administração pública, salvo as exceções de praxe.

Vão se multiplicar, leio na imprensa, graças às injunções dos sábios conselheiros da Corte ante os maestros da economia brasileira, as empresas, Brasil afora. Elas vêm aí com o ansiado desenvolvimento econômico: lépidas e fagueiras, sem pagarem impostos, sem darem qualquer contrapartida para o resgate do atraso social, “mas gerando riqueza e empregos”, tal é a propaganda infernal dos publicitários chapa-branca.

Riqueza para os ricos e empregos-farsas para os Pedros da vida, as Taís da vida – garçonete noite-e-dia em um “fast-food” desses que pululam por aí, a esconder rápido, um dia desses, suas lágrimas derramadas pelo filho recém-nascido e doente deixado em mãos estranhas enquanto o emprego é defendido com unhas e dentes; os Josés da vida – empregado de uma indústria “captada” no Sul maravilha, imposto “zero”, contribuição nenhuma, – quase um escravo, tal sua jornada de trabalho.

E tudo continuará como sempre foi, desde que o mundo é mundo, por que essa história se repete há muito tempo, desde que o primeiro espertalhão cercou um lote de terra e disse que “era dele”.

Quem duvidar da história de Pedro, Taís, José, procure a Justiça do Trabalho. Leia os processos. Delicie-se com a expropriação da força de trabalho da nossa classe média mais baixa. Com a história daqueles que sustentam este arcabouço todo do Estado, reproduzindo, cada vez mais sofisticadamente, o modelo de exclusão social no qual vivemos.

Projete, a partir daí, o futuro de nossa “juventude cinzenta”, aquela que se contrapõe à “juventude dourada” – os filhos das elites. E esqueça os excluídos: esses sequer constam corretamente nas nossas estatísticas governamentais, a não ser muito por cima, como quando imaginamos quanto a economia marginal (a dos “bicos”), aquela à margem do Governo, produz dia-a-dia.

Enquanto isso, enquanto o Estado é apenas um instrumento de opressão, consequência de um longo surto atrasado e colonial de um capitalismo ingênuo e predatório – Pedro, Taís, e José não sabem, mas a cada momento aumenta o custo social que eles têm que pagar para sobreviverem nesta selva de pedra: não há políticas públicas, não há projetos sociais, não há ações governamentais planejadas, não há governo, enfim.

Portanto a eles e a seus filhos estão destinadas escolas decrépitas e sem professores; postos de saúde sem médicos e sem remédios; bairros e ruas com postos policiais abandonados, viaturas policiais inapropriadas, quebradas e sem gasolina; e a imensa massa de servidores públicos trabalhando como se estivessem em pleno século XIX, para gerar espoliação da mão de obra barata.

E como os Pedros, Taíses e Josés vicejam na lama obscura da alienação, terminam achando que plano de saúde, escola particular, automóvel, lazer, cerca elétrica, carro blindado, segurança privada é, pela ordem natural das coisas, algo ao qual somente os ricos têm acesso.

Seguem em frente a venderem seu suor, seu sangue, sua vida, a preço vil.

Ah, Jesus…


segunda-feira, 12 de agosto de 2024

MELANCOLIA

Imagem: Honório de Medeiros

* Honorio de Medeiros
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Não me pergunto acerca dessa melancolia, o cinza do dia-a-dia. Temo a morte da fantasia. Siga, digo para mim mesmo. Pegue o trem. Ou vá a pé. O caminho se faz ao caminhar, diz uma velha lenda. Não dou trela para meu outro eu, o homem sério. A intimidade geraria o desprezo.
Então aqui fico eu me importando, devaneando, e sou a melancolia, sou uma tarde de domingo, um adeus, aquele tango de Gardel, uma bolha de sabão levada pelo vento, um nicho no tempo, apenas uma ilusão, nada mais senão palavras ao vento...