Por Honório de Medeiros
Dona Efigênia pontificava naquela rua onde morei. Gorda, imensa, um pouco surda – talvez por puro cálculo – passava o dia sentada em uma cadeira de balanço na ampla sala de estar que dava para um jardim lateral e o portão de ferro batido, pintado de branco, a lhe separar do resto do mundo, em sua casa antiga, senhorial, de esquina. Sempre perfumada, penteada e bem vestida ficava o dia inteiro colada a uma mesinha redonda cheia de quinquilharias na qual reinavam, incontestes, o telefone e o rádio. “Prefiro o rádio”, disse-me ela uma vez quando lhe perguntei qual a razão do eterno silêncio da televisão. “As pessoas participam mais a vontade”.
Eu cumpria fielmente o ritual de visitá-la tantas vezes fosse a sua cidade. E tenho certeza que ela gostava de minhas visitas. Prova-o o doce de coco verde sempre disponível e do qual eu gostava imensamente. Acredito até saber a razão de sua simpatia para comigo: ao contrário da grande maioria dos que a procuravam, eu não estava interessado em fofocas, ou, melhor dizendo, meu interesse era secundário, existia apenas na justa medida em que ilustraria alguma opinião sua a respeito de fatos e pessoas, essa sim extremamente interessante por que revelava um agudo poder de observação e análise.
Por que Dona Efigênia, viúva, com pensão mais que razoável que o falecido lhe deixara, filhos dispersos pelo mundo, era uma renomada e rematada fofoqueira, na opinião de alguns. Talvez fofoqueira não fizesse jus ao que de fato ela era. Como uma aranha postada no centro de uma imensa teia ela recebia, analisava e devolvia informações ao longo do dia de uma imensa variedade de informantes: serviçais, comadres, afilhados, sobrinhos, primos, amigos, o carteiro – por quem tinha especial predileção, dado que vivia batendo perna pelos cantos – o leiteiro, as crianças da rua, os vizinhos, pessoas de outros lugares, o padre, o rádio e o telefone. Devo ter esquecido alguns, óbvio. Mas não esqueço sua sala de visitas quase sempre cheia e ela quase sempre em silêncio escutando até que, em determinado momento, chamava alguém para sentar em um banco baixo que ficava estrategicamente perto de sua cadeira de balanço e cochichava algo durante alguns minutos após os quais a conversava particular era dada por encerrada.
Quando a conheci supus que aquela sua atividade começasse e acabasse conforme comentavam os maledicentes. Diziam estes que tudo aquilo não passava de fofocas de viúva velha. Depois de algum tempo compreendi que ela mesma criara essa camuflagem. Era assim que queria que os outros lá fora a enxergassem! Essa camuflagem ocultava o verdadeiro propósito de sua atividade diária. Através da colheita de informações ela ficava sabendo o que de errado havia acontecido no seu entorno: alguma gravidez indesejada, uma demissão inesperada, uma prestação do colégio atrasada, uma virgindade perdida, um exame médico além do alcance de quem dele estava precisando, uma traição que se consumava, uma despensa desabastecida, uma violência doméstica cometida, um recém-nascido abandonado...
Então Dona Efigênia entrava em ação: chamava um, chamava outro, cobrava antigos favores, pedia novos, recebia dinheiro de quem lhe devia e repassava para quem estivesse precisando a perder de vista, dava carões, espalhava conselhos, apontava caminhos, indicava obstáculos, aproximava pessoas, afastava outras, mandava fazer, mandava desmanchar, realizando um metódico, complexo e minucioso bordado social.
Dona Efigênia, há muito, descansa em paz e, se existe Céu, nos braços do Senhor. Seu enterro foi algo inesquecível. Houve muitas flores, muitas lágrimas de saudade e gratidão. Dela ficou, em mim, a lembrança de alguém extremamente inteligente. De alguém extremamente bom, no antigo sentido do termo. Ao longo da vida me pego, de vez em quando, lembrando de alguma observação sua. Invariavelmente paro, componho em minha mente o quadro de sua presença naquela sala de estar hoje silenciosa, sentada na cadeira de balanço, pego no seu breviário que eu herdei, e me ponho a ler e é essa minha oração saudosa por ela.