O Ministério Público Federal, a Novilíngua e os quadrúpedes
Por Felipe Melo
Li há pouco notícia de que o Ministério Público Federal ingressou com ação junto à Justiça Federal para tirar de circulação o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
O motivo alegado pelo procurador Cléber Eustáquio Neves é o de que o dicionário contém explicações que podem ser consideradas preconceituosas, racistas e que tais.
Um dos exemplos apresentados pelo procurador é o seguinte:
“Ao se ler em um dicionário, por sinal extremamente bem conceituado, que a nomenclatura cigano significa aquele que trapaceia, velhaco, entre outras coisas do gênero, ainda que se deixe expresso que é uma linguagem pejorativa, ou que se trata de acepções carregadas de preconceito ou xenofobia, fica claro o caráter discriminatório assumido pela publicação [...]. Trata-se de um dicionário. Ninguém duvida da veracidade do que ali encontra. Sequer questiona. Aquele sentido, extremamente pejorativo, será internalizado, levando à formação de uma postura interna pré-concebida em relação a uma etnia que deveria, por força de lei, ser respeitada.”
Decerto isso não é culpa do procurador. Não mesmo. O que ocorre na verdade é uma concorrência de circunstâncias que acabaram atrapalhando o juízo do nobre “operador do Direito”: o caso configura-se como uma fina mistura de total ausência de casos realmente importantes em seu trabalho cotidiano com uma inegável incapacidade inata de compreender o que vem a ser metalinguagem.
Nesse sentido, vou procurar auxiliar, muito humildemente, o procurador.
Metalinguagem é a linguagem que se utiliza para analisar outra, ou qualquer sistema de significação. Gramáticas e dicionários são, pois, formas de metalinguagem. Dessa forma, o objetivo da metalinguagem é esmiuçar os signos linguísticos e, assim, esclarecer seu significado de acordo com o contexto em que são utilizados.
A metalinguagem não possui, a rigor, um caráter normativo, mas positivo: não impõe como as coisas devem ser, mas as analisa como são. Espero que o estimado procurador saiba a diferença entre normatividade e positividade, pois isso é crucial para entender minimamente a explicação que ora desenvolvo.
Portanto, quando um dicionário define que “cigano” pode ser utilizado com sentido pejorativo para designar um trapaceiro, um enganador ou coisa que o valha, o dicionário não está advogando que o termo esteja correto, muito menos inferindo que todo cigano seja trapaceiro ou enganador, mas apenas atestando o fato real de que a palavra é utilizada, em contextos pejorativos, nesse sentido. O dicionário objetiva a descrição dos efeitos, não a investigação das causas da linguagem.
Vejamos o caso de um outro dicionário, o Michaelis. Consultando pelo termo “preto” no dicionário, eis o que nos aparece (grifos meus):
preto¹
pre.to¹
(é) adv (lat vulg *prettu) ant O mesmo que perto.
pre.to¹
(é) adv (lat vulg *prettu) ant O mesmo que perto.
preto²
pre.to²
adj 1 Diz-se da cor mais escura entre todas; negro.
pre.to²
adj 1 Diz-se da cor mais escura entre todas; negro.
2 Diz-se dos objetos que têm essa cor (a rigor, no sentido físico, o preto é a ausência de cor, como o branco é o conjunto de todas as cores).
3 Diz-se das coisas que, embora não tenham essa cor, são mais escuras em relação às da mesma espécie.
4 Pertencente à raça negra.
5 Diz-se dessa raça.
6 Escuro, sombrio.
7 Em má situação; difícil, perigoso: A coisa está preta.
8 Tip Diz-se do material que, na impressão, apresenta traços relativamente grossos, carregados. sm1 Indivíduo da raça negra.
2 Escravo preto.
3 A cor negra.
4 Roupa negra.
5 Real de cobre, moeda antiga. P. aça: V preto-aço. P.-aço: designação dos albinos, entre os negros. P.-e-branco: a) diz-se de um filme fotográfico que reproduz as cores naturais em tons de preto; b) diz-se de cópia fotográfica, de filme cinematográfico ou imagem de TV produzidos sem colorido; c) diz-se do aparelho de TV que reproduz imagem sem colorido. P.-mina, ant: escravo importado da Costa da Mina. P. muzungo: preto de raça nobre, ou algo civilizado. Falar mais do que o preto do leite: falar muito. Fazer do preto branco e do quadrado redondo (a sentença do juiz): frase com que as ordenações mostravam a infrangibilidade e a força das sentenças proferidas pelos juízes. Pôr o preto no branco: escrever, para não ficar só em palavras o ajustado; lavrar documento.
O dicionário esclarece que a palavra “preto” pode ser usada para designar tanto indivíduos pertencentes à raça negra quanto adjetivar coisas/situações complicadas, difíceis ou sombrias. Não há uma equivalência valorativa entre os termos; o dicionário sequer tenta realizar isso.
O que há é tão-somente a descrição dos sentidos possíveis da utilização de um vocábulo específico de acordo com diversos contextos. Vejamos outras duas palavrinhas:
quadrúpede
qua.drú.pe.de
adj m+f e sm (lat quadrupede) Que, ou o que tem quatro pés. sm 1 Mamífero que anda sobre quatro pés. 2 fig Homem bruto, estúpido, tolo.
qua.drú.pe.de
adj m+f e sm (lat quadrupede) Que, ou o que tem quatro pés. sm 1 Mamífero que anda sobre quatro pés. 2 fig Homem bruto, estúpido, tolo.
toupeira
tou.pei.ra
sf (lat talparia) 1 Zool Mamífero insetívoro (Talpa europaea), que vive em tocas debaixo da terra e cujos olhos são tão rudimentares que por muito tempo se consideraram como não existentes. Voz: chia. 2 Zool V cantarilho. 3 Pessoa de olhos muito miúdos. 4 Pessoa intelectualmente cega, ignorante, estúpida. 5 fam Mulher velha e andrajosa. 6 Pessoa mexeriqueira. 7 Pessoa que mina como a toupeira, conspirando ocultamente para subverter instituições.
tou.pei.ra
sf (lat talparia) 1 Zool Mamífero insetívoro (Talpa europaea), que vive em tocas debaixo da terra e cujos olhos são tão rudimentares que por muito tempo se consideraram como não existentes. Voz: chia. 2 Zool V cantarilho. 3 Pessoa de olhos muito miúdos. 4 Pessoa intelectualmente cega, ignorante, estúpida. 5 fam Mulher velha e andrajosa. 6 Pessoa mexeriqueira. 7 Pessoa que mina como a toupeira, conspirando ocultamente para subverter instituições.
Se alguém hipoteticamente viesse a chamar o egrégio procurador de “quadrúpede” ou “toupeira”, decerto que não se tentaria fazer crer que se trata de um mamífero de quatro patas que vive no subterrâneo e se alimenta de insetos (ainda que alguém pudesse pensar que isso fosse, no caso concreto, mais elogioso do que depreciativo).
Essa pessoa estaria querendo dizer que o procurador em questão é um homem estúpido e intelectualmente cego. A culpa pelo uso pejorativo do termo não recai, todavia, no veículo que descreve e elucida a utilização dos vocábulos, mas naquela pessoa que os emprega com fins pejorativos.
Culpar o dicionário é o mesmo que processar por homicídio o atestado de óbito, e não o responsável pela morte.
.Felipe Melo edita o blog da Juventude Conservadora da UNB.
.Felipe Melo edita o blog da Juventude Conservadora da UNB.
OPINIÃO D´O SANTO OFÍCIO:
Um leitor resumiu inteligentemente essa questão esdrúxula a olho nu de leigos e especialistas: o procurador federal, ao ajuizar ação para a retirada de circulação do Dicionário Houaiss – um dos mais conceituados dicionários do mundo civilizado -, pisou feio na bola, ao alegar que o dicionário contém explicações que podem ser consideradas preconceituosas, racistas e que tais.
Seu argumento simplório, eivado de desinteligencia, agride o bom senso e mostra que o mesmo não entendeu patavina do serviço cultural e social que presta o dicionário, por isso mesmo chamado, popularmente, de “pai dos burros”, por que esclarece e fundamenta de acordo com a necessidade, a curiosidade e o interesse do fregues.
O procurador confunde alhos e bugalhos. Dá provas, inequívocas provas que constam da sua justificativa, ao fundamentar o pedido, sob a alegação de que o dicionário comporta “explicações que podem ser consideradas preconceituosas, racistas e que tais”… etc.
Segundo Ésio, em seu breve comentário pertinente, o procurador em questão está aprendendo a lição da pior forma – pelo ridículo. E, acrescentamos aqui, colocando em má situação, no conceito da opinião pública, a própria instituição que se deixa representar por um doutor de cultura jurídica tão precária e de argumentos tão fracos e equivocados. O douto procurador viu o dicionário, mas não entendeu o espírito da coisa!
Um comentário:
Ele conseguiu o que queria: Aparecer. Agora, se candidata a vereador de uma cidazinha qualquer e daqui a pouco exige a revogação da lei da gravidade porque obriga todos a se sentirem por baixo!
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