terça-feira, 29 de dezembro de 2009

A ESTRANHA PEREIRO - II



Pereiro, Ceará

Por Honório de Medeiros
 
Do final do século XVIII, e construída com areia trazida a pé, pelos escravos, do leito do rio Jaguaribe, a cem quilômetros de distância, a Casa Grande da Fazenda Trigueiro, postada próxima à margem da estrada entre São Miguel, Rio Grande do Norte, e Pereiro, Ceará, impressiona quem a vê desde a distância. “São trinta e oito compartimentos”, diz-nos Zé Denis, filho mais velho de Dona Deocides, a viúva Castelã. “Todos imensos”, penso eu, ao ser levado a cada um deles. “Imensos na largura e na altura”.

Peço à cozinheira para ficar próximo à janela da cozinha. Uma vez fotografada, dará uma noção do tamanho da janela – bem maior que ela, que deve ter um pouco mais que um metro e meio. Excetuando a cozinha, todos os outros compartimentos do térreo não têm janelas para fora e se comunicam com os vãos centrais. Se houvesse um ataque – índios, antes, cangaceiros, depois – a única porta que permite o acesso ao interior da casa seria fechada, todos subiriam para o andar superior – no qual ficam as janelas – e a defesa estaria garantida. “A porta funciona como uma ponte levadiça de castelos medievais”, eu digo, observando a chave imensa que a fecha, trazida, da Suíça, na época da construção.

As paredes têm quase um metro de largura. Ocultam segredos ancestrais, como ossos humanos, restos mortais de pessoas emparedadas sabe-se lá quando nem por que, semelhantes aos encontrados certa vez, quando se tentou estabelecer uma comunicação entre dois compartimentos. “Naquela época”, diz-nos Zé Denis, que já foi vereador em Pereiro, mas hoje se dedica a tomar conta da propriedade e da mãe, “como não havia “campo santo” (cemitério), as pessoas mais importantes eram sepultadas assim, acho que seguindo o exemplo das igrejas.” Cada detalhe chama a atenção: são biqueiras para escorrer a água da chuva, de cobre, reproduzindo a boca de um tubarão, também vindas da Suíça; os arabescos da cumeeira da Casa que, nos cantos, lembram um “s” deitado, mas, na realidade, são uma letra grega; a “sapata” – base na qual se assenta todo o imóvel -, que na parte anterior, dando para uma área enorme, como se fosse uma praça de chão batido, em torno da qual todas as construções são postadas, deve ter quase dois metros de altura. É o sótão, um andar inteiro, onde os escravos aguardavam, noite afora, o momento de sua morte, não por outro motivo denominado “quarto dos suplícios”...

“Noite de chuva, as tábuas rangendo, o barulho do vento, que tal Zé Denis”, pergunto. Ele fica sério. “Está vendo aquela casa ali do lado?” “Claro”, respondo. “Na década de oitenta fomos morar nela. Ficou insuportável viver aqui. Batiam as portas, rangiam as tábuas, as luzes apagavam inexplicavelmente, ouvíamos lamentos, arrastar de passos, desapareciam as coisas.” “Frei Damião”, prossegue, “esteve em São Miguel para uma de suas Missões e conseguimos falar com ele que veio aqui e realizou um exorcismo. Só assim pudemos voltar.” “Tinha que ser em Pereiro”, pensei ao me lembrar do episódio do cemitério, relatado antes. “Ficou tudo resolvido?” “Melhorou muito, mas ainda ontem, por duas ou três vezes, na hora do almoço, alguém bateu palmas e me chamou pelo nome, insistentemente. Quando eu saía para o pátio era o canto mais limpo.”

Dona Deocides nos mostra o local da sala onde estão as fotografias da família. Uma me chama imediatamente a atenção. Em sépia, os contornos de Dona Carolina Fernandes, viúva de Manoel Diógenes, o português construtor da Casa Grande da Fazenda Trigueiro. Uma Fernandes, assim como os da Casa Grande da Fazenda São João, em Marcelino Vieira; e os da Casa Grande da Fazenda Sabe Muito, em Caraúbas, as três maiores do Alto Oeste, salvo engano. Todos ligados por laços de parentesco com Matias Fernandes Ribeiro, o genro do fundador de Martins, Francisco Martins Roriz, e de sua esposa Micaela.

4 comentários:

Anônimo disse...

Caro Honório, belas fotos e belo texto, me fez viajar sem sair do lugar pelos caminhos do sertão, quanto de histórias temos "escondidas" por todo esse Nordeste.
Um abraço.

Angelo Osmiro

CARIRI CANGAÇO disse...

Amigo Honório, muito obrigado por nos presentear com essas passagens marcantes ligadas às origens de nosso Ceará, tenho uma família (Borges de Campos) muito querida em Pereiro, inclusive estarei com eles em Fevereiro e tomei a liberdade de mandar um email (com essa postagem) para eles.

Grande abraço.

Mnaoel Severo

Unknown disse...

Caro professor Honorio, antes de mais nada, obrigado, por me fazer viajar, mesmo sem sair da cadeira aqui em São paulo, quanta saudade dos meus tempos de criança, visitei este monumento da fazenda João Gomes, anos 60 ou 70, de seu capataz " João Geronio", que na minha viagem de 2007, tive a felicidade de revê-lo. Obrigado

Unknown disse...

Olá professor, fiz o comentário anterior, sobre a fazenda João Gomes, Marcelino Vieira, RN, tenho o imenso prazo em ser filho desta terra querida, nasci no Sitio Varzea do Canto. Visitei esta terra, recentemente,junho 2012, quanta saudade da minha terra
amadeu@icla.com.br