Honório de Medeiros
Aos
meus alunos do curso de Filosofia do Direito, vez por outra eu propunha o
seguinte problema:
“Façam
de conta que vocês são chefes de uma estação de trens, responsáveis, entre
outras coisas, pela direção que as locomotivas devem tomar em seus percursos
diários.”
“Um
dia, durante o expediente, vocês recebem um comunicado urgente lhes informando que
uma das locomotivas que passam em sua estação está completamente desgovernada e
em alta velocidade.”
“Em
sua estação vocês têm a possibilidade de conduzir a locomotiva, apertando os
botões A ou B, por duas diferentes opções.”
“Seu
tempo para decidirem é extremamente curto. Algo como segundos.”
“Vocês
sabem que na linha A trinta homens estão trabalhando na manutenção. E sabem que
na linha B cinco homens lá trabalham fazendo o mesmo.”
“Qual
a decisão de vocês?”
Em
todos os anos de ensino, a resposta foi sempre a mesma: todos optaram por
apertar o botão B. Ao lhes indagar por que faziam assim, respondiam-me que lhes
parecia certo submeter a linha na qual estavam menos homens à possibilidade do
choque.
Então
eu lhes perguntava: “e se, na linha B, estava um engenheiro de manutenção, que
por coincidência, era pai de vocês e um irmão, seu auxiliar”?
Seguia-se
um silêncio embaraçoso. A grande maioria se recusava a responder a questão. Um
ou outro, muito pouco, tendia para um lado ou para o outro.
Questões
como essas começam a ser esmiuçadas pela psicologia social, um ramo que em
muito deve seus avanços à combinação de duas vertentes poderosas: a teoria da
seleção natural de Darwin, e o afã em larga escala, tipicamente americano, de realizar
pesquisas de campo.
É
nesse nicho que transita Leonard Mlodinow, festejado autor de “O Andar do
Bêbado”, em seu novo livro denominado “Subliminar: como o inconsciente
influencia nossas vidas”.
Mlodinow
é doutor em física e ensina no famoso Instituto de Física da Califórnia. Mais
que isso, ele é coautor, junto com Stephen Hawking – sim, isso mesmo – de alguns
livros de inegável sucesso tanto de público quanto de crítica.
Em “Subliminar”
Mlodinow, fundamentado em vasta pesquisa, apresenta hipóteses instigantes, como
essa que eu transcrevo abaixo:
“Como enuncia o psicólogo Johathan
Haidt, há duas maneiras de chegar à verdade: a maneira do cientista e a do
advogado. Os cientistas reúnem evidências, buscam regularidades, formam teorias
que expliquem suas observações e as verificam. Os advogados partem de uma
conclusão a qual querem convencer os outros, e depois buscam evidências que a
apoiem, ao mesmo tempo em que tentam desacreditar as evidências em desacordo.
Acreditar no que você quer que seja
verdade e depois procurar provas para justifica-la não parece ser a melhor
abordagem para as decisões do dia a dia.
(...)
Podemos dizer que o cérebro é um bom
cientista, mas é um advogado absolutamente brilhante. O resultado é que,
na batalha para moldar uma visão coerente e convincente de nós mesmos e do
resto do mundo, é o advogado apaixonado que costuma vencer o verdadeiro
buscador da verdade.”
Muito
embora o autor se refira a advogados, claro que ele alude a todos quanto lidam
com a tarefa de produzir, interpretar e aplicar a norma jurídica.
Em
assim sendo faz sentido acreditar, como muitos acreditam, que os juízes, por
exemplo, primeiro constroem um ponto de partida extrajurídico (sua visão do
mundo, seus valores, seus interesses pessoais, etc.) e, somente depois, buscam
evidências que apoiem suas futuras decisões.
A
Retórica é exatamente isso, enquanto técnica.
A
pergunta seguinte: a partir de quê os operadores do Direito constroem esse
ponto de partida pode ser lida em um dos mais instigantes capítulos da
obra de Mlodinow: “In-groups and
out-groups”. Nesse
capítulo o autor chama a atenção para um epifenômeno que, hoje, é fato
científico: a tendência que temos de favorecer “os nossos”:
“Os cientistas chamam qualquer grupo de
que as pessoas se sentem parte de um ‘in-group’, e qualquer grupo que as exclui
de ‘out-group’. (...) É uma diferença importante, porque pensamos de forma
diversa sobre membros de grupos de que somos parte e de grupos dos quais não
participamos; como veremos, também veremos comportamentos diferentes em relação
a eles.”
“Quando pensamos em nós mesmos como
pertencentes a um clube de campo exclusivo, ocupando um cargo executivo, ou
inseridos numa classe de usuários de computadores, os pontos de vista de outros
no grupo infiltram-se nos nossos pensamentos e dão cores à maneira como
percebemos o mundo.”
“Podemos não gostar muito das pessoas de
uma maneira geral, mas nosso ser subliminar tende a gostar mais dos nossos
companheiros do nosso ‘in-group’.”
Essa constatação – de que gostamos mais
de pessoas apenas por estarmos associados a elas de alguma forma – tem um corolário
natural: também tendemos a favorecer membros do nosso grupo nos relacionamentos
sociais e nos negócios (...)”
Ou
seja, como diz o senso comum: para os amigos tudo; para os indiferentes, a lei;
para os inimigos, nada...
Se
assim o é, e a ciência vem mostrando que sim, um dos corolários da obra de
Mlodinow é pelo menos intrigante, e dá razão ao que dizem, desde há muito, os
anarquistas e marxistas: a "visão de classe" contamina as decisões do aparelho
judiciário. Não somente do aparelho judiciário. Contamina a produção, interpretação
e aplicação da norma jurídica.
Isso
quanto aos marxistas e anarquistas. Quanto aos darwinistas, nem se discute mais
o assunto. Para quem não é anarquista ou marxista, basta Gaetano Mosca, que também aborda, brilhantemente, essa perspectiva, quando trata da "classe política dirigente".
E quanto ao mundo jurídico? Neste caso, ainda está muito atrasada a discussão. Ainda há "juristas" que discutem se Direito é ou não ciência...