segunda-feira, 9 de maio de 2016

QUEM ERA O HOMEM DE OLHOS ACESOS?

* Honório de Medeiros
O pai de minha sogra tinha mais de noventa e seis anos. Andar curvado, pele curtida, mãos nodosas, cabelos finos e totalmente brancos, de uma magreza ascética, poucas palavras que um começo de senilidade acentuou ao longo dos seus últimos anos, embora não lhe fizesse perder totalmente o senso.

Homem tipicamente rural, daquela estirpe de nordestinos como já não os há, cuja palavra empenhada vale mais que qualquer cheque em branco, seu código de honra fora imutável: uma vez tomada uma posição qualquer, não havia possibilidade de mudança e seus valores eram "preto no branco". Seus avôs os tiveram iguais e também os pais e, segundo ele, deveria ser assim por que assim o era desde que o mundo é mundo.

Aconteceu que um dos seus muitos filhos, suscetível, em termos de honra, tanto quanto ele, depois de uma desavença onde não faltaram palavras ásperas de lado-a-lado, foi-se embora jurando nunca mais voltar. Ele sentiu o golpe, mas não o acusou. Ano após ano, mesmo as lágrimas de mãe que sua esposa derramava escondido e ele pressentia não lhe fez sequer murmurar o nome daquele que ousara levantar a voz e desrespeitar sua autoridade paterna. Era como se o filho não existisse, e as notícias esparsas, trazidas pelos outros até o seio da família não lhe eram comunicadas, circulando sem o seu conhecimento por entre mãe e irmãos.

Dias antes da última eleição municipal que o encontrou vivo uma ligação da desconhecida esposa do seu filho que se fora comunicou sua doença: entubado, inconsciente, comatoso, jazia na unidade de tratamento intensivo de um grande hospital em uma cidade distante, no norte do País. Criou-se uma sincronia macabra entre a expectativa do dia da eleição e o da sua morte, nessa altura, já esperada. 

Enquanto isso, embora todos, em casa, soubessem da situação, e poupassem o pai por temor de um agravamento da sua fragilidade de idoso, a ansiedade pelo desfecho, tanto da eleição, quanto da morte, esta agravada pela dificuldade de se obterem informações, aumentava cada vez mais.

No dia anterior ao da eleição, às oito horas da manhã, uma das suas filhas, como de costume, foi acordá-lo para o café e o encontrou falando como se estivesse se dirigindo a alguém. Perguntou-lhe: “com quem está falando, papai?” “Com esse homem de olhos acesos que não para de me olhar.” “Quem, papai, aqui não tem ninguém.” “Você pensa que eu sou doido; o que ele queria aqui no meu quarto?” A filha teve imediatamente um palpite, e, angustiada, sentou-se lentamente na cama. “Papai, esse homem era novo ou velho?” “Era novo, ainda.” Nesse instante, o telefone toca estridentemente lá fora. Ela corre para atender. Do outro lado da linha, a informação agora esperada: “seu irmão acabou de falecer.”

Mas ainda não acabara o inexplicável. À noite, enquanto era acomodado em sua cama, véspera tumultuada de eleição, o pai se virou para a filha e resmungou. Atenta, ela lhe pergunta: “o que é papai?” “Essas almas”, responde, “hoje está cheio delas aqui.”

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