sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

"SEO" CHICO PIU E A TEORIA DA EVOLUÇÃO


Não fossem as fotografias guardadas com muito carinho, nas quais um Honório de Medeiros magro e sorridente, sem rugas e cabelos grisalhos, as lembranças daquele mágico passeio a cavalo até a fazenda de café de “Seo” Chico Piu, serra acima na área rural de São Carlos, interior montanhoso de São Paulo, tudo seria apenas borrão na minha memória, algo como um filme antigo, com paisagens e pessoas esmaecidas pelo tempo. Pego-as e sorrio, sempre. Depois, um toque de amargor toma conta do espírito e lamenta a juventude passada, os amigos que se foram, os sonhos desfeitos, as promessas não cumpridas, os amores perdidos. “C’est la vie”, dizem os franceses.

Naquela tarde conheci Chico Piu, homem sob todos os aspectos singular. Em primeiro lugar vivia quase recluso, lá no seu pé de serra. Raras vezes descia à cidade. Bastava-lhe, para viver bem, estar pisando descalço sua terra rica e roxa cercado por sua gente, que lhe margeava como uma tribo o seu cacique. “Seo” Chico era baixo, moreno gretado pelo sol, de braços e pernas fortes, espadaúdo, e com uma face como que esculpida em bronze, com traços muito demarcados. Mas o que mais impressionava eram seus pés. Eles, de fato, se viram sapatos, ou mesmo chinelos, havia sido em tempos idos, segundo suas próprias palavras. Eram verdadeiros cascos, endurecidos por todos os invernos e verões aos quais “Seo” Chico os havia submetido. Segundo nos contou, descia descalço até mesmo para a cidade, aonde raramente ia. E não sentia frio ou calor, não era sensível à água ou à rocha mais dura.

“Seo” Chico era homem de pouca conversa quando no trabalho ao qual se entregava como qualquer um dos seus trabalhadores. Colhia o café, batia, ensilava, ensacava, derrubava as reses, ferrava-as... Um maestro em pleno exercício de sua arte, cegamente obedecido por seus músicos. Era, basicamente, dono de cafezais e de rebanho leiteiro. Vivesse no Sertão nordestino e tivesse aqui terra e gado como aqueles seria um homem de posses, por assim dizer. No final de uma tarde como aquela, no entanto, tempo esfriando ligeiro indicando noite gelada, visita no pátio da casa grande e rústica, a sisudez era deixada de lado e o café forte e a aguardente feita sob sua própria orientação lhe iluminavam o semblante e abriam seu coração e mente originando conversas recheadas de casos passados e argutas observações acerca da vida.

Mas tudo que é bom dura pouco.

Com a chegada da noite veio a hora de voltar sob a fria luz da lua. Tomamos o último café, bebemos a última caneca de cachaça e ele, se despedindo, bateu na anca da mula que me conduzia, apontou para mim e quase como para si próprio, refletindo, e me disse ter o tempo lhe ensinado que a vida era como uma serra da qual cada um que descia era por que o outro que subia lhe tomara o lugar. Dito isso, deu um passo para trás, ajeitou o casaco de lã por sobre os ombros incomodados com o sereno da noite e lá ficou, a nos observar partindo, com seus pés indiferentes à temperatura que caíra bruscamente e, com certeza, a todo meu conhecimento sorvido dos livros de teoria da evolução que diziam, de forma muito pomposa e circunspecta, aquilo que ele deduzira somente observando, no seu pé de serra, a vida passando ao largo.

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