quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O RIO GRANDE DO NORTE NO TEMPO DO CORONELISMO - VIII

O ATAQUE A MOSSORÓ

Continuação...

Começo de 1926. Como em todos os finais-de-tarde em Brejo do Cruz, no Sertão paraibano, formar-se-ia uma roda na calçada na frente da casa de Antônio Dutra de Almeida. Doutor Joca Dutra (João Minervino de Almeida), Paulino Dutra de Morais, José Targino, Doutor Francisco Augusto de Resende (Juiz Distrital) se fariam presentes. As cadeiras, dispostas dia-a-dia nos mesmos lugares, eram, pelo hábito, marcadas: receberiam sempre os mesmos ocupantes. Em certo momento daquela tarde José Targino e Doutor Joca Dutra, que já haviam chegado, levantam-se e vão tomar água no interior da casa. Nas cadeiras nas quais eles estavam sentados, inexplicavelmente sentam-se Paulino Dutra de Morais e Doutor Francisco Augusto de Resende que acabavam de chegar. Escurece. Um atirador solitário toma posição a alguma distância, do outro lado da rua, e, de rifle, depois de fazer mira cuidadosamente, atira nos ocupantes das duas cadeiras que lhe tinham sido previamente assinaladas, em conversa anterior. Doutor Francisco Augusto de Resende tomba morto. Paulino Dutra de Morais, ferido, faz menção de se levantar. O atirador aproxima-se e desfecha várias facadas em Paulino Dutra. Ao terminar observa atentamente o semblante do homem morto e grita: “matei um inocente”. Recolhe as armas, monta a cavalo, pica o flanco do anima com as esporas e some na escuridão da noite. Era Massilon.
 
Termina, ali, o domínio político dos Dutra. O poder migra para as mãos dos Maias e Saldanha. Massilon, que era comprador/vendedor de gado quando entrou no cangaço, ao voltar do Sítio Japão, para onde o pai emigrara, vindo de Pombal, na Paraíba, matara, em Belém do Brejo do Cruz, um soldado que fora mandado pelo pretendente ricaço de uma moça por quem se enamorara, e que gostava do rapaz claro, de cabelo fino, vaidoso, trabalhador, já conhecido na Região, para lhe tomar a arma e lhe desmoralizar no dia da feira . Essa morte teria sido depois de 1924, talvez 1925, antes de sua família ir para Luis Gomes, o que ocorreu em 1925. Tércia Guedes de Araújo, tia de Massilon, em entrevista gentilmente cedida pelo pesquisador e escritor Sérgio Dantas, afirma tê-lo visto em Pombal, Paraíba, depois do episódio.
Massilon sabia que na Paraíba não havia mais lugar para ele. Dos beneficiários dos seus crimes obteve passaporte e amparo para começar outra vida longe dali. Cortou o território do Alto Oeste potiguar e reapareceu no Ceará, mais precisamente em Alto Santo, sob a proteção de Benedito Saldanha, grande proprietário rural na Região, irmão de Quincas Saldanha, por sua vez latifundiário em Brejo da Cruz e Caraúbas, Rio Grande do Norte.
 
Alexandro Gurgel conta outra versão. Em artigo para o jornal mossoroense “A Gazeta do Oeste” acerca de Massilon, louvando-se em entrevista feita com Pedro Dantas Filho, falecido em 2002 com 88 anos, natural de Belém do Brejo do Cruz, que afirmava ter conhecido o cangaceiro, diz-nos que o Delegado dessa cidade, homem valente e hostil, havia proibido o povo de andar armado. Nada teria acontecido com Massilon se alguém não tivesse ido à polícia denunciá-lo. Cercado por trás da igreja local e segurado por um seu amigo chamado “Mané Forte”, que pretendia convencê-lo a se entregar, mesmo assim Massilon trocou tiros e atingiu um policial matando-o. A partir de então enveredou pelo crime.
 
Raimundo Nonato lembra que Jararaca dissera ter Massilon Leite declarado serem suas as mortes de Brejo do Cruz, o que corrobora o relato feito acima. Sérgio Augusto de Souza Dantas nos lembra que Massilon foi almocreve. É verdade. Entretanto, quando da morte do policial em Belém do Brejo do Cruz já era comprador/vendedor de gado. É o que nos relata o Capitão Viana, bem como os irmãos de Massilon Tércia e Zé Leite, em entrevista que o escritor gentilmente nos cedeu.
 
Fomos em busca de uma “memória viva”, para escrever a saga de Massilon. Quando chegamos à residência do Capitão Viana – Francisco Viana – em Macaíba, Rn, encontramos um velhinho seco de carne e temperamento, vestido com um pijama azul claro à antiga, daqueles cujas camisas são de manga comprida, sentado em uma cadeira de balanço e lendo a Bíblia. Recebeu-nos muito bem e logo mandou servir café. O Capitão Viana tinha, na data da entrevista, noventa e três anos muito bem vividos. Longa prole, alguns poucos bens, saúde saltando à vista, memória fantástica. Durante a entrevista em nenhum momento titubeou quanto as informações prestadas. Ao tentarmos falar acerca de sua atuação como policial em alguns casos mais escabrosos fechou a cara e disse, abruptamente: “isso é segredo de polícia, não posso dizer nada”. Foi delegado, entre outras cidades, de Apodi, Macau, Açu, Caraúbas, Nova Cruz, São Tomé, e Areia Branca.
 
Pois bem, o Capitão Viana, quando menino lá em Alto Santo, então distrito de Limoeiro do Norte, conheceu Massilon – embora de longe, só de vista, como se diz no Sertão. Mas fornece vários dados importantes acerca do cangaceiro: “Massilon, depois do ataque a Apodi, nunca mais voltou lá. Em 1940, quando fui Delegado de Apodi, já não se falava mais nele. Massilon era jagunço de Décio Hollanda, lá de Pereiro, e foi jagunço de Benedito Saldanha. Antes de Apodi Massilon morava com Décio Hollanda, no Pereiro, Fazenda Bálsamo. Ele vivia de comerciar gado, era marchante, não tem cabimento essa história de sapateiro que o cangaceiro Bronzeado que você falou conta. Eu sou testemunha de tudo isso por que morei em Alto Santo até os quinze anos, quando fui para São João do Jaguaribe. Na época da invasão de Apodi eu estava em Taboleiro do Norte. De lá fui para São Paulo. Em 1934 voltei para o Rio Grande do Norte e sentei praça na polícia.”
 
Esse mesmo Massilon que foi apontado pelo Capitão Viana como tendo sido jagunço de Benedito Saldanha, era protegido de Quincas Saldanha, seu irmão, a quem chamava de “Padrinho”, segundo Deusdedite Fernandes Pimente, a quem entrevistei, juntamente com Franklin Jorge e Kydelmir Dantas, em Março de 2009, na sua Caraúbas natal. Conta-nos Franklin em seu “Blog”: “CARAÚBAS – Passei a tarde de sábado em Caraúbas, para onde fui a convite de Honório de Medeiros e Kydelmir Dantas, que iam com a missão de entrevistar Deusdedite Fernandes Pimenta. Ele nos recebeu em sua casa em animada “sessão nostalgia”, quando recordou que estivera nos braços do famoso Massilon Leite, incentivador de Lampião no ataque a Mossoró, fato ocorrido em 1927. Em voz clara e cheia de energia, evocou ainda outras figuras populares de Caraúbas, entre as quais a não menos famosa de Quincas Saldanha que há mais de cinqüenta anos aterrorizou uma vasta região, cuja casa forte, um digno exemplar da arquitetura rural sertaneja, centro político da sua propriedade rural retalhada por seus herdeiros, ainda continua de pé, incorporada já ao perímetro urbano do município. Homem corpulento e cordial, de 83 anos, Deusdedite tinha apenas alguns meses de vida quando a fazenda Timbaúbas, do seu avô Hipólito Fernandes, foi invadida por Massilon que se fazia acompanhar por oito ou dez cabras armados, onde pernoitou e trocou uma sela nova pela velha que trazia. Na saída, vendo-o nos braços da babá, tomou-o nos próprios braços e depois de alguns minutos o devolveu à negra que, assustada, tremia.”
 
Vamos encontrar o rastro de Massilon em São Miguel, Rio Grande do Norte, em 1926, conforme nos conta Zenaide Almeida Costa: “Eram quatro horas da tarde do dia 2 de fevereiro, quando João Grosso chegou correndo, esbaforido. Vinha de cima da serra, na estrada da vila, de onde avistara o mar de gente que se aproximava.”
 
“Na vila os Revoltosos abriram algumas portas de casas comerciais, tirando delas apenas os mantimentos necessários à sua alimentação naquele dia. Saíram à tarde, deixando somente o medo e alguns cavalos estropriados, trocados por cavalos sadios que, apesar de escondidos nas matas dos sítios, com os focinhos amarrados e de cabaça para cima, foram encontrados e surrupiados. Baixaram as águas, mas como sói acontecer, a epidemia chegou no dia seguinte muito cedo e sem aviso! Um marginal, alcunhado de ‘Sargento Preto’, embriagado, desgarrado da Coluna e em companhia de indivíduos da mesma estirpe, arrombou casas comerciais, distribuindo mercadorias com pessoas que estavam regressando à vila, despejando gêneros, tecidos, miudezas e bebidas no meio da rua. Saiu de porta em porta chamando quem ainda não tinha se apresentado (por timidez ou honestidade) para receber seus ‘donativos’. Abriu o cartório e em frente ao prédio, fez uma pilha de todos os livros e documentos, despejou querosene por cima, ateou fogo. Desapareceu depois do saque. Dois dias após chegou outro grupo vestido de mescla azul, com bonés do mesmo pano, dizendo-se ‘patriotas’. novo saque em todas as casas comerciais e de residência. tomaram armas, munições, animais, o que sobrou de víveres, provocaram brigas nas ruas. Era o grupo de Massilon, semelhante ao de Lampião, que imperava naquelas quebradas de serra e nos sertões, armado, fardado, e segundo eles próprios afirmavam, autorizados pelo Padre Cícero Romão Batista, do Juazeiro, a combater a coluna prestes. saíram deixando a desolação, o pânico, tudo depredado, arrasado!”
 
O que uniu Massilon, assassino confesso dos Dutra em Brejo do Cruz; contratado para matar o Coronel Francisco Pinto, de Apodi, Rn; lugar-tenente de Lampião na invasão de Mossoró, quando tentou entrar na casa do Coronel Rodolpho Fernandes pelos fundos; o Coronel Isaías Arruda, financiador da invasão a Mossoró e os Coronéis Quincas e Benedito Saldanha? Que foi Júlio Porto e qual sua participação nesses fatos históricos?

Estamos em 1927. Rodolpho Fernandes é o Prefeito de Mossoró, segunda maior cidade do Rio Grande do Norte. Sua ascensão ao poder revela o predomínio político que sua família, descendente de um português casado com uma filha do fundador de Martins, Francisco Martins Roriz, adquirira ao longo do tempo, e que se baseava, fundamentalmente, na exploração industrial da cultura do algodão.
 
Aqueles eram novos tempos. O Sertão, através de José Augusto Bezerra de Medeiros granjeara, para si, o poder que os Maranhão, ricos usineiros do açúcar, entregaram lentamente aos coronéis proprietários de terra onde o algodão brotava e enriquecia. Mas esse mesmo poder, calcado na terra, cedia, agora, espaço a uma burguesia que se firmava por intermédio da industrialização e do comércio. Os Fernandes estavam à frente desse processo de mudança e iriam viver seu apogeu logo mais, após a vitoriosa campanha do Partido Popular contra Mário Câmara, com a eleição de Rafael Fernandes para dirigir os destinos do Rio Grande do Norte.
 
Enquanto não se consolidava de vez o poder nas mãos dos Fernandes, na capital seguidores de José Augusto olhavam com preocupação esse avanço político em Mossoró, líder inconteste do Oeste Potiguar, sob o comando de Rodolpho, e no Alto Oeste, cuja cidade principal, Pau dos Ferros, era dominada pelo Coronel Adolpho Fernandes, seu primo. De Mossoró para dentro, até a fronteira com a Paraíba, portanto de Martins a Luis Gomes, os Fernandes dominavam. Em Apodi, embora o Coronel Chico Pinto não fosse Fernandes, era correligionário e amigo pessoal do Prefeito de Mossoró.
 
A oposição não descansava, era aguerrida e chegava até os salões do Palácio do Governo, onde auxiliares diretos de José Augusto o intrigavam junto a Rodolpho Fernandes. Em carta dirigida ao escritor Nertan Macedo, Paulo Fernandes, filho de Rodolpho, chega a ser enfático em relação a essa intriga entre os dois líderes políticos: “O Governador do Rio Grande do Norte, Doutor José Augusto Bezerra de Medeiros e o seu chefe de polícia, Desembargador Manoel Benício de Melo, estavam à época, em franco dissídio com o prefeito de Mossoró (meu pai); O Sr. Mirabeau Melo, chefe da repartição do telégrafo em Mosssoró era irmão do chefe de polícia, e atuava como informante das coisas locais e porta voz do governo era um medíocre intrigante, inadequado para a missão que o destino lhe reservou pois tanto o governador do estado e seu chefe de polícia como o prefeito de Mossoró eram homens de bem e do mesmo partido político de modo só se compreende o dissídio entre eles em torno do problema de interesse público em virtude da ação maléfica de mexeriqueiros ” (...).
 
Tal oposição chegou ao cúmulo de tentar levar Rodolpho, um homem sério, respeitado, ao ridículo, como nos lembra Paulo Fernandes na mesma carta: “As advertências à população e providências tomadas por meu pai eram exploradas pela oposição até com o ridículo. Chamavam-no, por exemplo, de velho medroso, por se preocupar com um possível ataque de Lampião à cidade” (...).
 
A par dessa situação política tensa, na qual vivia o Coronel Rodolpho Fernandes, o futuro parecia promissor: sua liderança em Mossoró era inconteste, a cidade crescia a olhos vistos sob sua administração, dois dos seus três filhos homens faziam medicina fora e voltariam, brevemente, para dar continuidade a seu legado, e sua família era, naquele período, uma das mais ricas do Estado.
 
Mesmo assim o Coronel Rodolpho não descuidava. Não saía de sua lembrança a forma violenta através da qual seus parentes de Pau dos Ferros tomaram o poder naquela cidade. As histórias acerca do cangaço corriam de boca-em-boca pelas praças e ruas da cidade. Notícias vindas do Acre davam conta das aventuras de Childerico Fernandes, o Guerreiro do Yaco, irmão do Coronel Adolpho Fernandes, todas repletas de violência. O Coronel Chico Pinto lhe punha a par dos desmandos de seus adversários que iriam redundar na invasão da cidade por Massilon e em seu assassinato anos depois. As estripulias de Massilon em Brejo do Cruz, agindo a mando de pessoas que tinham interesses políticos em Apodi; as histórias oriundas do Cariri cearense, de deposição de Coronéis por outros Coronéis através das armas, tudo isso lhe trazia profunda preocupação.
 
Assim, pareceu-lhe particularmente preocupante algumas informações que pessoas a si ligadas por laços comerciais e afetivos lhe fizeram chegar aos ouvidos por aqueles dias do começo do ano de 1927.

Continua...




















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