quinta-feira, 5 de junho de 2025

8. O PODER POLÍTICO NA PRODUÇÃO, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA NORMA JURÍDICA

 



“Pois pela Arte é criado esse grande LEVIATÃ chamado NAÇÃO ou ESTADO (em latim CIVITAS) que é apenas um Homem Artificial” ... (Hobbes, “Leviatã”).

                   Ora, asseverado que parte considerável da doutrina considera que o Poder Político instaura o Direito, e por não interessar especificamente ao objetivo deste trabalho a questão da legitimidade quer daquele, quer deste, passa-se à questão crucial: qual a natureza da presença do Poder Político na produção, interpretação e aplicação da norma jurídica?

                  Antes de prosseguirmos, tentando responder a essa indagação, convém criticar Miaille (1979:125) e sua observação quanto à teoria do caráter instrumental do Estado, seja marxista, seja não-marxista.

Com efeito, Miaille convida-nos a romper com a concepção de que a elite usa os aparelhos do Estado, qual seja os segmentos da Administração (Polícia, Exército, Justiça, como exemplo) para, enquanto detentores do modo de produção capitalista e, por conseguinte, dos mecanismos políticos, conter ou manipular as contradições sociais.

E, também, convida-nos a repudiar a concepção conservadora de que esse mesmo Estado é instrumento de progresso, paz, e coesão social.

Assim, segundo ele, que sucumba essa concepção “tecnicista” do Direito e do Estado, essa teoria acerca do caráter instrumental do Estado, veiculada tanto pelo marxismo ingênuo quanto pelo ideário burguês-liberal.

 Para Miaille, o Estado não é o instrumento: ele é o “topos” onde ocorrem lutas políticas, onde se busca obter, destruir ou manter o Poder Político.

                   Conviria convidar Miaille a um exercício reducionista: não há incongruência em perceber o caráter instrumental das ideias – e o conceito de Estado é instrumento, não o Estado em si, vez que este é uma ficção, uma apostasia – e aceitar a tese da prática de sua instrumentalização.

Esta, aliás, é a mais fecunda das teorias sobreviventes à refutação que a crítica pode proporcionar, qual seja, a de que as teorias são instrumentos criados pelo homem na sua luta pela sobrevivência: o darwinismo, por exemplo, explica o surgimento da linguagem a partir de uma necessidade adaptativa da espécie.[1]

Como omitir, portanto, que a noção de Estado é um instrumento, uma invenção, um habitante do “terceiro mundo” ou “Mundo 3”? 

                   A respeito de teorias sobre o surgimento do Estado enquanto resultado de atos de Poder Político, o que ressalta seu caráter instrumental, Popper (1974:250)  lembra Platão e sua concepção de que o “poder centralizado é organizado e se origina através de uma conquista (a subjugação de uma população sedentária agrícola por nômades ou caçadores)”.

Tese que, segundo Popper, foi retomada por David Hume em Essays: Moral, Political and Literary, Renan, Nietsche, em Genealogia da Moral”,[2] F. Oppenheimer e Karl Kautsky.

Mas é esse caráter de instrumentalização de idéias, de coisas, de estratagemas, de palavras, de ações, por parte daqueles que detêm o Poder Político, exposto por alguns teóricos, que se quer ressaltar.

Não para condenar ou aprovar, trata-se de constatar o fenômeno, chamar a atenção para ele, na mesma medida em que também se observa qual o papel fundamental prestado por essa teorias ao Poder Político, principalmente em decorrência de sua fragilidade teórica.

                   É o que faz Foucault (1980: 75ss), em “A Verdade e as Formas Jurídicas”.

 Nesta obra, ele salienta o caráter instrumental do Estado ao salientar, de forma um tanto quanto oblíqua, seu surgimento, aliás, seu ressurgimento na Alta Idade Média.

Foucault nos mostra que a acumulação de riquezas, o poder das armas e a constituição do poder judicial em mãos de poucos é um processo que se fortaleceu em decorrência do surgimento de alguns fenômenos, tais como a) os indivíduos passam a submeter-se a um poder externo a eles em seus litígios; b) surge a figura do procurador do rei permitindo que o poder político se apodere dos procedimentos judiciais; c) aparece a noção de infração enquanto ofensa ao Estado.

Por último, segundo suas próprias palavras, “Há por último, uma descoberta, uma invenção tão diabólica como a do procurador e a infração: o Estado, ou melhor, o soberano (já que não se pode falar de Estado nesta época)”.

                   Mas também é o que aponta Elias (2001:267), em “A Sociedade de Corte”. Nesta obra, em seu capítulo final, no qual analisa a sociogênese da Revolução, observa que somente é possível entender as causas da Revolução Francesa se prestarmos atenção aos deslocamentos do equilíbrio do poder que ocorreram na sociedade.

E salienta que, em determinado momento, “essa fase de transformação latente, subterrânea e totalmente gradual na distribuição social das chances de poder (...) dá lugar a uma outra fase em que a transformação das relações sociais se acelera e a luta pelo poder se intensifica”.

Como omitir, então, a instrumentalização de ideias por cada segmento envolvido no processo revolucionário, em sua luta pela hegemonia e a consequência que tal postura pode ter do ponto de vista do Direito?

                   Portanto, não é estranha ao pensamento filosófico a noção de que aqueles que detêm o Poder Político, em uma determinada circunstância histórica, concretizam esse Poder produzindo, interpretando e aplicando a norma jurídica, ou seja, instrumentalizando o Direito.

Assim a interpretação da norma jurídica é, consciente ou inconscientemente, uma ação política, seja esta legítima ou não.

                   Nesse sentido, o discurso do Poder Político cumpre uma função ideológica, e este é o âmago da questão: o idealismo ingênuo ou o realismo exacerbado (o positivismo jurídico) podem servir como aparato teórico de ocultamento do verdadeiro papel do Direito no processo social.

Miaille identifica esse epifenômeno ao apontar a função de “ocultação”, bem como a de “arma de combate” do direito natural (hoje Teoria Crítica do Direito, ou o que quer que seja...).

                   Com efeito, Miaille (1979:263ss) mostra que o direito racional do século XVIII, que se apresenta como ideal, eterno e universal oculta seu real desígnio no século XIX: “permitir a passagem a um outro tipo de economia e de relações políticas e sociais, sem dizer evidentemente a favor de quem se realiza esta passagem”.

E cita Engels: “Sabemos hoje que esse reino da razão não era mais que o reino idealizado da burguesia; que a justiça eterna encontrou sua realização na justiça burguesa; que a igualdade se reduzia à igualdade burguesa face à lei; que se proclamou como um dos direitos essenciais do homem... a propriedade burguesa; e que o Estado racional, o contrato social de Rousseau, não veio ao mundo e não pode vir ao mundo a não ser sob a forma de uma república democrática burguesa”.

Finaliza Miaille: “O direito racional da Revolução Francesa é o direito do homem egoísta, da sociedade burguesa fechada sobre os seus próprios interesses”.

                   Quanto ao discurso ideológico engendrado pelo Poder Político enquanto arma de combate, Miaille nos convida a “tirar uma conclusão sobre este ponto, lembrando a utilidade [grifo de Miaille] não negligenciável num combate político das noções herdadas do direito natural. Não <apesar de>, mas porque esta teoria é de natureza ideológica. É preciso saber reconhecer-lhe sua utilidade prática. Outra coisa é considerá-la como uma teoria científica, quer dizer, explicativa da realidade”.

                   Assim é que o Poder Político engendra os meios através dos quais justifica seu real propósito, qual seja o de manter-se e, quiçá, ampliar-se. Para tanto, usa ideologicamente, instrumentalmente, os aparatos teóricos à sua disposição. E concretiza (também) seu propósito de existência produzindo, interpretando e aplicando a norma jurídica.

 Não sendo um teorema, mas, sim, uma conjectura, mas tão possível quanto a crença de que o Direito é um dos meios através do qual o homem se adapta ao seu ambiente social, seria interessante considerar esse fato como um mecanismo adaptativo de sobrevivência.  



[1] DENNET, Daniel C.; “A Perigosa Ideia de Darwin”; Editora Rocco; Rio de Janeiro; 1ª edição; 1998; p. 151. Dennet especula, nessa obra acerca da possibilidade de, em tendo Darwin razão, e seu “espaço de projeto de seleção natural” correto, “todas as realizações da cultura humana – linguagem, arte, religião, ética, a própria ciência”, (serem) “artefatos (ou artefatos de artefatos...)”. É evidente o caráter metafísico de partes da teoria da evolução, mas, convém lembrar que, não menos ousada é a teoria que pretende apresentar o Direito como sistema autopoiético. Popper, por sua vez, depurando esses aspectos metafísicos aludidos, recupera Samuel Buttler e denomina instrumentos teóricos como a noção de Estado de “aparelhos exossomáticos”.

[2] “Alguma horda de bestas louras, uma raça senhorial conquistadora, com uma organização guerreira... lança suas patas aterradoras, pesadamente sobre uma população que lhe é, talvez, imensamente superior, em número...”

* Texto constante do "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon.

terça-feira, 3 de junho de 2025

7. A RELAÇÃO ENTRE PODER POLÍTICO E DIREITO

 

7. A RELAÇÃO ENTRE PODER POLÍTICO E DIREITO.

 

“Viu a sociedade tal qual é: as leis e a moral impotentes para com os ricos e viu na fortuna a última ratio mundi”.

Honoré de Balzac acerca de Rastignac,  personagem  da “Comédia Humana”.

 

Até aqui foi firmada posição no sentido de acatarmos o primado do Realismo; da mesma forma, consideramos ser o Direito um “objeto cultural” sobre o qual a ciência se debruça objetivamente, para eliminarmos a possibilidade de uma análise do subuniverso jurídico com fulcro em crenças subjetivas, juízos de valor, “argumentos de autoridade” ou de uma errônea aplicação da lógica indutiva.

 Vimos, ainda, que tal primado se ampara, embora de forma oblíqua, também na teoria kelseniana; e, por fim, afirmamos que, entre outras de suas características, está sua extrínseca e diferenciada relação com o Poder Político, pois somente o Direito pressupõe a possibilidade do exercício da violência por determinação de alguém (ou alguns), para a consecução de uma determinada finalidade, sob a aparência de legitimidade.

Essa extrínseca relação do Poder Político com o Direito espanta Bobbio (2000:238) naquilo que existe de inexplorado.

Com efeito, para o Autor italiano, os politicólogos e os juristas se ignoram, quando se trata das relações entre o Poder Político e o Direito.

Bobbio, inclusive, mostra que essa omissão é ainda mais presente no pensamento jurídico apontando apenas Niklas Luhmann e sua obra “Potere e complessità sociale”, bem como M. Reale, “Law and Power and their Correlation” como exceções à regra.

                   Para Bobbio, a ligação entre um e outro é estreitíssima, tanto se por Direito (OAC:238), entende-se o Direito enquanto algo objetivo, ou seja “um conjunto de normas vinculantes que se fazem valer, recorrendo-se, em última instância, à coação”, quanto “se por direito se entende o direito em sentido subjetivo”.

                   Para os propósitos deste trabalho, descartamos a possibilidade de discutirmos a natureza do Poder/Direito Subjetivo, até mesmo para criticá-la.

Ressaltamos, apenas, que nesse sentido, Poder significa capacidade, direito de postular, não Poder Político. Mas em relação ao Poder Político/Direito de forma objetiva, convém logo observarmos que, para alguns estudiosos, aquele intervém neste desde o início, ou seja, a partir da confecção da norma jurídica até sua aplicação. Portanto, também na interpretação jurídica.

                   Essa constatação de Bobbio é corroborada por Barroso (1998:246), ao analisar a denominada “Teoria Crítica do Direito”, que tem como expoentes, entre outros, Michel Miaille e Luís Alberto Warat.

Ele afirma que “A constatação inevitável, todavia, é a de que até hoje não se edificou uma teoria alternativa e substitutiva da dogmática convencional. O que significa que ela ainda não concluiu seu ciclo histórico”.

Em relação à “Teoria Crítica”, Barroso entende que ela faz uma crítica da teoria, mas, ao mesmo tempo, preconiza uma atuação concreta do operador jurídico, à vista do princípio de que o papel do conhecimento não seria somente interpretar o mundo, mas transformá-lo.

Ou seja, ele teria um papel político específico.

De uma forma ou de outra, oblíqua ou diretamente, o pensamento de Barroso demonstra o viés do Poder Político perpassando o Direito.


7.1 A NEGAÇÃO DA POSSIBILIDADE DO PODER A PARTIR DO DIREITO

 

                   A relação entre Direito e Poder, ainda segundo Bobbio, tanto pode ser olhada pelo ângulo do Poder como do Direito.

                   Mas o que nos diz essa relação? Bobbio nos informa que se olhado o Direito pelo ângulo do Poder, “a ordem jurídica existe apenas se existe em seu fundamento um poder capaz de mantê-la viva –, antes existe o poder e depois o direito (OAC:239); mas, se olhado pelo ângulo do Direito, como o fez Kelsen, antes existe o Direito, depois o Poder”.

                   Não é possível concordar com Bobbio, quanto a essa última assertiva, ou seja, que olhada a relação entre um e outro a partir do Direito, este, conforme Kelsen, existiria antes do Poder Político.

Em primeiro lugar, porque quando o Autor tcheco afirma que: “Esta norma fundamental autoriza a pessoa, ou pessoas que historicamente estabeleceram a primeira Constituição para a estatuição de normas que representam historicamente a primeira Constituição (...)” (Kelsen, 1986:327), o jusfilósofo italiano parece esquecer qual a natureza, apontada pelo autor de “Teoria Geral das Normas”, da norma fundamental: “(...) pois não é norma estabelecida, mas uma norma pressuposta. Não é positiva, estabelecida por um real ato de vontade, mas sim pressuposta no pensamento jurídico, quer dizer – como mostrado no que precedeu – uma norma fictícia” (OAC:328).

 Mas se a norma fundamental foi aceita em termos de conteúdo, ou seja, que ela seria um fato histórico, decorrente do Poder Constituinte Originário, então, de qualquer forma foi o Poder Político que a instaurou, portanto precedendo-a.

                   Poder-se-ia aceitar a afirmação de Bobbio, caso o Poder Político, para Kelsen, e Estado fossem a mesma coisa. Mas não o é. Para o filósofo vienense, o Estado se reduz ao Direito e essa é uma inferência possível a partir do seu monismo metodológico, como afirma em “Teoria Geral do Direito e do Estado”: “A identificação de Estado e ordem jurídica é óbvia a partir do fato de que mesmo os sociólogos caracterizam o Estado como uma sociedade ‘politicamente’ organizada”.

 Ainda: “Estado é uma organização política por ser uma ordem que regula o uso da força, porque ela monopoliza o uso da força”. (Kelsen, 1995:191)

                   E, ao contrário, em relação ao Poder Político, do qual fala obliquamente quando analisa o Estado enquanto dominação, observa que “A tentativa melhor sucedida de uma teoria sociológica do Estado talvez seja a interpretação da realidade social em termos de ‘dominação’”.(OAC: 188)

Continua:

 “Essa teoria tem em mente a relação constituída pelo fato de um indivíduo expressar a sua vontade de que outro indivíduo se conduza de certo modo e essa expressão de sua vontade motivar o outro indivíduo a se conduzir de modo correspondente. Na vida social concreta, verifica-se uma infinidade de tais relações de motivação”. (OAC:188)

 

 E, como consequência de tais premissas, entra na discussão acerca da legitimidade da ordem ou comando dado por alguém (alguns) a outro (outros) que, no seu entender, somente é possível a partir de um conceito de validade da ordem jurídica.

Desnecessário falar acerca do caráter eufemístico da expressão “motivar”. Motivar alguém a se conduzir significa, neste contexto, determinar a ele que se conduza dessa ou daquela forma; significa impor uma conduta, obrigar, nada além.

                   Ainda por cima, convém expor a fragilidade da concepção de que o Direito age como barreira e/ou contenção do Poder Político na medida em que se constituiria, em essência, para além do seu caráter formal, de normas justas, validadas por princípios éticos.

 Em síntese: o Direito daria legitimidade ao Poder Político, quando calcado em normas justas.

Aqui podemos constatar um vício de origem que tem, como fulcro, o desconhecimento daquilo que Popper (1974:70...) chamou de dualismo crítico (ou convencionalismo crítico), e que seria uma etapa superior no entendimento acerca da distinção entre lei natural e lei normativa.

                   Com efeito, para largo segmento da comunidade científica, uma lei natural “descreve um fato regular, estrito e invariável, que ou efetivamente se realiza na natureza (e nesse caso a lei é uma afirmativa verdadeira), ou não se realiza (e nesse caso é falsa)”; uma lei normativa, ao contrário, pode ser modificada pelos homens, reforçada, mas nunca dizer o verdadeiro e o falso, pois não descreve um fato, impõe uma conduta.

                   Essa simples distinção, oriunda do gênio grego (Popper fala em Píndaro, poeta tebano, por citação de Platão) deveria ser um critério demarcatório, por si só, entre jusnaturalismo e positivismo para quem, por exemplo, advoga a tese segundo a qual a norma jurídica tem, como fonte, a natureza das coisas, expressão ambígua que pode significar “sociedade”, “relações sociais”, “meio social”, ou a própria “realidade natural”.

                   Crer na possibilidade de a “natureza das coisas” nos impor decisões é acreditar que dela podemos extrair normas jurídicas quando, na realidade, nós é que nela introduzimos nosso discurso de Poder.

 Paradigma de tal crença é, por exemplo, a definição de Direito que Montesquieu expressa em seu Espírito das Leis: “As leis são as relações necessárias que decorrem da natureza das coisas”.

“Natureza das coisas” que Bobbio (1995:176) entende estreitamente aparentada com “natureza do homem”, ambas pretensas fontes do Direito.

Aliás, essa crença constitui-se o que se denomina, em lógica, de “falácia naturalista”, e é a “convicção ilusória de poder extrair  da constatação de uma certa realidade (o que é um juízo de fato) uma regra de conduta (que implica um juízo de valor)”. (OAC:177) 

                   Persistir nesse caminho põe Bobbio em apuros teóricos por ele mesmo apontados:

 “À objeção segundo a qual a legitimação que transforma um poder de fato em poder de direito é um evento não originário mas derivado, e que na origem, o poder que institui um grupo político é sempre um poder de fato, como mostram os casos extremos do usurpador no interior de um sistema autocrático, da ditadura revolucionária na passagem de um grupo autocrático para um grupo democrático, da ditadura contra-revolucionária na passagem de um grupo democrático para um grupo autocrático, pode-se responder que tanto as usurpações quanto as ditaduras são eventos temporários, e dão vida a um sistema de poder duradouro apenas se o seu respectivo poder for institucionalizado, definitivamente regulado também ele pelo direito”. (Bobbio, 2000:236) 

                   Ora, Bobbio parece esquecer que, em ciência, um fato que negue a hipótese refuta a teoria.

 Por isso, ele constrói essa “hipótese ad-hoc”, especificamente para salvar uma teoria em apuros: a de que tais eventos, como os apontados acima, não merecem ser considerados por serem temporários. Seria o mesmo que aceitar, por exemplo, que o descumprimento de expectativas relacionadas a uma lei física não a refutasse. Tal comportamento não é científico.

                   Observe-se, em contraposição, o rigor teórico do formalismo kelseniano: sua “Teoria Pura do Direito” é uma conjectura científica, pois faz asserções, proposições, descrições, juízos de fato acerca do seu objeto específico, o Direito, que serão verificados, falsificados, testados, enfim, criticados. E propõe, ao final, uma apurada técnica interpretativa.

Entretanto, não pretende que as sentenças judiciais, que são normas, sejam verdadeiras ou falsas, justas ou injustas, não se trata disso: elas são opções de política institucional.

Ou seja, em síntese, o homem diz a moral, e, não, o contrário. Também, neste sentido, a teoria de Perelman que, mesmo partindo de pressupostos distintos, expõe, como se pretende demonstrar, uma das formas (a retórica) através da qual o Direito se instaura enquanto instância do Poder Político, corroborando o entendimento de que a interpretação pode ser uma sua estratégia: as premissas das quais se parte para desenvolver o discurso jurídico são verossímeis, mas, não necessariamente, verdadeiras.

Por outro lado, não parece possível a existência do Direito sem o Estado e, nesse sentido, concordam marxistas e Kelsen.

 Com efeito, embora por razões distintas, tanto os marxistas quanto Kelsen não aceitam a ideia de que o Direito pudesse existir, por exemplo, quando os homens vagavam pela terra em bandos e vivendo de caça, coleta e alguma agricultura no assim denominado, por Engels (1997:24), período “bárbaro”.

A ideia de que o Direito pudesse existir antes do Estado repousa em trabalhos de etnólogos e sociólogos defendendo que os costumes anteriores ao surgimento do Estado poderiam ser considerados como tendo natureza jurídica, por contemplarem meios de constrangimento para assegurar sua observância.[1]

Entretanto, tais estudos que, mais recentemente, permitiram, utilizando-se o mesmo princípio, por analogia, encontrar normas jurídicas produzidas em favelas,[2] nada mais fazem que confundir aquelas com normas de dominação, ou poder, normas, enfim, pois preceito e sanção, mas nunca jurídicas por lhes faltarem, por um lado, um critério de validade que somente a existência do Estado pode assegurar, como lembra Kelsen (1995:188) e, pelo outro, aquela condição real das relações de produção, a divisão social do trabalho, a acumulação de riquezas, o surgimento, enfim, da sociedade de classes, que ensejaria, somente então, o aparecimento da norma jurídica estatal.



[1] Ver GILISSEN, John; “Introdução Histórica ao Direito”; Fundação Calouste Gulbenkian; Lisboa, Portugal; 1ª edição; 1988; p. 36.

[2] Ver “Notas sobre a História Jurídico-Social de Pasárgada”, de SANTOS, Boaventura de Sousa (SOUTO e FALCÃO; Cláudio e Joaquim; “Sociologia e Direito”; Editora Pioneira; São Paulo; 2. Edição; 1999; p. 87).


* Texto constante do "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon.


segunda-feira, 2 de junho de 2025

6. CARACTERÍSTICAS DO DIREITO: A NORMA JURÍDICA E SUA RELAÇÃO COM O PODER POLÍTICO

  



“Hipóteses são redes; quem as lança, colherá” (Pólen; Novalis).


Faz parte da psicologia do conhecimento o processo de distinguir para conhecer.[1]

Conhecemos por que distinguimos e nossas conjecturas sobrevivem às críticas, nos moldes descritos na teoria da seleção do mais apto, de Darwin.  

Assim Popper distinguiu entre objetos do primeiro, segundo e terceiro mundos: aquele mundo material (que existe independente do homem); o mental ou disposicional (estados mentais, propensões para agir, etc.); e o das teorias e suas relações lógicas, dos argumentos em si mesmos, etc.

Podemos distinguir, dentre esses objetos do terceiro mundo, a Música, o Direito, a Arte, a Linguagem – todos eles objetos culturais que diferem entre si em razão de suas peculiaridades.

Embora a existência desses objetos culturais decorra da presença do homem na face da terra – o que lhes imputa a identidade de fenômenos sociais, como, em relação ao Direito, já o intuíra o gênio romano - “ubi societas, ibi jus” -, este tem características, peculiaridades que lhe são próprias e que o tornam distinto da Música ou Linguagem.


6.1 CARACTERÍSTICA INTRÍNSECA ESPECÍFICA DO DIREITO: A NORMA JURÍDICA

É característica intrínseca do Direito, constitui-se algo estrutural seu, por exemplo, a normatividade, descrita por Kelsen ( 1995: 11-12), como lembra Bergel (2001:37-38), ao assegurar que o pensamento que se ordena em torno das suas finalidades não é suficiente para defini-lo, lembrando que a “a definição da norma jurídica, assinala sua especificidade em comparação às outras normas sociais”.

Não qualquer norma, pois em assim sendo, não haveria como distingui-lo da Moral. Ou seja, o que há de específico no Direito que o distingue de outros fenômenos sociais é a norma jurídica, oriunda do Estado, enquanto uma determinação de conduta para cujo descumprimento se prevê uma sanção.

É impossível a existência do Direito sem a norma jurídica, pois, então, ele se descaracterizaria enquanto tal.

Miguel Reale, em sua ontologia jurídica, fala-nos em Direito enquanto “norma”, “fato” e “valor”. Entretanto, como bem assinala Maia,(2000:38), “fato” e “valor”, que são elementos comuns à Moral ou Sociologia, por exemplo, somente têm relevância no mundo jurídico se informados pela norma jurídica, “subsumidos” a ela.

Esta é a lição de Kelsen,(1986:1) sempre esquecida. Assim é que Kelsen lembra a estrutura da norma jurídica:

“uma ordem, e principalmente uma ordem que se qualifica como norma, pressupõe dois indivíduos: um que ordena, que dá a ordem, fixa a norma, e um outro, ao qual a ordem é dirigida, ao qual alguma coisa é imposta, um indivíduo cuja conduta a norma prescreve, estabelece como devida”. (OAC:37)

A isso acresça-se, segundo sua lição, a sanção pelo seu descumprimento e sua origem estatal.

Se a norma jurídica e sua especificidade permitem um estudo próprio - uma ciência jurídica da qual nos fala Kelsen, “pura”, pois constituída de asserções ou proposições lógicas acerca do seu peculiar objeto, e, não, de autos-de-fé,[2] ou crenças subjetivas, o mesmo se pode dizer quanto às causas e conseqüências de sua existência enquanto ordenamento no ambiente social.

A norma jurídica é objeto da ciência jurídica: o ordenamento, da ciência social. Teríamos, então, utilizando a imagem que os efeitos de uma pedra lançada na superfície de um lago plácido origina, um círculo concêntrico específico contido por outro maior, uma ciência contendo outra.

Talvez nada explique melhor esse emaranhado do que uma metáfora, qual seja a do jogo de xadrez. Convém observar, entretanto, que aqui o seu sentido difere daquele empregado por Alf Ross (2000:34ss) ao utilizar a mesma metáfora. Em sua obra, esta é utilizada para propor um conceito de “direito vigente”. Aqui, ela se presta a demonstrar os elos entre a norma jurídica enquanto objeto e o ordenamento, na qualidade de fato social, enquanto preocupação da Ciência.

Suponhamos dois circunstantes que se disponham a jogar uma partida de xadrez. Para iniciá-la, deverão estar previamente concordes quanto às regras a serem seguidas. Sabem que descumpri-las é fatal: haverá sanção (no jogo de damas, cartas, ou outro qualquer, as regras surgirão, também, através de acordo preliminar, de “pacto social”).

Uma vez iniciada a partida, ela desenvolver-se-á em dois planos: no primeiro, de natureza formal, sob a égide de regras que disciplinam o jogo, e que são oriundas de fatores a ele externos, tais como as decisões da Federação Internacional de Xadrez (FIDE), entidade que congrega e ordena a atividade enxadrística no âmbito internacional, ou mesmo o regulamento do torneio – previamente acertado - do qual estão participando os contendores; no segundo, serão observadas, pelos contendores, regras (técnicas) imanentes à própria disputa, ao jogo-em-si, descobertas ao longo do tempo pelos estudiosos para que se obtenha a vitória almejada, mas somente existentes e atuantes nos limites estabelecidos pelas regras de natureza formal: noções estratégicas e táticas.

O observador cognoscente pode analisar esse objeto cognoscível (o jogo, a partida sendo desenvolvida) distintamente: na primeira, enquanto não-participante, ao se perguntar acerca da história dessa disputa, as causas e conseqüências da sua existência, o seu papel social, a psicologia dos participantes, sua finalidade última ou primeira (no plano metafísico) e, nesse caso, estará trabalhando externamente ao fenômeno enquanto historiador, psicólogo, sociólogo ou filósofo.

A segunda maneira, enquanto participante, seja no Xadrez, seja no Direito, impõe o raciocínio dedutivo a esse observador cognoscente às voltas com aquelas regras impostas de fora para dentro pela FIDE (ou acordo prévio) ou ordenamento jurídico positivo (pacto social, Constituição): as premissas do raciocínio são as normas existentes. Assim o é no Direito e no Xadrez, do qual este pode ser uma metáfora do ponto-de-vista formal daquele.

6.2 CARACTERÍSTICA EXTRÍNSECA ESPECÍFICA DO DIREITO: O PODER

E, se para Kelsen, bem como para outros pensadores, aquilo que caracteriza especificamente o Direito, em uma perspectiva intrínseca a ele, é a norma jurídica, em uma perspectiva extrínseca essa característica é sua relação com o Poder Político do qual ele, o Direito, por sua vez, parece ser uma característica intrínseca.

Ou seja, a norma jurídica está para o Direito, da mesma forma que o Direito está para a Sociologia Política (Ciência Política). Talvez, em um exercício audacioso de conjectura, possa-se ousar dizendo que a norma jurídica está para o Direito como o elétron está para o átomo; e que o Direito está para o Poder Político, como o átomo para a matéria.

Poder Político esse que, lembra Bobbio (2000:221), é “o sumo poder ou poder soberano, cuja posse distingue, em toda sociedade organizada, a classe dominante”.

Essa relação entre Poder Político e Direito permeia, como um viés oculto, mas presente enquanto “leitura extrínseca”, toda a “Teoria Pura do Direito”: “O dever-ser – a norma – é o sentido de um querer, de um ato de vontade, e – se a norma constitui uma prescrição, uma mandamento – é o sentido de um ato dirigido à conduta de outrem, de um ato, cujo sentido é que um outro (ou outros), deve (ou devem) conduzir-se de determinado modo". (OAC:3)

Outra não é a posição de Bobbio (1997:65...). Este autor, ao discorrer acerca da estrutura da norma fundamental observa, acerca das críticas ao seu conteúdo, que o poder originário (poder constituinte) que a instaura é “o conjunto das força políticas que num determinado momento histórico tomaram o domínio e instauraram um novo ordenamento jurídico”.

Repudia Bobbio a teoria que pretende confundir Poder Político com Força para criticar o Poder Constituinte originário e sua norma fundamental. Lembra ele que Poder nem sempre se confunde com Força, embora dele não prescinda, ao comentar que o Poder Constituinte Originário pode instaurar a norma fundamental de forma consensual. Mas pode faze-lo apenas, para discordarmos, por deter a possibilidade de utilizar a força. Ou seja, essa possibilidade de utilização esteve implícita:

“Quando a norma fundamental diz que se deve obedecer ao poder originário, não deve absolutamente ser interpretada no sentido de que devemos nos submeter à violência, mas no sentido de que devemos nos submeter àqueles que têm o poder coercitivo. Mas este poder coercitivo pode estar na mão de alguém por consenso geral. Os detentores do poder são aqueles que têm a força necessária para fazer respeitar as normas que deles emanam. Nesse sentido, a força é um instrumento necessário do poder”.(OAC:65...)

Essa característica extrínseca específica, qual seja a relação entre Poder Político e Direito é uma conjectura exposta enquanto asserção, proposição acerca do “Real”, passível de ser submetida à crítica, para ser aceita como ciência, nos moldes propostos por Popper em sua epistemologia sem sujeito cognoscente, critério de demarcação entre ciência e não-ciência, enfim, sua metodologia científica.

A distinção entre o caráter extrínseco e intrínseco do Direito é, com variações sutis, aceita e comentada por Bonavides (1994:92), quando ele analisa o que denomina de concepção tradicional de sistema no Direito: sistema extrínseco e sistema intrínseco:

“Mas nos sistema extrínseco, o teórico constrói, dogmatiza e impõe a lógica ao Direito, ao passo que no sistema intrínseco, ainda o de natureza formal, como o de Kelsen, a lógica, ao contrário, está no próprio Direito, no ordenamento dotado de racionalidade à espera de revelação, racionalidade que já existe e independente dos meios lógicos do sujeito cognoscente, o qual, até mesmo por insuficiência de compreensão, poderá pelo discurso deixar de reproduzí-lo com fidelidade, falseando assim a base intrinsecamente lógica ou dedutível da ordem jurídica”.

Não por outro motivo a Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, pretende ser plenamente científica. Com efeito, nela trata-se o direito como de fato ele o é, não como deveria sê-lo, razão pela qual seu objetivo foi encontrar a estrutura daquilo que, no espaço e no tempo, ou seja, historicamente, caracterizou o fenômeno jurídico. O que seria isso, ou seja, qual essa característica onipresente no fenômeno jurídico?

Kelsen se pergunta assim:

“O que o assim-chamado Direito dos antigos babilônios tem em comum com o – igualmente assim-chamado – Direito que prevalece hoje nos Estados Unidos? O que pode a ordem social de uma tribo negra, sob a liderança de um chefe despótico, ter em comum com a constituição da República suíça? Ainda assim há um elemento comum que justifica essa terminologia, que permite à palavra ‘Direito’ surgir como a expressão de um conceito com um significado social muito importante. Pois a palavra refere-se à técnica social específica de uma ordem coercitiva, que, apesar das enormes diferenças entre o Direito da antiga Babilônia e o dos Estados Unidos de hoje, entre o Direito dos ashantis da África Ocidental e o Direito da Suíça, na Europa, é essencialmente a mesma para todos esses povos que diferem tão amplamente em tempo, lugar e cultura – a técnica social que consiste em ocasionar a conduta social desejada dos homens por meio da ameaça de coerção no caso de conduta contrária”.

Em síntese: o Poder Político.

[1] “Foi assim que Deus procedeu diante do caos primitivo (Gn 1, v. 2). Ele separa, distingue: a luz das trevas, a terra do céu etc” (IDE, Pascal; “A Arte de Pensar”; Martins Fontes; São Paulo; 1ª edição; 1995; p. 165).

[2] Kelsen diz: “A luta não se trava na verdade – como as aparências sugerem – pela posição da Jurisprudência dentro da ciência e pelas conseqüências que daí resultam, mas pela relação entre a ciência jurídica e a política, pela rigorosa separação entre uma e outra, pela renúncia ao enraizado costume de, em nome da ciência do Direito e, portanto, fazendo apelo a uma instância objectiva, advogar postulados políticos que apenas podem ter carácter altamente subjetivo, mesmo que surjam, com a melhor das boas fés, como ideal de uma religião, de uma nação ou de uma classe” (KELSEN, Hans; “Teoria Pura do Direito”; Armênio Amado Editora; Coimbra; 6ª edição; 1984; p. 8).

* Texto constante do "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon.

quinta-feira, 29 de maio de 2025

5. A INSTRUMENTALIZAÇÃO POLÍTICA DO DIREITO

 



* Honório de Medeiros


Não seria impróprio considerar o instrumentalismo aqui aludido algo semelhante ao professado por J. Dewey, “cuja marca característica consiste em admitir que toda teoria é uma ferramenta, um instrumento para a ação e a transformação da experiência (conforme LALANDE, André; “Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia”; Martins Fontes; 3ª edição; 1999; São Paulo; p. 573/574) mas, somente em um certo sentido, vez que limitado por seu ceticismo ontológico. Melhor, talvez, compreender esse instrumentalismo como Popper o faz: “Acho que, seriamente, ninguém negará que as teorias sejam instrumentos. Porém, são também mais do que isso. Digamos que as teorias podem ser instrumentos, mas que nem todas o serão” (POPPER, Sir Karl Raymond; “O Conhecimento e o Problema Corpo-Mente”; Edições 70; Lisboa, Portugal; 1ª edição;1997; p. 30). 

 

A epistemologia sem sujeito cognoscente e o critério de demarcação entre ciência e não-ciência, bem como o método científico, permitem-nos desmontar o aparato das teorias que se fulcram em juízos de valor, em crenças subjetivas e, para além desse desmonte, proporcionam a percepção de que o espírito que norteia o engendramento e a utilização dessas teorias, às vezes, é constituído por nítidas questões de Poder Político. ([2])

Sim, porque teorias podem ser instrumentos e, em podendo ser instrumentos, podem sê-lo do Poder Político, como o demonstra o profundo estudo da obra de Platão feito por Popper (1974:34-35), bem como a análise de alguns fatos históricos do universo jurídico.

Com efeito, embora não seja objeto desta dissertação a análise da obra de Platão feita por Popper, é interessante observar que este autor afirma terem sido a instabilidade política da época na qual aquele vivia e as consequências que esse fato acarretava na situação de sua própria família (Platão tinha sangue real) a base de seu pensamento político.

Por sua vez, essa base se exprimia através de uma deliberação: “deter qualquer mudança política” (OAC:34), que alimentava seu desejo de implantar, em Atenas, o arcaico modelo vigente em Esparta, e que era totalmente contrário às reformas de natureza democrática empreendidas na principal cidade da Grécia Ática.

Por outro lado, para que se perceba o uso que o Poder Político pode fazer dessas teorias cujas premissas são argumentos retóricos - os “entimemas” -, aos quais alude Perelman, basta lembrarmos o papel que a ideia de “Razão” prestou à instauração do Estado Absoluto e à Revolução Francesa, cada uma a seu tempo e a seu modo totalmente diferentes uma da outra.                    

Por exemplo, Bobbio (1995:63), explica que:

“.... a ideia de codificação surgiu, por obra do pensamento iluminista, na segunda metade do século XVIII e atuou no século passado: portanto, há apenas dois séculos o direito se tornou direito codificado. Por outro lado, não se trata de uma condição comum a todo o mundo e a todos os países civilizados. Basta pensar que a codificação não existe nos países anglo-saxônicos. Na realidade, a codificação representa uma experiência jurídica de dois séculos típica da Europa continental”.

E continua:

“É, de fato, propriamente durante o desenrolar da Revolução Francesa (entre 1790 e 1800) que a idéia de codificar o direito adquire consistência política. Este projeto nasce da convicção de que possa existir um legislador universal (isto é, um legislador que dita leis válidas para todos os tempos e lugares) e da existência de um direito simples e unitário. O movimento pela codificação representa, assim, o desenvolvimento extremo do racionalismo, que estava na base do pensamento jusnaturalista, já que à idéia de um sistema de normas descobertas pela razão ele une a exigência de consagrar tal sistema num código posto pelo Estado. Estas idéias, que apelavam não só para a razão mas também para a autoridade do Estado, foram favoravelmente acolhidas pelas monarquias absolutas do século XVIII, sendo estas, inclusive, uma expressão do fenômeno histórico observado com o nome de despotismo esclarecido”. (Idem, p.65)

Para o fortalecimento do Estado, lançou-se mão da codificação, portanto, com base na noção de “Razão”, que tinha os seguintes contornos: leis válidas para todo o tempo e lugares e um direito simples e unitário.

Trata-se da positivação do Direito, ou seja, da instauração da norma escrita. Mas como, ao mesmo tempo, o direito positivado pode ter sido baluarte ou instrumento para a construção do Estado absolutista e arma importante do ideário liberal-burguês e seu projeto hegemônico? A resposta é imediata: a possibilidade de sua instrumentalização.

É o que se depreende da leitura de Miaille:

“Todo o sistema das idéias dessa época converge em um único ponto: contra os preconceitos da feudalidade, é preciso fazer valer a Razão. A Razão propõe naturalmente uma inversão da ordem das coisas. Enquanto que o terceiro estado (SIEYÈS) que deveria ser tudo não é nada politicamente, a nobreza, que não é nada, é tudo e reina verdadeiramente. Será preciso conferir ao terceiro estado o lugar que logicamente deveria ter: Não se pode fazer nada sem ele, tudo se faria infinitamente melhor sem os outros. Porque é que é possível admitir que o terceiro estado seja tudo politicamente? Porque não representa de modo nenhum interesses particulares, como a nobreza ou o clero, mas os interesses da quase totalidade da sociedade. O terceiro estado abrange, pois, tudo o que pertence à nação; e tudo o que não é terceiro estado não pode ser visto como sendo a nação. O terceiro estado já não pode continuar a ter o lugar subalterno que a sociedade feudal lhe reservara: tem de ser a realidade nacional de que não era outrora senão a sombra. Como é possível que a razão possa admitir que uma nação de 25 milhões de pessoas seja governada por menos de 200 000 privilegiados? Se a Nação é portanto a única noção que a Razão pode admitir, é que esta Nação será doravante formada por indivíduos livres e iguais em direitos. Esta idéia de liberdade e igualdade sobretudo é indispensável à constituição de uma sociedade nova. Já não se trata de governar na base de privilégios, mas de direitos próprios de cada indivíduo: Não se é livre por privilégios, mas pelos direitos que pertencem a todos. Por outras palavras, o governo racional dos homens não é senão possível se se admitir que cada um deles é titular de direitos fundamentais cujo exercício a comunidade vai proteger. A liberdade no sistema feudal não pertencia senão a alguns: eram outros tantos privilégios; doravante, a liberdade pertencerá a todos: serão outros tantos direitos. A razão humana permitiu, pois, repor a ordem numa sociedade mal organizada, ou melhor, instaurar uma nova ordem fundada nos indivíduos, depositários de direitos inalienáveis e sagrados, numa palavra, de direitos naturais. Não basta proclamar a existência e a validade do direito natural como resposta às questões levantadas pela França dos fins do século XVIII, há que passar essas exigências à prática: há que romper o direito positivo. Nesse sentido, O DIREITO NATURAL É UMA ARMA DE COMBATE [grifo original]. É com esta arma que a nobreza liberal e a grande burguesia se vão bater a partir de meados do século XVIII e desenvolver as suas reivindicações”. (Miaille, 1979:255-256)

Portanto, essa mesma ideia de “Razão”, enquanto estratégia de combate a ser levada a cabo por aqueles que a instrumentalizariam, através da positivação de alguns direitos ditos inerentes ao ser humano, eternos espaciotemporalmente, serviu a vários senhores.

Com efeito, com ela o jusnaturalismo racionalista (o iluminismo) respondeu, à época, o problema que lhe fora proposto: se antes engendrara a positivação do Direito que, em uma primeira etapa, lastreou o absolutismo das Casas Reinantes, em uma segunda etapa juridicizou as condições necessárias para a implantação da nova realidade econômico-política – a burguesia.

Aliás, outra não é a opinião de Ross (2000:307) a esse respeito, quando afirma que o Direito natural é “primeira e principalmente, uma ideologia criada pelos detentores do poder – os estadistas, os juristas, o clero – para legitimar e robustecer a sua autoridade” podendo, portanto, tanto estar de um lado quanto do outro em relação ao ordenamento jurídico em vigor, mas, sempre, com certeza, sendo um instrumento do Poder Político.

Goyard-Fabre (1999:289), constata o mesmo:

“A história nos ensina ora que o princípio da legitimidade é invocado contra o direito estabelecido – foi o caso dos partidários de Luís XVIII que defendiam, contra o direito positivo da Revolução e do Império, o valor da tradição dinástica -, ora que o governo é declarado ilegítimo por ser ilegal – foi o caso do regime de Vichy na medida em que derivava da lei de 10 de julho de 1940, aplicada em violação da Constituição”.

Como fecho, Bobbio (2000:229)  nos conta que assim se referiu Naudé, em "Considerazioni politiche sui colpi di stato" (1639) acerca do massacre na noite de São Bartolomeu, praticamente construindo o conceito de “razão de estado” para vergar a ordem jurídica, em 23 e 24 de agosto de 1572: “Não terei escrúpulos em afirmar que esta empresa foi mais que oportuna, importantíssima e justificada por razões mais que eficientes”.

São muito variadas as fontes que nos permitem constatar esse epifenômeno onipresente, qual seja o da instrumentalização política de aparatos teóricos, na história da humanidade.

Faoro (2000:11), em sua obra-referência “Os Donos do Poder”, na qual retoma e aprofunda os conceitos de patrimonialismo e estamento burocrático analisando-os a partir da formação política brasileira, desde suas mais longínquas raízes portuguesas, observa o quanto o direito romano serviu aos interesses da Igreja que trabalhou, e muito, para romanizar a sociedade, impondo um modelo de pensamento e um ideal de justiça que servia a seus propósitos tanto mais quanto ambíguas as premissa nas quais se fulcrava.

Diz ele, textualmente:

“O clero, desde o distante século VI, convertido o rei visigótico ao catolicismo, trabalhou para romanizar a sociedade. Serviu-se, para esta obra gigantesca, do direito romano, o qual justificava legalmente seus privilégios, revelando-se o instrumento ideal para cumprir uma missão e afirmar um predomínio”.

Popper empreendeu, por exemplo, ao longo da surpreendente aplicação de sua teoria do conhecimento ao domínio da política, em “A Sociedade Aberta e seus Inimigos”, uma heterodoxa e veemente crítica a Hegel, ao ponto de identificar o historicismo hegeliano com a filosofia do totalitarismo moderno. (OAC:86)

Diz Popper:

“A dialética de Hegel, assevero, foi concebida em ampla medida com o fito de perverter as idéias de 1789. Hegel estava perfeitamente consciente do fato de que o método dialético pode ser utilizado para retorcer uma idéia em seu oposto. (...) Como segundo exemplo desse uso da dialética, escolherei o tratamento que Hegel dá à exigência de uma CONSTITUIÇÃO POLÍTICA[3], que ele combina com seu tratamento da LIBERDADE e da IGUALDADE. (...) Vejamos primeiro como Hegel retorce a igualdade em desigualdade: ‘A afirmação de que os cidadãos são iguais perante a lei contém uma grande verdade. Expressa, porém, desse modo, é apenas uma tautologia; apenas diz, em geral, que existe um estatuto legal, que a lei rege. Mas, para ser mais concreto: os cidadãos ... são iguais perante a lei apenas naqueles pontos em que também são iguais FORA DA LEI. APENAS ESSA IGUALDADE QUE POSSUEM EM PROPRIEDADE, IDADE, ETC... PODE MERECER TRATAMENTO IGUAL EM FACE DA LEI... As próprias leis ... pressupõem condições desiguais ... Poder-se-ia dizer que o grande desenvolvimento e o amadurecimento da forma dos estados modernos é justamente o que produz a suprema desigualdade concreta dos indivíduos da atualidade’. (...) ‘A questão <a quem cabe o poder de fazer uma constituição>? é a mesma que <quem deve fazer o Espírito de uma Nação>’? ‘É pelo ingênito Espírito e pela história da Nação – que é apenas a história desse espírito – que as constituições têm sido e são feitas’. ‘A totalidade viva que preserva e continuamente produz o Estado e sua constituição ... é o Governo ... No Governo, considerado como uma totalidade orgânica, o Poder Soberano, ou Principado ... é a vontade do Estado que tudo sustenta e tudo decreta, seu mais alto Cume e sua oni-penetrante Unidade. Na forma perfeita do Estado, em que todos e cada um dos elementos ... encontraram sua existência livre, essa vontade é a do INDIVÍDUO QUE EFETIVAMENTE DECRETA; É A MONARQUIA. A constituição monárquica é, portanto, a constituição da razão desenvolvida’”. Continua Popper: “E, para ser ainda mais específico, explica Hegel, numa passagem paralela da sua FILOSOFIA DA LEI, que a <decisão final ... à autodeterminação ABSOLUTA constitui o poder do príncipe como tal> e que < o elemento ABSOLUTAMENTE decisivo no todo ... é um só indivíduo, o monarca>”.

Popper entende que a filosofia de Hegel foi inspirada, portanto, em seu interesse na restauração do governo prussiano de Frederico Guilherme III, a quem coube comandar a reação ao vendaval revolucionário francês, razão pela qual distorceu, a partir da manipulação dialética, a ideia de Estado, Razão, Igualdade e Liberdade - herança iluminista daquele movimento político, para concretizar, isso sim, o ideal absolutista do genial imperador.

Ao fazê-lo, a partir de matrizes adulteradas do pensamento de Platão, Aristóteles e Heráclito de Éfeso, instaurou uma nefasta e enganosa influência que ainda hoje perdura.

E apresenta, quanto a essa influência, o testemunho insuspeito, acerca de Hegel, de ninguém mais, ninguém menos, que Schopenhauer, para corroborar sua assertiva: “Ele exerceu, não só na filosofia, mas em todas as formas da literatura alemã, uma influência destruidora, ou poder-se-ia ainda dizer, pestilenta. Combater essa influência, com todas as forças e em toda ocasião, é dever de todos os que forem capazes de julgar independentemente. POIS, SE NOS CALARMOS, QUEM FALARÁ”?

Surpreendente é considerar que se verdadeira a suposição de ter respondido Hegel ao problema específico que a época e suas próprias circunstâncias históricas lhe apresentou, qual seja o de engendrar a solução filosófica ao “problema” criado pelo pensamento revolucionário francês, assegurando-se lhe, assim, o papel de “pensador oficial” do império prussiano, ter-nos-emos deparado com um exemplo paroxístico de instrumentalização do saber filosófico em proveito ideológico, a par de uma extrema habilidade na condução de seu intento.

Uma curiosidade histórica: Frederico II, da Prússia, com certeza sabia da importância de respaldar sua política em lastro filosófico; é dele um interessante livro no qual comenta “O Príncipe”, de Maquiavel.

Nos escritos de Jena anteriores à “Fenomenologia”, Hegel, que não chegou a publicar “A Constituição da Alemanha”, exalta Maquiavel com o firme propósito de lutar pela unificação do seu país.

Para tanto, insiste fortemente no combate à liberdade individual – característica, segundo ele, do povo alemão – em defesa da guerra, este instrumento de coesão.

Essa liberdade individual danosa somente pode ser combatida por um Estado forte. Assim, e finalmente, não haveria uma lei moral ou um direito natural que se sobreponha ao direito de um Estado. E o direito do Estado é proporcional a sua força.

Um outro exemplo de instrumentalização política de aparatos teóricos é a questão dos direitos humanos. Em um artigo publicado na Folha de São Paulo, de 11 de dezembro de 1998, cujo título é “Cultura ocidental é astuta”, Contardo Calligaris começa lembrando a seus leitores que os direitos humanos não são inerentes ao ser humano como o são nascer com pernas e braços.

Ao contrário, dizer direitos inerentes ou naturais é um artifício retórico  que visa colocá-los acima do diálogo ou argumentação política. Após lembrar que a ideia de direitos humanos e sua universalidade encontrou sua primeira formulação no século XVII, Calligaris observa que eles se fizeram valer porque um grupo (Declaração de Independência norte-americana) disse que valiam “e se fez polícia”.

E remata: “Desde a primeira declaração dos direitos humanos no século 18, parece que progressivamente fomos perdendo o ânimo. Desistimos da coragem de nossas escolhas políticas e morais e preferimos então encontrar para elas justificativas naturais”.

Outro exemplo começa com a hipótese de que a idéia de Justiça (THEMIS) é anterior à de Direito (DIKE) escrito.

A Justiça, como nos faz crer o texto homérico, é “o cetro e a lei”, ou seja, os instrumentos entregues pelos deuses aos reis para que estes engendrem a coesão social, façam, concedam Justiça.

Hesíodo nos mostra, principalmente em seu épico pessoal “ERGA”, que a peculiar estrutura política grega, onde o povo (aqueles que não pertencem à nobreza) dispunha de uma rara independência de espírito, permitiu sua luta para a concretização de um ideal de classe: o Direito escrito, que a todos submete, reis, nobres, povo, realizando a Justiça, fundamentalmente alicerçado na noção de isonomia.

Até então, o desejável, mas não somente na cultura grega, quanto na egípcia, hebraica ou nas civilizações de escrita cuneiforme era a “satisfação das partes”, a reforçar a premissa do desejo, implícito, da classe dirigente de promover a “coesão social” ([4]): a Justiça dada, concedida pela elite sendo substituída por aquela buscada, almejada, pelo povo.

Trata-se de uma ruptura, uma revolução.

Como surgiu essa ideia de isonomia? Jaeger (1986:67) menciona que seria possível acreditar na possibilidade de seu surgimento decorrer, por um processo oriundo da associação de ideias, da compensação satisfatória em mecanismos de troca, seja de mercadoria, seja para satisfazer uma perda decorrente de um atentado ao equilíbrio entre as partes.

Essa instrumentalização jurídica da isonomia foi resultante da compreensão, por parte daqueles que não eram nobres, e ela é intrinsecamente política, de que era necessário colocar esta classe também sobre o jugo da lei, ou seja, tornar todos iguais debaixo de um só manto, para assegurar sua própria sobrevivência.

Ressalte-se que, muitos séculos depois, essa foi a cruzada empreendida pelo jusnaturalismo racionalista, enquanto ideário burguês – tendo como fio condutor a subjacente ideia de “Razão” ([5]) - para quebrar os privilégios da nobreza e implantar a hegemonia da nova classe ascendente durante a Revolução Francesa: igualdade!

 A “Razão”, essa reinvenção do iluminismo, criação grega ([6]), permitia a construção do discurso da isonomia, da igualdade, ele mesmo usado, séculos antes, pelos “demos” grego para criar a democracia, ou seja, o governo da maioria sob o manto da lei.

Assim, é fácil concluir que a ideia de Direito escrito para assegurar-se a obtenção da Justiça, é criação política. 

Ironia da história, melhor, dos seus protagonistas: uma mesma bandeira – a noção de Razão -, duas práticas políticas distintas.

Ou seja, em síntese, um aparato teórico frágil pode ser instrumento político da estrutura de Poder Político vigente, qualquer que seja ele.


[2] “O poder de um indivíduo ou instituição é a capacidade de este conseguir algo, quer seja por direito, por controle ou influência. O poder é a capacidade de se mobilizar forças econômicas, sociais ou políticas para obter um certo resultado, e pode ser medido pela probabilidade de esse resultado ser obtido em face dos diversos tipos de obstáculos ou oposição enfrentados. Não é essencial à sua definição que o resultado seja conscientemente procurado pelo agente: o poder pode ser exercido na ignorância de sua existência ou efeitos, embora, claro, seja frequentemente exercido de forma deliberada” (BLACKBURN, Simon; “Dicionário Oxford de Filosofia”; Jorge Zahar Editor; Rio de Janeiro; 1ª edição;1997; p. 301).

[3] Este, como os seguintes, no presente capítulo, são grifos de Popper.

[4] GILISSEN, John; “Introdução Histórica ao Direito” 1988; p. 53. O “Maât”, modelo do direito não escrito, o objetivo a ser perseguido pelos detentores do poder, tem poressência ser o “equilíbrio”; o ideal, a esse respeito, é por exemplo “fazer com que as duas partes saiam do tribunal satisfeitas”.

[5] Vejam-se os escritos do Abade Sièye.

[6] A civilização grega distingue-se das outras pela invenção da filosofia: a realidade explicada não mais através de mitos ou religião e, sim, da Razão.


* Texto constante do "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon.