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quarta-feira, 28 de maio de 2025

4. A APREENSÃO DO FENÔMENO JURÍDICO

 



MEDEIROS, Honório de. Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional). Belo Horizonte: Editora Dialética. 2020.

* Honório de Medeiros 

Ultrapassando a discussão acerca de serem ou não aceitáveis, para seus críticos, as premissas ontognosiológicas de Karl Popper em relação à existência do “terceiro mundo” ou “Mundo 3”, mas acatando, até pelo fato de terem resistido às tentativas de refutação, como conjecturas sofisticadas, tais premissas, cumpre, então, deixar claro que o Direito é, enquanto teoria ou fato social, e na mesma medida, por exemplo, da linguagem ou da arte, algo integrante do “Mundo 3” , ou seja, é um objeto dito cultural, naquele sentido mais singelo ao qual alude Machado Neto (1987:144) “cultura (...) como tudo aquilo que o homem ajunta [agrega] à natureza”.

E:  “um simples objeto natural – uma pedra, digamos – se utilizado pelo homem, mesmo sem modificação de sua estrutura – usada como peso de papéis, suponhamos – já se tornou cultura, por passar a funcionar na vida humana, no mundo do homem, onde se lhe atribui um posto e um sentido”. (OAC:156) 

 

4.1 APREENSÃO DO FENÔMENO JURÍDICO

 

Seria tal objeto cultural apreensível a partir dos postulados estabelecidos pela teoria que afirma serem as ciências culturais (ou do espírito) ontologicamente distintas das naturais, em uma vertente que tem, como fulcro, o pensamento de Dilthey? Ou a ciência seria uma só, identificada não pelo seu objeto mas, sim, por seu método? 

Neste ponto, necessário se faz retornar a Popper. 

 

4.2 CIÊNCIA NATURAL X CIÊNCIA DO ESPÍRITO

 

Ao contrário do que se poderia supor, não é necessário recorrer – pois é errado - ao primado epistemológico que, calcando-se em Durkheim, propugna como premissa tratar os fatos sociais enquanto coisas, em um viés empirista, para contestar Dilthey, que postula serem os objetos culturais, tal qual o Direito, não descritíveis, como o são aqueles peculiares às ciências ditas naturais, mas, sim, compreensíveis, através de um processo no qual o sujeito cognoscente “apreende” a essência do objeto cognoscível.

Esse processo é descrito, por exemplo, pela fenomenologia de Merlau-Ponty, citada por Herkenhoff ( 1979:71),  e nada mais é que a roupagem moderna de uma antiga idéia exposta por Platão no “Teeteto”.

Feyerabend (1977:56-57) a critica não por considerar  que o objeto cognoscível apreendido seja mais que o reflexo das tentações intelectuais do sujeito cognoscente, mas, sim, porque tende à preservação do “status quo”, na medida em que a análise fenomenológica usa um instrumental formado a partir de premissas teóricas já bem solidificadas no analista.

Ou seja, nem o Idealismo ingênuo, tampouco o Realismo intransigente. 

Para tanto, Popper (1975:161) propõe, como já dito anteriormente, não ser importante para o conhecer saber-se acerca de quem o produz, mas, sim, do produto.

Ou seja, “qualquer análise intelectual significativa da atividade de compreender tem de procede,r principalmente, senão inteiramente, por analisar o resultado da nossa manipulação de unidades estruturais e instrumentos do “terceiro mundo” (Mundo 3).

Pouco importa, portanto, a subjetividade de sua apreensão, intelecção, uma vez que, somente ao ser exposta objetivamente, interagir com a realidade externa ao sujeito cognoscente, através de asserções, proposições, argumentações, essa apreensão poderá redundar em efeitos tanto no “segundo mundo” ou “Mundo 2”, quanto no “terceiro mundo” ou “Mundo 3”.

O resultado desse “compreender”, “intuir” a essência de algo, enquanto permanece no sujeito cognoscente, é inexistente para o mundo exterior; ao ser enunciado, passa a submeter-se aos critérios estabelecidos pela ciência quanto à verdade ou falsidade da afirmação feita, demonstrando, assim, inexistir distinção entre a ciência natural e a ciência do espírito. 

Popper afirma: o método científico é um só. Enquanto ciência, um determinado ramo do conhecimento humano assim o é designável não a partir do objeto cognoscíve,l mas, sim, pelo método utilizado para apreendê-lo. 

Ao conjeturar-se algo acerca de um objeto de natureza cultural (objeto este entendido não no sentido platônico das formas e idéias, que seriam eternas e absolutas e existentes, portanto, anteriores ao homem, mas cuja confirmação quanto à sua existência não é possível pelos padrões científicos atuais) cujas características peculiares foram constatadas e descritas ao longo dos séculos e cujas descrições sobreviveram a críticas, provas e testes severos, perscrutou-se a veracidade do conteúdo desses enunciados, no sentido de saber-se se eles seriam verdadeiros ou falsos.

Utilizou-se, assim, um processo próprio que envolve um rígido controle crítico da análise indutiva das premissas propostas. Fez-se, então, ciência. Em síntese: conjecturas submetidas à prova, método único para a ciência do espírito e ciência natural. 

O âmago da questão é o errado entendimento acerca de qual seja o verdadeiro método da ciência natural. Para muitos pensadores, mesmo depois da demolidora crítica de David Hume, a ciência natural começa pela observação e continua, pela indução, até a teoria. Segundo esta teoria, os quatro sentidos, bem como o tato, constituem a fonte de todo o conhecimento. É o que se pode denominar de exacerbação do Realismo. 

Aqueles que não concordaram em trazer para a área de humanas esse errado método das ciências naturais[1] enveredaram pela Hermenêutica enquanto ciência do espírito, essa corrente moderna do antigo Idealismo. 

 

4.3 A HERMENÊUTICA ENQUANTO TEORIA SUBJETIVISTA ACERCA DA INTERPRETAÇÃO

 

Nesse sentido, convém expor, de forma mais substancial, qual a percepção que Popper tem acerca da postura de Dilthey e Colingwood, por ele citados, mas que se aplicaria, também, necessariamente, a Emilio Betti,[2] Gadamer,[3] Miguel Reale e sua utilização do método fenomenológico para apreensão do fenômeno jurídico,[4] e aos arautos da filosofia da linguagem, pois fundamental para a crítica da hermenêutica enquanto teoria subjetivista.[5] 

Segundo Popper, todos esses filósofos sustentam que as ciências humanas distinguem-se substancialmente das naturais posto que às primeiras cabe compreender o homem, mas, não, à natureza. Essa “compreensão”, fundamentalmente, seria uma identificação intuitiva com os outros, a partir dos gestos, fala e ações, dos produtos da mente humana, atitude impossível de conceber-se em relação ao universo físico, compostos químicos, células e outros. 

Entretanto, mesmo havendo essa aparente distinção em relação ao objeto cognoscível, qual seja “compreender” para as humanidades e “entender” para as ciências da natureza, o método da conjectura e refutação, que caracteriza a ciência é comum às duas: tanto vale para a “reconstrução de um texto danificado como na construção de uma teoria da relatividade”. (Popper,1975:176)

E, ainda, nada é diferente, no ponto-de-partida e na chegada: uma situação-problema originada pela discrepância entre o conhecido e o desconhecido, a exaustão do “modelo” descritivo anterior existente acerca do objeto em tela, o engendrar de conjecturas-soluções (teorias experimentais) que, em sendo enunciadas – portanto expostas de forma objetiva -, serão submetidas aos critérios de controle da verdade científica através da lógica dedutiva, tudo isso é patrimônio comum a ambas. 

Ou seja, embora possa haver divergência entre a ciência humana e natural, seria apenas quanto à forma como o objeto cognoscível se apresenta ao sujeito cognoscente, pois, enfim, o método para apreendê-lo é o mesmo: parte-se sempre de problemas, sejam eles práticos ou incongruências de natureza abstrata. Não há, portanto, um abismo “tipológico” entre um e outro: em ambos começamos pela tensão criada entre nossas expectativas e a realidade, para prosseguirmos então conjeturando soluções ao problema surgido e os controlando através da crítica e/ou teste científico. 

A distinção possível entre ciência natural e ciência humana decorre, basicamente, do fato de a ciência humana ter, como tarefa, estudar objetos do “terceiro mundo” ou “Mundo 3”. Essa afirmação, como não poderia deixar de ser, contraria fundamentalmente uma teoria como a Hermenêutica, que defende ser objetos da ciência do espírito ou ciências humanas ou, ainda, culturais, o estudo dos objetos do “segundo mundo” ou “Mundo 2” e que, por conseguinte, devem ser apreendidos e explicados através da Psicologia ou Psicanálise.[6] 

É óbvio que a compreensão envolve uma atividade de natureza subjetiva, mas há que se distinguir entre essa atividade e seu resultado. Como lembra Popper (1989:151):

“Por seu turno, a interpretação pode ser vista como um produto do Mundo 3 de um ato pertencente ao Mundo 2, e também como um ato subjetivo. Mas mesmo que a consideremos um ato subjetivo, a este ato corresponde, em todo o caso, também um objeto do Mundo 3. Considerada como um objeto do Mundo 3, a interpretação constitui sempre uma teoria. Vejamos, por exemplo, uma interpretação da história, uma explicação da história. Pode ser apoiada por uma série de argumentos, assim como através de documentos, inscrições e outros testemunhos históricos. Deste modo, a interpretação revela-se como uma teoria e, como toda teoria, assente noutras teorias e noutros objetos pertencentes ao terceiro mundo.” 

Assim, o resultado de uma interpretação somente tem valor a partir do momento em que podemos operar com seus enunciados enquanto objetos do “terceiro mundo” ou “Mundo 3”.

Em decorrência, as explicações subjetivas, necessariamente calcadas em premissas que não se sustentam quando não submetidas ao método da ciência, devem ceder lugar a enunciados, asserções, proposições lógicas. Troque-se, então, a psicologia da descoberta pela lógica da descoberta.

Revela-se, assim, o caráter subjetivista da Hermenêutica enquanto ciência do espírito. 

Portanto, do ponto de vista metodológico, segundo Popper, não há a pretendida distinção entre ciência humana e natural, e o Direito, a norma jurídica, enquanto “habitante” do “terceiro mundo” ou “Mundo 3”, deve ser apreendido a partir dos postulados metodológicos expostos pela epistemologia sem sujeito cognoscente e, nunca, a partir de primados estabelecidos em decorrência de crenças subjetivas. Esses postulados, para lembrar o critério de demarcação por Popper estabelecido entre ciência e não-ciência, exigem a submissão das premissas nas quais se fulcra, por exemplo, a idéia de “compreensão”, ao crivo da possibilidade de refutação, via teste ou prova, para ser aceito enquanto paradigma científico – algo com certeza impensável em relação à Hermenêutica. 

A aceitação da Hermenêutica – com fulcro no “segundo mundo” ou “Mundo 2” – enquanto ciência do espírito, proposta nitidamente idealista, pode permitir, tendo em vista a fragilidade de sua base teórica, o ocultamento e a instrumentalização política das técnicas interpretativas: a técnica pode ter, como qualquer artefato, uso indistinto, mesmo quando expostas as carências de suas premissas. 

Portanto, devemos e podemos fugir da errada compreensão acerca do verdadeiro método da ciência, seja ela natural ou do espírito. Não devemos enveredar pelo Idealismo ingênuo – mesmo que brilhantemente exposto, tampouco pelo Realismo exacerbado – como o é o positivismo lógico, o empirismo e a fenomenologia. O método da ciência é um só: ele não somente discrepa da concepção arcaica, qual seja o critério observação-indução-teoria, tanto para objetos naturais quanto culturais, como o faz em relação à Hermenêutica que se revela sem sentido na medida em que tira de cena o objeto cognoscível para empreender a análise do sujeito cognoscente. 

Perceber, a partir do estudo dessas questões de natureza ontognosiológica e, mesmo, epistemológicas, a fragilidade de algumas teorias como postas no mundo científico e originando, quiçá, errôneas decisões quando se consubstancializam,  permite entender por que podem algumas delas serem instrumentalizadas pelo Poder Político. Permite, também, combatê-las do ponto de vista lógico, ressaltando a fragilidade de suas premissas e persistência em existir, tomando-se distância, assim, da discussão de caráter ideológico que, com certeza, somente conduz a impasses políticos na hora de se resolverem conflitos sociais. 

Outra não foi, portanto, a razão pela qual tanto se perseverou na exposição dos fundamentos filosóficos, com fulcro em Popper mas, também, em Bachelard, da crítica a crenças de natureza subjetiva, qual sejam aquelas que têm, como lastro, seja o Idealismo ingênuo, seja o Realismo exacerbado. Em quase todas elas, haja vista a possibilidade de sua instrumentalização política, é possível detectar-se o interesse político que as manipula. É nesse sentido que se supõe ser a Hermenêutica, entendida enquanto ciência do espírito ou teoria do significado, a pseudo-ciência de um errado objeto. E o manejo consciente ou inconsciente das teorias que ela enseja, um véu sob o qual se escondem outros desígnios que não apenas o crescimento do conhecimento.


[1] Durkheim tentou trazê-lo. Para tanto propôs atribuir ao fato social o caráter de “coisa”, a ser desvendado através do método de observação e indução.

[2] “Um quarto cânone hermenêutico, estreitamente ligado ao precedente e como esse atinente ao sujeito do processo interpretativo: aquele que proporemos chamar cânone da adequação do entender ou cânone da reta correspondência ou consonância hermenêutica, pelo qual o intérprete deve esforçar-se para colocar a própria atualidade vivente em íntima adesão e harmonia com a mensagem que – segundo a apropriada imagem de Humboldt lhe vem do objeto de modo que um e outro vibrem em uníssono.” (Trecho da Teoria Generale della Interpretazione de Emilio Betti, traduzido e transcrito por PESSÔA, Leonel Cesarino; em “A Teoria da Interpretação Jurídica de Emilio Betti”; Sérgio Antônio Fabris Editor; Porto Alegre; 1ª edição; 2002; p. 110/111). Metafísica pura!

[3] Ver, no caso, “Verdade e Método”, através do qual Gadamer expõe, principalmente “O problema do método”, na primeira parte de sua obra, que trata da “Liberação da Questão da Verdade desde a Experiência da Arte”.

[4] Ver, no caso. BLANCO, Pablo Lopez; “La Ontología Jurídica de Miguel Reale”; Editora Universidade de São Paulo; 1ª edição; 1975; São Paulo; p. 16.

[5] Necessário faz-se distinguir entre teorias subjetivistas do conhecimento – aquelas com ênfase no idealismo, e interpretação subjetiva em Direito – aquela que se propõe interpretar a norma jurídica a partir da intenção do legislador.

[6] Como é o caso da Hermenêutica de Paul Ricouer e Habermas ou, mesmo, de Emilio Betti.


* Texto constante do "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon.