“Hipóteses são redes; quem as lança, colherá” (Pólen; Novalis).
Faz parte da psicologia do conhecimento o processo de distinguir para conhecer.[1]
Conhecemos por que distinguimos e nossas conjecturas sobrevivem às críticas, nos moldes descritos na teoria da seleção do mais apto, de Darwin.
Assim Popper distinguiu entre objetos do primeiro, segundo e terceiro mundos: aquele mundo material (que existe independente do homem); o mental ou disposicional (estados mentais, propensões para agir, etc.); e o das teorias e suas relações lógicas, dos argumentos em si mesmos, etc.
Podemos distinguir, dentre esses objetos do terceiro mundo, a Música, o Direito, a Arte, a Linguagem – todos eles objetos culturais que diferem entre si em razão de suas peculiaridades.
Embora a existência desses objetos culturais decorra da presença do homem na face da terra – o que lhes imputa a identidade de fenômenos sociais, como, em relação ao Direito, já o intuíra o gênio romano - “ubi societas, ibi jus” -, este tem características, peculiaridades que lhe são próprias e que o tornam distinto da Música ou Linguagem.
6.1 CARACTERÍSTICA INTRÍNSECA ESPECÍFICA DO DIREITO: A NORMA JURÍDICA
É característica intrínseca do Direito, constitui-se algo estrutural seu, por exemplo, a normatividade, descrita por Kelsen ( 1995: 11-12), como lembra Bergel (2001:37-38), ao assegurar que o pensamento que se ordena em torno das suas finalidades não é suficiente para defini-lo, lembrando que a “a definição da norma jurídica, assinala sua especificidade em comparação às outras normas sociais”.
Não qualquer norma, pois em assim sendo, não haveria como distingui-lo da Moral. Ou seja, o que há de específico no Direito que o distingue de outros fenômenos sociais é a norma jurídica, oriunda do Estado, enquanto uma determinação de conduta para cujo descumprimento se prevê uma sanção.
É impossível a existência do Direito sem a norma jurídica, pois, então, ele se descaracterizaria enquanto tal.
Miguel Reale, em sua ontologia jurídica, fala-nos em Direito enquanto “norma”, “fato” e “valor”. Entretanto, como bem assinala Maia,(2000:38), “fato” e “valor”, que são elementos comuns à Moral ou Sociologia, por exemplo, somente têm relevância no mundo jurídico se informados pela norma jurídica, “subsumidos” a ela.
Esta é a lição de Kelsen,(1986:1) sempre esquecida. Assim é que Kelsen lembra a estrutura da norma jurídica:
“uma ordem, e principalmente uma ordem que se qualifica como norma, pressupõe dois indivíduos: um que ordena, que dá a ordem, fixa a norma, e um outro, ao qual a ordem é dirigida, ao qual alguma coisa é imposta, um indivíduo cuja conduta a norma prescreve, estabelece como devida”. (OAC:37)
A isso acresça-se, segundo sua lição, a sanção pelo seu descumprimento e sua origem estatal.
Se a norma jurídica e sua especificidade permitem um estudo próprio - uma ciência jurídica da qual nos fala Kelsen, “pura”, pois constituída de asserções ou proposições lógicas acerca do seu peculiar objeto, e, não, de autos-de-fé,[2] ou crenças subjetivas, o mesmo se pode dizer quanto às causas e conseqüências de sua existência enquanto ordenamento no ambiente social.
A norma jurídica é objeto da ciência jurídica: o ordenamento, da ciência social. Teríamos, então, utilizando a imagem que os efeitos de uma pedra lançada na superfície de um lago plácido origina, um círculo concêntrico específico contido por outro maior, uma ciência contendo outra.
Talvez nada explique melhor esse emaranhado do que uma metáfora, qual seja a do jogo de xadrez. Convém observar, entretanto, que aqui o seu sentido difere daquele empregado por Alf Ross (2000:34ss) ao utilizar a mesma metáfora. Em sua obra, esta é utilizada para propor um conceito de “direito vigente”. Aqui, ela se presta a demonstrar os elos entre a norma jurídica enquanto objeto e o ordenamento, na qualidade de fato social, enquanto preocupação da Ciência.
Suponhamos dois circunstantes que se disponham a jogar uma partida de xadrez. Para iniciá-la, deverão estar previamente concordes quanto às regras a serem seguidas. Sabem que descumpri-las é fatal: haverá sanção (no jogo de damas, cartas, ou outro qualquer, as regras surgirão, também, através de acordo preliminar, de “pacto social”).
Uma vez iniciada a partida, ela desenvolver-se-á em dois planos: no primeiro, de natureza formal, sob a égide de regras que disciplinam o jogo, e que são oriundas de fatores a ele externos, tais como as decisões da Federação Internacional de Xadrez (FIDE), entidade que congrega e ordena a atividade enxadrística no âmbito internacional, ou mesmo o regulamento do torneio – previamente acertado - do qual estão participando os contendores; no segundo, serão observadas, pelos contendores, regras (técnicas) imanentes à própria disputa, ao jogo-em-si, descobertas ao longo do tempo pelos estudiosos para que se obtenha a vitória almejada, mas somente existentes e atuantes nos limites estabelecidos pelas regras de natureza formal: noções estratégicas e táticas.
O observador cognoscente pode analisar esse objeto cognoscível (o jogo, a partida sendo desenvolvida) distintamente: na primeira, enquanto não-participante, ao se perguntar acerca da história dessa disputa, as causas e conseqüências da sua existência, o seu papel social, a psicologia dos participantes, sua finalidade última ou primeira (no plano metafísico) e, nesse caso, estará trabalhando externamente ao fenômeno enquanto historiador, psicólogo, sociólogo ou filósofo.
A segunda maneira, enquanto participante, seja no Xadrez, seja no Direito, impõe o raciocínio dedutivo a esse observador cognoscente às voltas com aquelas regras impostas de fora para dentro pela FIDE (ou acordo prévio) ou ordenamento jurídico positivo (pacto social, Constituição): as premissas do raciocínio são as normas existentes. Assim o é no Direito e no Xadrez, do qual este pode ser uma metáfora do ponto-de-vista formal daquele.
6.2 CARACTERÍSTICA EXTRÍNSECA ESPECÍFICA DO DIREITO: O PODER
E, se para Kelsen, bem como para outros pensadores, aquilo que caracteriza especificamente o Direito, em uma perspectiva intrínseca a ele, é a norma jurídica, em uma perspectiva extrínseca essa característica é sua relação com o Poder Político do qual ele, o Direito, por sua vez, parece ser uma característica intrínseca.
Ou seja, a norma jurídica está para o Direito, da mesma forma que o Direito está para a Sociologia Política (Ciência Política). Talvez, em um exercício audacioso de conjectura, possa-se ousar dizendo que a norma jurídica está para o Direito como o elétron está para o átomo; e que o Direito está para o Poder Político, como o átomo para a matéria.
Poder Político esse que, lembra Bobbio (2000:221), é “o sumo poder ou poder soberano, cuja posse distingue, em toda sociedade organizada, a classe dominante”.
Essa relação entre Poder Político e Direito permeia, como um viés oculto, mas presente enquanto “leitura extrínseca”, toda a “Teoria Pura do Direito”: “O dever-ser – a norma – é o sentido de um querer, de um ato de vontade, e – se a norma constitui uma prescrição, uma mandamento – é o sentido de um ato dirigido à conduta de outrem, de um ato, cujo sentido é que um outro (ou outros), deve (ou devem) conduzir-se de determinado modo". (OAC:3)
Outra não é a posição de Bobbio (1997:65...). Este autor, ao discorrer acerca da estrutura da norma fundamental observa, acerca das críticas ao seu conteúdo, que o poder originário (poder constituinte) que a instaura é “o conjunto das força políticas que num determinado momento histórico tomaram o domínio e instauraram um novo ordenamento jurídico”.
Repudia Bobbio a teoria que pretende confundir Poder Político com Força para criticar o Poder Constituinte originário e sua norma fundamental. Lembra ele que Poder nem sempre se confunde com Força, embora dele não prescinda, ao comentar que o Poder Constituinte Originário pode instaurar a norma fundamental de forma consensual. Mas pode faze-lo apenas, para discordarmos, por deter a possibilidade de utilizar a força. Ou seja, essa possibilidade de utilização esteve implícita:
“Quando a norma fundamental diz que se deve obedecer ao poder originário, não deve absolutamente ser interpretada no sentido de que devemos nos submeter à violência, mas no sentido de que devemos nos submeter àqueles que têm o poder coercitivo. Mas este poder coercitivo pode estar na mão de alguém por consenso geral. Os detentores do poder são aqueles que têm a força necessária para fazer respeitar as normas que deles emanam. Nesse sentido, a força é um instrumento necessário do poder”.(OAC:65...)
Essa característica extrínseca específica, qual seja a relação entre Poder Político e Direito é uma conjectura exposta enquanto asserção, proposição acerca do “Real”, passível de ser submetida à crítica, para ser aceita como ciência, nos moldes propostos por Popper em sua epistemologia sem sujeito cognoscente, critério de demarcação entre ciência e não-ciência, enfim, sua metodologia científica.
A distinção entre o caráter extrínseco e intrínseco do Direito é, com variações sutis, aceita e comentada por Bonavides (1994:92), quando ele analisa o que denomina de concepção tradicional de sistema no Direito: sistema extrínseco e sistema intrínseco:
“Mas nos sistema extrínseco, o teórico constrói, dogmatiza e impõe a lógica ao Direito, ao passo que no sistema intrínseco, ainda o de natureza formal, como o de Kelsen, a lógica, ao contrário, está no próprio Direito, no ordenamento dotado de racionalidade à espera de revelação, racionalidade que já existe e independente dos meios lógicos do sujeito cognoscente, o qual, até mesmo por insuficiência de compreensão, poderá pelo discurso deixar de reproduzí-lo com fidelidade, falseando assim a base intrinsecamente lógica ou dedutível da ordem jurídica”.
Não por outro motivo a Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, pretende ser plenamente científica. Com efeito, nela trata-se o direito como de fato ele o é, não como deveria sê-lo, razão pela qual seu objetivo foi encontrar a estrutura daquilo que, no espaço e no tempo, ou seja, historicamente, caracterizou o fenômeno jurídico. O que seria isso, ou seja, qual essa característica onipresente no fenômeno jurídico?
Kelsen se pergunta assim:
“O que o assim-chamado Direito dos antigos babilônios tem em comum com o – igualmente assim-chamado – Direito que prevalece hoje nos Estados Unidos? O que pode a ordem social de uma tribo negra, sob a liderança de um chefe despótico, ter em comum com a constituição da República suíça? Ainda assim há um elemento comum que justifica essa terminologia, que permite à palavra ‘Direito’ surgir como a expressão de um conceito com um significado social muito importante. Pois a palavra refere-se à técnica social específica de uma ordem coercitiva, que, apesar das enormes diferenças entre o Direito da antiga Babilônia e o dos Estados Unidos de hoje, entre o Direito dos ashantis da África Ocidental e o Direito da Suíça, na Europa, é essencialmente a mesma para todos esses povos que diferem tão amplamente em tempo, lugar e cultura – a técnica social que consiste em ocasionar a conduta social desejada dos homens por meio da ameaça de coerção no caso de conduta contrária”.
Em síntese: o Poder Político.
[1] “Foi assim que Deus procedeu diante do caos primitivo (Gn 1, v. 2). Ele separa, distingue: a luz das trevas, a terra do céu etc” (IDE, Pascal; “A Arte de Pensar”; Martins Fontes; São Paulo; 1ª edição; 1995; p. 165).
[2] Kelsen diz: “A luta não se trava na verdade – como as aparências sugerem – pela posição da Jurisprudência dentro da ciência e pelas conseqüências que daí resultam, mas pela relação entre a ciência jurídica e a política, pela rigorosa separação entre uma e outra, pela renúncia ao enraizado costume de, em nome da ciência do Direito e, portanto, fazendo apelo a uma instância objectiva, advogar postulados políticos que apenas podem ter carácter altamente subjetivo, mesmo que surjam, com a melhor das boas fés, como ideal de uma religião, de uma nação ou de uma classe” (KELSEN, Hans; “Teoria Pura do Direito”; Armênio Amado Editora; Coimbra; 6ª edição; 1984; p. 8).
* Texto constante do "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon.