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quinta-feira, 5 de junho de 2025

8. O PODER POLÍTICO NA PRODUÇÃO, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA NORMA JURÍDICA

 



“Pois pela Arte é criado esse grande LEVIATÃ chamado NAÇÃO ou ESTADO (em latim CIVITAS) que é apenas um Homem Artificial” ... (Hobbes, “Leviatã”).

                   Ora, asseverado que parte considerável da doutrina considera que o Poder Político instaura o Direito, e por não interessar especificamente ao objetivo deste trabalho a questão da legitimidade quer daquele, quer deste, passa-se à questão crucial: qual a natureza da presença do Poder Político na produção, interpretação e aplicação da norma jurídica?

                  Antes de prosseguirmos, tentando responder a essa indagação, convém criticar Miaille (1979:125) e sua observação quanto à teoria do caráter instrumental do Estado, seja marxista, seja não-marxista.

Com efeito, Miaille convida-nos a romper com a concepção de que a elite usa os aparelhos do Estado, qual seja os segmentos da Administração (Polícia, Exército, Justiça, como exemplo) para, enquanto detentores do modo de produção capitalista e, por conseguinte, dos mecanismos políticos, conter ou manipular as contradições sociais.

E, também, convida-nos a repudiar a concepção conservadora de que esse mesmo Estado é instrumento de progresso, paz, e coesão social.

Assim, segundo ele, que sucumba essa concepção “tecnicista” do Direito e do Estado, essa teoria acerca do caráter instrumental do Estado, veiculada tanto pelo marxismo ingênuo quanto pelo ideário burguês-liberal.

 Para Miaille, o Estado não é o instrumento: ele é o “topos” onde ocorrem lutas políticas, onde se busca obter, destruir ou manter o Poder Político.

                   Conviria convidar Miaille a um exercício reducionista: não há incongruência em perceber o caráter instrumental das ideias – e o conceito de Estado é instrumento, não o Estado em si, vez que este é uma ficção, uma apostasia – e aceitar a tese da prática de sua instrumentalização.

Esta, aliás, é a mais fecunda das teorias sobreviventes à refutação que a crítica pode proporcionar, qual seja, a de que as teorias são instrumentos criados pelo homem na sua luta pela sobrevivência: o darwinismo, por exemplo, explica o surgimento da linguagem a partir de uma necessidade adaptativa da espécie.[1]

Como omitir, portanto, que a noção de Estado é um instrumento, uma invenção, um habitante do “terceiro mundo” ou “Mundo 3”? 

                   A respeito de teorias sobre o surgimento do Estado enquanto resultado de atos de Poder Político, o que ressalta seu caráter instrumental, Popper (1974:250)  lembra Platão e sua concepção de que o “poder centralizado é organizado e se origina através de uma conquista (a subjugação de uma população sedentária agrícola por nômades ou caçadores)”.

Tese que, segundo Popper, foi retomada por David Hume em Essays: Moral, Political and Literary, Renan, Nietsche, em Genealogia da Moral”,[2] F. Oppenheimer e Karl Kautsky.

Mas é esse caráter de instrumentalização de idéias, de coisas, de estratagemas, de palavras, de ações, por parte daqueles que detêm o Poder Político, exposto por alguns teóricos, que se quer ressaltar.

Não para condenar ou aprovar, trata-se de constatar o fenômeno, chamar a atenção para ele, na mesma medida em que também se observa qual o papel fundamental prestado por essa teorias ao Poder Político, principalmente em decorrência de sua fragilidade teórica.

                   É o que faz Foucault (1980: 75ss), em “A Verdade e as Formas Jurídicas”.

 Nesta obra, ele salienta o caráter instrumental do Estado ao salientar, de forma um tanto quanto oblíqua, seu surgimento, aliás, seu ressurgimento na Alta Idade Média.

Foucault nos mostra que a acumulação de riquezas, o poder das armas e a constituição do poder judicial em mãos de poucos é um processo que se fortaleceu em decorrência do surgimento de alguns fenômenos, tais como a) os indivíduos passam a submeter-se a um poder externo a eles em seus litígios; b) surge a figura do procurador do rei permitindo que o poder político se apodere dos procedimentos judiciais; c) aparece a noção de infração enquanto ofensa ao Estado.

Por último, segundo suas próprias palavras, “Há por último, uma descoberta, uma invenção tão diabólica como a do procurador e a infração: o Estado, ou melhor, o soberano (já que não se pode falar de Estado nesta época)”.

                   Mas também é o que aponta Elias (2001:267), em “A Sociedade de Corte”. Nesta obra, em seu capítulo final, no qual analisa a sociogênese da Revolução, observa que somente é possível entender as causas da Revolução Francesa se prestarmos atenção aos deslocamentos do equilíbrio do poder que ocorreram na sociedade.

E salienta que, em determinado momento, “essa fase de transformação latente, subterrânea e totalmente gradual na distribuição social das chances de poder (...) dá lugar a uma outra fase em que a transformação das relações sociais se acelera e a luta pelo poder se intensifica”.

Como omitir, então, a instrumentalização de ideias por cada segmento envolvido no processo revolucionário, em sua luta pela hegemonia e a consequência que tal postura pode ter do ponto de vista do Direito?

                   Portanto, não é estranha ao pensamento filosófico a noção de que aqueles que detêm o Poder Político, em uma determinada circunstância histórica, concretizam esse Poder produzindo, interpretando e aplicando a norma jurídica, ou seja, instrumentalizando o Direito.

Assim a interpretação da norma jurídica é, consciente ou inconscientemente, uma ação política, seja esta legítima ou não.

                   Nesse sentido, o discurso do Poder Político cumpre uma função ideológica, e este é o âmago da questão: o idealismo ingênuo ou o realismo exacerbado (o positivismo jurídico) podem servir como aparato teórico de ocultamento do verdadeiro papel do Direito no processo social.

Miaille identifica esse epifenômeno ao apontar a função de “ocultação”, bem como a de “arma de combate” do direito natural (hoje Teoria Crítica do Direito, ou o que quer que seja...).

                   Com efeito, Miaille (1979:263ss) mostra que o direito racional do século XVIII, que se apresenta como ideal, eterno e universal oculta seu real desígnio no século XIX: “permitir a passagem a um outro tipo de economia e de relações políticas e sociais, sem dizer evidentemente a favor de quem se realiza esta passagem”.

E cita Engels: “Sabemos hoje que esse reino da razão não era mais que o reino idealizado da burguesia; que a justiça eterna encontrou sua realização na justiça burguesa; que a igualdade se reduzia à igualdade burguesa face à lei; que se proclamou como um dos direitos essenciais do homem... a propriedade burguesa; e que o Estado racional, o contrato social de Rousseau, não veio ao mundo e não pode vir ao mundo a não ser sob a forma de uma república democrática burguesa”.

Finaliza Miaille: “O direito racional da Revolução Francesa é o direito do homem egoísta, da sociedade burguesa fechada sobre os seus próprios interesses”.

                   Quanto ao discurso ideológico engendrado pelo Poder Político enquanto arma de combate, Miaille nos convida a “tirar uma conclusão sobre este ponto, lembrando a utilidade [grifo de Miaille] não negligenciável num combate político das noções herdadas do direito natural. Não <apesar de>, mas porque esta teoria é de natureza ideológica. É preciso saber reconhecer-lhe sua utilidade prática. Outra coisa é considerá-la como uma teoria científica, quer dizer, explicativa da realidade”.

                   Assim é que o Poder Político engendra os meios através dos quais justifica seu real propósito, qual seja o de manter-se e, quiçá, ampliar-se. Para tanto, usa ideologicamente, instrumentalmente, os aparatos teóricos à sua disposição. E concretiza (também) seu propósito de existência produzindo, interpretando e aplicando a norma jurídica.

 Não sendo um teorema, mas, sim, uma conjectura, mas tão possível quanto a crença de que o Direito é um dos meios através do qual o homem se adapta ao seu ambiente social, seria interessante considerar esse fato como um mecanismo adaptativo de sobrevivência.  



[1] DENNET, Daniel C.; “A Perigosa Ideia de Darwin”; Editora Rocco; Rio de Janeiro; 1ª edição; 1998; p. 151. Dennet especula, nessa obra acerca da possibilidade de, em tendo Darwin razão, e seu “espaço de projeto de seleção natural” correto, “todas as realizações da cultura humana – linguagem, arte, religião, ética, a própria ciência”, (serem) “artefatos (ou artefatos de artefatos...)”. É evidente o caráter metafísico de partes da teoria da evolução, mas, convém lembrar que, não menos ousada é a teoria que pretende apresentar o Direito como sistema autopoiético. Popper, por sua vez, depurando esses aspectos metafísicos aludidos, recupera Samuel Buttler e denomina instrumentos teóricos como a noção de Estado de “aparelhos exossomáticos”.

[2] “Alguma horda de bestas louras, uma raça senhorial conquistadora, com uma organização guerreira... lança suas patas aterradoras, pesadamente sobre uma população que lhe é, talvez, imensamente superior, em número...”

* Texto constante do "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon.