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"Sapere Aude"
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* Honório de Medeiros
"O Sertão está dentro da gente", disse João Guimarães Rosa.
Pode ser. Quem sou eu, para discordar. Mesmo assim, discordo.
O Sertão está dentro do sertanejo.
Que outro homem andaria em um carrasco igual a esse, cheio de pedras, mato ressequido, poeira, espaço de preás, mocós, punarés, lagartixas, cobras, urubus e cangaceiros, aqui e acolá um juazeiro, no pino do meio dia?
Nenhum.
Entretanto, quando chove, ah!, bom Deus, quando chove, qualquer vivente se encanta com a beleza que desponta em cada canto dessa terra maravilhosa.
Não que a beleza se esconda quando a seca surge.
É outro tipo de beleza, da qual somente se dá conta, com a melancolia que lhe é própria, o homem do Sertão.
Imagem: Honório de Medeiros
* Honório de Medeiros
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Contemplo a água, os biguás e os cisnes da Lagoa de Cerro. Como veem, estou satisfeito esperando o por do sol. Lucas e Zé de Maria me garantiram que os sinais de inverno são bons. Eu tinha procurado meu Lunário Perpétuo, para tirar dúvidas, mas não o encontrei. Fiquei mais tranquilo depois da conversa com os meninos da Pousada. O fura-barreira está construindo seu ninho em lugar alto; o mandacaru florou; as aroeiras estão cheia de cachos e a quentura do fim de outubro, tudo promete, me disseram eles. Falta consultar Genilson e o pessoal do Receptivo.Sábado vou lá, puxar o tema. Vamos ver. Daqui a pouco vou subir a encosta até a casa que Deus me permitiu construir com a frente para o nascente, e as costas para o poente. Ivanaldo, o faz-tudo, vai me por a par dos últimos acontecimentos. Vida que segue. Tomara que de noite faça frio e eu veja luzes se deslocando no céu, entre as estrelas ...
Cerro Corá, 31 de outubro de 2024.
“Sente aqui”, me disse Seu Antônio de Luzia,
segurando o braço de uma espreguiçadeira próxima a ele.
Era
cedo da manhã, umas seis horas, a bem dizer, mas a passarinhada já tomara conta
dos pés de caju no terreno em frente, do outro lado da rua de chão batido, no
Feijão, Sítio Canto, Serra da Conceição, Sertão do Norte de Baixo.
“Já
tomou café da manhã”? Respondi que sim, e agradeci.
“Traga uma caneca de café para o doutor, essa menina, sem açúcar. Foi coado
agora?”
A
neta, filha de João, fez carreira casa a dentro, largando o bordado com o qual
se divertia sentada no chão, escorada na parede.
Enquanto
a caneca não chegava às minhas mãos, cuidamos de pastorar os passantes que iam
no rumo da cidade, ou dela vinham, e olhávamos o vai e vem dos canários e
sabiás, sem dizer qualquer palavra.
Caneca
na mão, café fumegante, tapioca recusada, Seu Antônio virou-se para mim e me
perguntou: “Doutor, me responda uma coisa, o senhor que é um homem sabido,
estudado e viajado, vai haver uma guerra grande?”
Fiquei
surpreso. Conhecia Seu Antônio de muito tempo, e tínhamos uma amizade até certo
ponto estreita, nos limites bem claros da antiga cultura arcaica sertaneja.
Homem
calado, dado à introspecção, de pouca conversa, limitava-se, aqui e ali, a um
dito, ou pequena história, para pontear um assunto, nunca o tinha visto agir
dessa forma.
“Seu
Antônio, não sei dizer. O Senhor, mais que ninguém, sabe que somente Deus
conhece tudo, e eu sou um homem até certo ponto viajado, que já bateu algumas
capas de livro, é certo, mas quanto mais vivo, tenho por mim mesmo que menos
sei das coisas”.
“É,
eu esperava que o Senhor dissesse isso mesmo. Agora, veja o Senhor: se os
passarinhos estão voando baixo, as formigas assanhadas, se as pedras estão
suadas, o mandacaru florando, é arriscado chover. Não é que vai ser, é que pode
ser”.
Durante
um fragmento de tempo me lembrei dos escritos do maior dos filósofos do século
vinte, Karl Popper, que dizia o mesmo em sua epistemologia, para condenar o
determinismo. “Meu Deus do Céu”, suspirei para mim mesmo.
“É
verdade”, respondi. “O Senhor me pegou”. “Eu compreendo e admiro suas palavras,
que são de sabedoria”. “Está conforme”. “O que eu posso dizer para o Senhor,
sem medo de errar, é que eu nunca tinha visto um desmantelo tão grande quanto
este que está tomando conta do mundo. Pode ter tido, mas eu não dou conta”.
“É
como eu penso, Doutor. Parece o fim das eras. Pode não ser, mas é muita briga,
muito ódio”. “Já me conformei”. “Vivi muitos invernos e secas, passei fome e
hoje tenho umas coisinhas de nada, uns palmos de terra, andei légua tirana
muitas vezes, conheci o coração do homem na sua maldade e bondade, mas tempos
como estes, eu nunca vi”.
A
conversa prosseguiu por muito tempo. Alguns passantes paravam, tomavam um gole
de café mordendo um pedaço de rapadura, davam conta do que ocorria na cidade e
no campo, arriscavam uma estória ou outra, formava-se um círculo de pessoas que
se desfazia, depois outro, e mais outro, todos reverenciando Seu Antônio de
Luzia.
De
há muito as cadeiras tinham sido arrastadas para debaixo da cajaraneira
frondosa, ao lado da casa, espécie de salão de visitas a ser usado quando o sol
chegava forte.
Para
o fim da manhã, mormaço se instalando, Seu Antônio me intimou a entrarmos, para
pegarmos o feijão da comadre, misturado com arroz vermelho e um pouco de farofa
d’água temperada com cheiro verde e cebola, acompanhado por um guisado de
carneiro, e rebatido com um naco de rapadura e um copo d’água gelado, seguido
por um gole de café coado na hora.
“A
rede está armada”, disse Seu Antônio, e eu embioquei quarto a dentro, me deitei
alisando o lençol cheirando a flor de laranjeira, cobri os olhos, mergulhei em
um sono de meia hora, mais não podia ser, até sonhei que voava feito um
beija-flor, mundo afora, e via os homens, mulheres e crianças, em todos os
lugares, felizes, sem malquerença, mágoa ou tristeza em seus corações.
Deus há de nos proteger...
Imagem: Honório de Medeiros (Coimbra, 7 de dezembro de 2016)
* Honório de Medeiros
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Pedro deve ter uns dezenove anos. Magro, magérrimo, seu corpo ossudo sobra dentro da farda do supermercado. Há sinais claros de subnutrição. No rosto espinhudo um sorriso nervoso aparece e desaparece sem conexão com o que ele diz: sorri quando fala sério, fica sério quando parece brincar com a própria desdita.
Pedro está noivo: quer casar logo, mas não pode. Pergunto-lhe se estuda. “Não tenho tempo”, diz. “Pego aqui às oito da manhã e só largo lá pras oito da noite, e, aí, tenho que pegar ônibus pra Zona Norte, do outro lado de Natal, é quase hora e meia de viagem, chego cansado, só penso em dormir, nem a noiva eu vejo”.
“Está comprando as coisas para o casamento?”, pergunto. “Nada!” “A gente recebe um cartão do supermercado quando entra no trabalho e vai comprando, comprando, lá pra casa mesmo, pros meus pais, e no final do mês quase não recebe nada em dinheiro.” Faz uma pausa e continua: “mas minha noiva tá procurando emprego”.
“Ela estuda?”, continuo. “Terminou o segundo grau, mas não foi em frente por que tem que ajudar em casa.” Pedro segue arrumando as mercadorias nas sacolas enquanto conversa comigo. Diz para mim que folga uma vez por semana, “às vezes”, já que quase sempre aparece um trabalho extra na empresa. E afirma enfático, que vai voltar a estudar, “é só as coisas melhorarem.”
Pedro não sabe, mas sua turma tende a aumentar cada dia mais. A lógica do capital predatório é essa. E anda cada dia mais sofisticada: nos círculos íntimos do Poder o Estado é tratado como “business”. Os termos usados pelos gestores públicos pertencem ao mais fino dialeto econômico/financeiro: é “destino econômico” para cá, “benefícios fiscais” para lá, “mercado interno” ali, “agenda de desenvolvimento” acolá.
É preciso “vender” o Estado, dizem eles. É preciso “captar” investidores, entoam. Pura lógica do capital predatório que amealhando corações e mentes desprevenidos ou ávidos, induz sua entrega à tarefa menos árdua e mais prazerosa de semear facilidades, mão-de-obra barata e grata e outros mimos ao custo óbvio de almoços, jantares, e viagens, para os predadores de fora e os vendilhões de dentro, loucos para espoliar mais uma caterva de ingênuos sob a batuta firme, comprometida e alienada da administração pública, salvo as exceções de praxe.
Vão se multiplicar, leio na imprensa, graças às injunções dos sábios conselheiros da Corte ante os maestros da economia brasileira, as empresas, Brasil afora. Elas vêm aí com o ansiado desenvolvimento econômico: lépidas e fagueiras, sem pagarem impostos, sem darem qualquer contrapartida para o resgate do atraso social, “mas gerando riqueza e empregos”, tal é a propaganda infernal dos publicitários chapa-branca.
Riqueza para os ricos e empregos-farsas para os Pedros da vida, as Taís da vida – garçonete noite-e-dia em um “fast-food” desses que pululam por aí, a esconder rápido, um dia desses, suas lágrimas derramadas pelo filho recém-nascido e doente deixado em mãos estranhas enquanto o emprego é defendido com unhas e dentes; os Josés da vida – empregado de uma indústria “captada” no Sul maravilha, imposto “zero”, contribuição nenhuma, – quase um escravo, tal sua jornada de trabalho.
E tudo continuará como sempre foi, desde que o mundo é mundo, por que essa história se repete há muito tempo, desde que o primeiro espertalhão cercou um lote de terra e disse que “era dele”.
Quem duvidar da história de Pedro, Taís, José, procure a Justiça do Trabalho. Leia os processos. Delicie-se com a expropriação da força de trabalho da nossa classe média mais baixa. Com a história daqueles que sustentam este arcabouço todo do Estado, reproduzindo, cada vez mais sofisticadamente, o modelo de exclusão social no qual vivemos.
Projete, a partir daí, o futuro de nossa “juventude cinzenta”, aquela que se contrapõe à “juventude dourada” – os filhos das elites. E esqueça os excluídos: esses sequer constam corretamente nas nossas estatísticas governamentais, a não ser muito por cima, como quando imaginamos quanto a economia marginal (a dos “bicos”), aquela à margem do Governo, produz dia-a-dia.
Enquanto isso, enquanto o Estado é apenas um instrumento de opressão, consequência de um longo surto atrasado e colonial de um capitalismo ingênuo e predatório – Pedro, Taís, e José não sabem, mas a cada momento aumenta o custo social que eles têm que pagar para sobreviverem nesta selva de pedra: não há políticas públicas, não há projetos sociais, não há ações governamentais planejadas, não há governo, enfim.
Portanto a eles e a seus filhos estão destinadas escolas decrépitas e sem professores; postos de saúde sem médicos e sem remédios; bairros e ruas com postos policiais abandonados, viaturas policiais inapropriadas, quebradas e sem gasolina; e a imensa massa de servidores públicos trabalhando como se estivessem em pleno século XIX, para gerar espoliação da mão de obra barata.
E como os Pedros, Taíses e Josés vicejam na lama obscura da alienação, terminam achando que plano de saúde, escola particular, automóvel, lazer, cerca elétrica, carro blindado, segurança privada é, pela ordem natural das coisas, algo ao qual somente os ricos têm acesso.
Seguem em frente a venderem seu suor, seu sangue, sua vida, a preço vil.
Ah, Jesus…
IMAGEM: Honório de Medeiros
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Deslizo por sobre a superfície das coisas. Não sei nada, nada, de nada. O pouco que sei é inconsistente. Entretanto, enquanto me espanto com minha própria ignorância, fico perplexo com o conhecimento e poder dos outros. Há muita gente sabida mundo afora. Como sabem, eles! E eu, cá, tosco. Algumas pessoas, não muitas, trazem, esculpida no rosto, a tragédia de intuir, no outro, essa quimera da arrogância intelectual. Para elas, a quem foi dada a sensibilidade enquanto dom, a vida é apenas um lapso temporal. Entendem que não vale a pena qualquer tipo de arrogância e poder. E entendem, também, a solidão terrível dos que acham que sabem e podem e não percebem que por não saberem, verdadeiramente não podem...
É preciso muito pouco, às vezes, para sermos felizes.
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Imagine uma semente, o fruto de uma árvore que a gerou. Ela medra, se desenvolve, suas raízes mergulham no chão em busca de alimento, o tronco cresce, veem os galhos, ramos e folhas em busca do céu. Frutos virão. O ciclo continuará.
Assim é o conhecimento. Não começa do nada. Antes de qualquer ideia - a semente - outras propiciaram seu surgimento. Suas raízes são buscas de comprovações, no passado, que darão suporte à sua existência, mergulhando fundo no conhecimento anterior.
Seus galhos, ramos e folhas desenvolvem-se rumo ao infinito. Os frutos são colhidos por todos nós.
Os frutos do conhecimento vão se transformar em outras árvores, e não há limite para o tamanho da floresta.
Em cada um de nós há uma floresta. Se nos dermos as mãos, deixarmos de lado o que nos separa, dia haverá que seremos Um que são Todos.
Natal, "Ventos Uivantes", 27 de novembro de 2023.
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Alguns se comovem com criminosos aos quais a Justiça alcançou, alegando que "o meio" os fez assim. Esquecem que "o meio" também fez aqueles que superaram, à custa do próprio esforço, o chamado do mal. São com eles que devemos nos comover. Eles escolheram o caminho mais difícil e pouparam a nós, os inocentes, de sermos suas vítimas. Para eles, toda a minha admiração e homenagem. Na verdade, o mal é uma escolha.
Crises são portas que se abrem, às vezes de forma barulhenta. Movem o mundo e as pessoas. Tiram-nos do nosso conforto. Aguçam nosso corpo e mente. Precisamos, apenas, não sermos dominados. Ao contrário, devemos aprender com elas. Rever nossas prioridades. Às vezes tomarmos outros caminhos inesperados e desconhecidos. Lutarmos pela paz interior.
Na Rue de Lutèce, entre o Boulevard du Palais e a Rue de La Cité, em algum lugar conhecido por muitos poucos, o literário “La Mémoire de L'homme” cumpre sua missão de preservar histórias abandonadas pela humanidade.
Da mesma forma, por outro ângulo, na Barcelona gótica (Barri Gòtic), o “Cemitério dos Livros Esquecidos”, do qual nos deu conta Carlos Ruiz Zafón na bela tetralogia "A Sombra do Vento", arquiva, em seus infinitos desvãos, tudo quanto a loucura e a sanidade dos homens ousou escrever ao longo do tempo e terminou encaminhado às traças.
Também alberga essa missão a Biblioteca de Babel, descrita por Jorge Luis Borges em "Ficções", de 1944, que nos fala do mundo constituído por uma biblioteca sem fim, que abriga uma infinidade de livros possíveis e impossíveis, e que somente o gênio do argentino foi capaz de nos persuadir de que sua existência é fictícia.
São histórias abandonadas tais quais aquelas vividas pelo velho militar a quem deu tempo e voz Alain de Botton em "Nos Mínimos Detalhes": “Ele não tinha nenhum biógrafo para recolher suas palavras, para mapear seus movimentos, para organizar suas lembranças; ele estava vazando sua biografia para o interior de inúmeros receptores, que o ouviam por um momento, e então lhe davam uma pancadinha no ombro, e partiam para suas próprias vidas. A empatia dos outros era limitada às exigências do dia de trabalho, e assim ele morreu deixando fragmentos de si dispersos casualmente em meio a uma caixa de cartas esmaecidas, fotografias sem legenda reunidas em álbuns de família e histórias contadas a seus dois filhos e a um punhado de amigos que marcaram presença no funeral em cadeiras de rodas”.
É a vida, tal como é.
Biguás. Predadores. Agem em grupo. Dois vão à frente espanando a água e conduzindo os peixes para a beira do açude, e o restante faz a colheita. Em seguida esses dois vão à forra. Alternam-se entre eles. Expulsam seus competidores primeiro alertando-os com um grito rouco, que lembra o ronco dos porcos. Depois atacam em revoada. Cisnes, galinhas d'água, marrecos, ficam com as sobras. Quando os bárbaros invadiram os domínios do império romano, agiram da mesma forma, lá pelo século V depois de Cristo. Lembrei-me de Konstantino Kaváfis e seu belo poema: "À Espera dos Bárbaros". Hoje em dia, são os consórcios de poder que assim agem, seja qual seja a cor de suas bandeiras. São diferentes entre si, mas iguais nos propósitos. Sempre foi assim. Tal qual os Biguás, todos querem, mesmo, é tomar e manter o Poder.
Cerro Corá, 14 de fevereiro de 2024.
Étienne de La Boétie
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Subia eu a estradinha de barro do Sítio Feijão, na Serra do Camará, e ela vinha no sentido contrário, chutando a bola, pés descalços.
Era umas sete da manhã. Quando foi chegando perto, sorriu, um sorriso maravilhoso, feliz.
Eu parei, ela parou. Bom dia, bom dia. Vai jogar onde? Na casa de uma amiga. Sua casa é longe? Não. Já tomou café? Já. Lá tem para mim, eu tou com fome. Tem, vamos...
Ô meu Deus, meu coração ficou do tamanho de um rolimã...
Hoje, não. Você gosta de bolo? Gosto, bolo da moça.
Posso tirar uma foto sua? Pode.
Como é seu nome? Maria. Maria, sua casa é aquela, eu disse, apontando. É. Você tem bonecas? Só uma de pano. Pois até logo, eu já vou. Até.
E saiu correndo, chutando a bola, com aquela inocência maravilhosa dos puros de coração.
Nunca mais a vi.
Maria, onde está você? Estou lhe devendo um bolo e uma boneca...
Serra do Camará, muitos anos atrás.
"As palavras valem também para isso, dar alguma existência aos nossos delírios", disse Raduam Nassar em Cantigas d'amigos (Cadernos de Literatura Brasileira, Ariano Suassuna).
Ariano, entrevistado pelo "Cadernos", em certo momento lembrou: "não sou um escritor de muitos leitores; costumo dizer que sou um autor de poucos livros e poucos leitores -, (...) Mesmo que eu não publique, tem um círculo de leitores que sempre lê o que escrevo".
Retruca o "Cadernos": "Este é um circuito antimoderno, o circuito da comunidade interessada".
Qual uma confraria de amigos, na Idade Média, digo eu, onde foi iniciada essa tradição. Montaigne e Boétié, por exemplo.
Assim é, assim será o caráter dos tempos atuais e futuros, no qual a imagem evanescente e superficial é tudo, e as palavras, mesmo quando amalgamando belos e profundos textos, manjar para poucos.
A palavra é arte, arte fugidia, de domínio difícil e angustiante.
Relendo "O Crime do Padre Amaro" do imenso Eça, lá encontro essa ideia pela voz do seco Padre Notário:
- "Escutem, criaturas de Deus! Eu não quero dizer que a confissão seja uma brincadeira! Irra! Eu não sou um pedreiro-livre! O que eu quero dizer é que é um meio de persuasão, de saber o que será que passa, de dirigir o rebanho para aqui ou para ali... E quando é para o serviço de Deus, é uma arma. Aí está o que é - a absolvição é uma arma".
A palavra é uma arma.
Recordo-me que dizia para meus alunos de Filosofia do Direito ser a confissão um inteligente serviço secreto, à serviço da aristocracia, para a manutenção dos interesses da elite dominante, nos tempos medievais.
A palavra: arte ou instrumento. Às vezes ambos ao mesmo tempo.
Não somente a palavra escrita, mas também a falada, mesmo aquela que suscita nossos delírios: arma com a qual nos ferimos.
Natal, em 7 de março de 2015
Imagem por Honório de Medeiros, de poema anônimo, escrito em muro sacro.
SOU fascinado por artistas de rua. Quando os vejo, paro um pouco distanciado e tento absorver tudo quanto posso deles e de sua arte, na medida em que os encontro em minhas andanças.
Na Europa, eles são muitos. Há desde o acordeonista que toca "La Violetera", uma "habanera" de 1915, tantas vezes escutada na voz de minha mãe, até a quase adolescente que canta, à capela, uma doce canção de sua terra natal, a Itália.
Estou escrevendo acerca das ruas centrais de Bordeaux ou da famosa Place de La Bourse, o palco de encontro de todos, viajantes ou não, que por aqui moram ou andam.
Aproximei-me do acordeonista lamentando não dispor do poder do personagem de uma história em quadrinhos de minha adolescência, que podia ler a vida de qualquer pessoa bastando, para tanto, mergulhar em seus olhos, se o desejasse.
Como não podia nada pessoal lhe perguntar, aqui é ofensivo, tampouco possuía qualquer poder, depositei algumas moedas em sua caneca estendida sobre um pano vermelho que já vira muitas estações, olhei seu rosto cansado, mal cuidado, atribui-lhe uns bons setenta e poucos, e lhe perguntei se por um acaso do destino não saberia tocar "La Violetera".
Ele parou, pareceu buscar alguma lembrança obscura em suas memórias, deu-me um pequeno sorriso e titubeando, no início, mas com desenvoltura, a seguir, inclusive fazendo floreios, digamos assim, jazzísticos, tocou a música que eu lhe pedira como se estivesse no palco do Grande Teatro de Bordeaux sendo ouvido por todos quanto, ao longo de sua longa vida, em algum momento pararam para ouvi-lo e aplaudi-lo.
Bourdeaux, França, 29 de maio de 2018.
Barcelona, 26 de dezembro de 2014.
* Honório de Medeiros
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Antônio Gomes pousou a xícara de café no pires e me disse que "a arte de lavar louça pode ser mais complexa do que se imagina".
"Primeiro, porque a forma como a lavamos diz muito a nosso respeito; segundo, porque se analisarmos a lavagem, em si, nosso método, descobrimos meios mais eficientes de fazermos qualquer coisa que queiramos fazer".
Ele me confessou que lava sua louça escutando uma playlist de sinfonias previamente montada. "As mais bonitas, em minha humilde opinião".
Depois dessa conversa, nunca mais lavei a louça como antes. Fico olhando desconfiado para aquela pilha de pratos e panelas e me perguntando o que ela quer me ensinar...
D. Adélia Prado. Imagem: @jornalrascunho
* Honório de Medeiros
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Madame, beijo suas mãos e me sinto honrado em partilhar este nosso quintal com a senhora.
Muito obrigado pela leveza, simplicidade, pureza dos seus versos lindos.
É tão bom partilhar o mundo com quem se emociona com a sinfonia da chuva tamborilando no chão!
Assim como a senhora, "eu quero depois...eu quero o tempo inteiro" esse "viver de novo, a ressurreição", o pão compartilhado por todas as mãos.
Deus lhe abençoe.
Honório de Medeiros
honoriodemedeiros@gmail.com
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O Sertão é assim: uma secura medonha, nuvens poucas no céu, o mato ralo e seco, um sol de lascar o cocuruto, preás, mocós e cascaveis correndo nas lajes, um ou outro gavião pairando lá em cima, voando rasante, mas quando chega o por do sol, os sabiás e cabeças-vermelhas se recolhem, o rasga-mortalha se assanha, os juritis começam seu canto e os chocalhos do gado ecoam nos currais, vai chegando a hora da coalhada, então uma melancolia suave se espalha pela imensidão, o vivente se esquece de tudo e uma certeza chega forte: ali é seu lugar, seu chão, sua pátria...
Cerro Corá, Serra de Santana, Colina dos Flamboyants, 22 de junho de 2024. Longe, ouço a Novena de São João Batista, na voz do pároco. Logo mais, o leilão, tradição sertaneja antiga, seguido de um forró pé de serra legítimo, com sanfona, zabumba e triângulo, enquanto o Galego da Serra prepara, em sua imensa tina, para todos verem, o queijo de manteiga que lhe rendeu premiação na França. Uma mesa, imensa, comportará mugunzá, canjica, pamonha, bolo preto, bolo da moça, pé de moleque, dadinhos de tapioca com geléia de pimenta e assim por diante, tudo arte de Jane Silva, incomparável. Celebraremos a amizade, os afetos, os laços de família: é o que esperamos, tudo sob a proteção de São João, a quem invocamos a benção, proteção, e a abertura dos caminhos que queremos percorrer. Saudade de meus filhos, tão longes, e de minha irmã...
Honório de Medeiros
(honoriodemedeiros@gmail.com)
Seu Antônio de Luzia continua firme e forte no Sítio Canto, Serra da Conceição, como teima chamar sua Martins, onde nasceu, lá pelos idos de trinta para quarenta, ninguém sabe ao certo, e ele muda de assunto quando se toca no tema.