“Sente aqui”, me disse Seu Antônio de Luzia,
segurando o braço de uma espreguiçadeira próxima a ele.
Era
cedo da manhã, umas seis horas, a bem dizer, mas a passarinhada já tomara conta
dos pés de caju no terreno em frente, do outro lado da rua de chão batido, no
Feijão, Sítio Canto, Serra da Conceição, Sertão do Norte de Baixo.
“Já
tomou café da manhã”? Respondi que sim, e agradeci.
“Traga uma caneca de café para o doutor, essa menina, sem açúcar. Foi coado
agora?”
A
neta, filha de João, fez carreira casa a dentro, largando o bordado com o qual
se divertia sentada no chão, escorada na parede.
Enquanto
a caneca não chegava às minhas mãos, cuidamos de pastorar os passantes que iam
no rumo da cidade, ou dela vinham, e olhávamos o vai e vem dos canários e
sabiás, sem dizer qualquer palavra.
Caneca
na mão, café fumegante, tapioca recusada, Seu Antônio virou-se para mim e me
perguntou: “Doutor, me responda uma coisa, o senhor que é um homem sabido,
estudado e viajado, vai haver uma guerra grande?”
Fiquei
surpreso. Conhecia Seu Antônio de muito tempo, e tínhamos uma amizade até certo
ponto estreita, nos limites bem claros da antiga cultura arcaica sertaneja.
Homem
calado, dado à introspecção, de pouca conversa, limitava-se, aqui e ali, a um
dito, ou pequena história, para pontear um assunto, nunca o tinha visto agir
dessa forma.
“Seu
Antônio, não sei dizer. O Senhor, mais que ninguém, sabe que somente Deus
conhece tudo, e eu sou um homem até certo ponto viajado, que já bateu algumas
capas de livro, é certo, mas quanto mais vivo, tenho por mim mesmo que menos
sei das coisas”.
“É,
eu esperava que o Senhor dissesse isso mesmo. Agora, veja o Senhor: se os
passarinhos estão voando baixo, as formigas assanhadas, se as pedras estão
suadas, o mandacaru florando, é arriscado chover. Não é que vai ser, é que pode
ser”.
Durante
um fragmento de tempo me lembrei dos escritos do maior dos filósofos do século
vinte, Karl Popper, que dizia o mesmo em sua epistemologia, para condenar o
determinismo. “Meu Deus do Céu”, suspirei para mim mesmo.
“É
verdade”, respondi. “O Senhor me pegou”. “Eu compreendo e admiro suas palavras,
que são de sabedoria”. “Está conforme”. “O que eu posso dizer para o Senhor,
sem medo de errar, é que eu nunca tinha visto um desmantelo tão grande quanto
este que está tomando conta do mundo. Pode ter tido, mas eu não dou conta”.
“É
como eu penso, Doutor. Parece o fim das eras. Pode não ser, mas é muita briga,
muito ódio”. “Já me conformei”. “Vivi muitos invernos e secas, passei fome e
hoje tenho umas coisinhas de nada, uns palmos de terra, andei légua tirana
muitas vezes, conheci o coração do homem na sua maldade e bondade, mas tempos
como estes, eu nunca vi”.
A
conversa prosseguiu por muito tempo. Alguns passantes paravam, tomavam um gole
de café mordendo um pedaço de rapadura, davam conta do que ocorria na cidade e
no campo, arriscavam uma estória ou outra, formava-se um círculo de pessoas que
se desfazia, depois outro, e mais outro, todos reverenciando Seu Antônio de
Luzia.
De
há muito as cadeiras tinham sido arrastadas para debaixo da cajaraneira
frondosa, ao lado da casa, espécie de salão de visitas a ser usado quando o sol
chegava forte.
Para
o fim da manhã, mormaço se instalando, Seu Antônio me intimou a entrarmos, para
pegarmos o feijão da comadre, misturado com arroz vermelho e um pouco de farofa
d’água temperada com cheiro verde e cebola, acompanhado por um guisado de
carneiro, e rebatido com um naco de rapadura e um copo d’água gelado, seguido
por um gole de café coado na hora.
“A
rede está armada”, disse Seu Antônio, e eu embioquei quarto a dentro, me deitei
alisando o lençol cheirando a flor de laranjeira, cobri os olhos, mergulhei em
um sono de meia hora, mais não podia ser, até sonhei que voava feito um
beija-flor, mundo afora, e via os homens, mulheres e crianças, em todos os
lugares, felizes, sem malquerença, mágoa ou tristeza em seus corações.
Deus há de nos proteger...