Enrique Vila-Matas
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Revista "Cult" > Entrevista com Enrique Vila-Matas
O desaparecimento e a
busca da essência literária em Doutor Pasavento
Wilker Sousa
Quando da recente morte de J.D. Salinger (1919-2010), muito
se especulou acerca das razões que o levaram à sua longa reclusão na pequena
Cornish, em New Hampshire. Após a retumbante fama advinda da publicação de O
Apanhador no Campo de Centeio, Salinger deixou o frenesi nova-iorquino e optou
pela tranquilidade de sua casa de campo, onde viveu de 1953 até sua morte.
Escritores mais familiarizados com holofotes ou ainda aqueles que fazem da fama
o substrato de suas carreiras por certo veriam essa atitude como um verdadeiro
contrassenso. Em contrapartida, outros, como Samuel Beckett (1906-1989), o
suíço Robert Walser (1878-1956) e o espanhol Enrique Vila-Matas, julgariam
sábia a postura de Salinger. O primeiro, quando soube que ganhara o Nobel,
fugiu; Walser passou os últimos anos de sua vida em um manicômio, onde escreveu
microtextos, sem nunca publicá-los; e Vila-Matas faz do desaparecimento um dos
eixos centrais de sua obra.
Em “A Arte de Desaparecer”, conto presente em Suicídios
Exemplares (1991), o personagem Anatol pena ao ver publicado um dos romances
que guardara em seu baú. Seduzido pelas possíveis benesses da glória literária,
em contraposição ao tédio e ao anonimato de sua recém-chegada aposentadoria, o
“escritor secreto” permite que um editor publique suas obras. Contudo, logo é
tomado por arrependimento e foge, restando-lhe a conclusão de que “a obrigação
do autor é desaparecer”. O conto, acredita Vila-Matas, seria a origem do tema
em sua obra, assunto que desenvolveria com ainda mais força em Doutor
Pasavento, romance publicado em 2005 e que chega neste mês às livrarias brasileiras.
O livro é narrado por Andrés Pasavento, romancista que, após ser convidado a
dar uma palestra em Sevilha, decide desaparecer subitamente. Para tal,
converte-se no psiquiatra Doutor Pasavento, isola-se de seu universo habitual e
passa a escrever sobre sua ânsia de viver à margem. O resultado é uma narrativa
híbrida, cuja presença marcante do gênero ensaio e o diálogo com grandes nomes
do pensamento e da literatura revelam o uso não gratuito da notável erudição de
Vila-Matas. Na entrevista a seguir, concedida à CULT por e-mail, Vila-Matas
fala sobre o romance, os limites impostos pela linguagem, e explica por que a
glória do autor é o avesso da essência literária.
CULT – Por que o tema do desaparecimento é tão recorrente em
sua obra?
Enrique Vila-Matas – Na realidade, o verdadeiro escritor
deseja somente escrever; busca mais a solidão para escrever do que a aparição
em público. A aparição midiática do escritor é a antítese da essência de seu
ofício. Em Suicídios Exemplares há um conto que parece ser a origem dessa minha
dedicação ao tema da necessidade de desaparecer. É o conto “A Arte de
Desaparecer”, baseado, certamente, em uma história real, aquela do escritor
secreto Gesualdo Bufalino. Esse narrador siciliano escrevia sem a intenção de
publicar, mas foi descoberto por seu compatriota Leonardo Sciascia e convencido
por ele a publicar um romance que tinha guardado – um romance genial, e aí
começaram os problemas para o pobre Bufalino.
CULT – Ainda sobre o desaparecimento: a grande obra
literária tende a perpetuar-se e, inevitavelmente, também aquele que a
escreveu. Embora lutem o tempo todo para desaparecer, esse foi o principal
paradoxo vivido por escritores como Walser, Salinger e também o Doutor
Pasavento?
Vila-Matas – Serve para o Doutor Pasavento também. Mas, se é
certo que a obra e o escritor, como você disse, tendem a se perpetuar, também é
certo que no fim, através do tempo, a obra viajará irremedialmente sozinha na
imensidão. E um dia a obra morre, como morrem todas as coisas, como se extinguirão
o Sol e a Terra, o sistema solar e a galáxia, e a mais recôndita memória dos
homens.
CULT – Há uma
passagem no livro em que o narrador diz não escrever um romance. Em outro
momento, exalta Sterne por ter feito de Shandy antes um ensaio sobre a vida do
que propriamente um romance. Você acredita que o romance é um gênero em
extinção? A tendência é caminharmos para experiências híbridas, de modo que se
diluam cada vez mais as fronteiras entre os gêneros?
Vila-Matas – O romance não somente não desaparecerá como
ainda terá vida longa, embora adotando formas diferentes daquelas que
conhecemos hoje.
CULT – Beckett, que tanto lidou com os limites impostos pela
linguagem, desejava alcançar o essencial para um dia poder descartá-la,
desaparecer com ela. No que se refere à sua obra, você vive um impasse
semelhante?
Vila-Matas – A essência da literatura são o silêncio e o
desaparecimento? Beckett dizia que era preciso seguir escrevendo, mesmo que
tudo já estivesse dito. Creio que faço algo parecido. Sou consciente de que
toda a literatura moderna nasceu quando Montaigne confessou, no começo de seus
Ensaios, que escrevia com a intenção de conhecer-se a si mesmo. Hoje já sabemos
perfeitamente que tipo de consequências isso trouxe. Não muito depois de começarmos
a “buscar a nós mesmos” na literatura, começaram a se desenvolver uma lenta mas
progressiva desconfiança nas possibilidades da linguagem e o temor de que ela
nos arraste a zonas de profunda perplexidade. É dentro dessa busca e
perplexidade que eu escrevo todos os dias. Para levar a cabo essa busca,
necessito me isolar, escrever, desaparecer em meu local de trabalho.
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