sexta-feira, 13 de junho de 2025

12. A INSTRUMENTALIZAÇÃO POLÍTICA DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL


 


12CONCLUSÃO. BIBLIOGRAFIA.

 

“Não subsistiria se não a fecundasse o adubo dos interesses, que se aproveitam da armadura espiritual, conservando-a por fora e dilacerando-a por dentro.” (FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder)

 

                   Assim, a interpretação jurídica, sobremodo a constitucional, a partir dos paradigmas, das normas de conteúdo difuso, e até mesmo do uso das técnicas apropriadas, como lembra Norberto Bobbio (2000:220) citando HansKelsen, pode ser, de fato é instrumento de e do Poder Político.

Pois o ordenamento jurídico, esse aparato teórico proteiforme, de contornos indefinidos e conteúdo ambíguo no espaço e no tempo, essa massa moldada pela estrutura de Poder Político atuante em cada momento histórico específico da qual fazem parte os operadores do Direito, sempre existiu, antes mesmo do surgimento do Estado, como o demonstra o que há de mais recente no estudo da instauração do princípio da hierarquia, a partir da Psicologia Evolutiva. 

                  Então a interpretação jurídica, em última instância, pode e deve ser entendida enquanto Vontade Política – os que detêm o Poder Político optam por esse ou aquele, um ou outro caminho, a partir de interesses remotos ou imediatos. 

                   Por fim, não é verdadeiro que a lei em si diga o que é certo ou errado – esta é uma armadilha que resulta do emprego político de aparatos teóricos frágeis: ela é instrumento dos seus intérpretes.[2] 

                    Tampouco a realidade permite, como a ciência o demonstra: ela não nos diz, nós é que lhe atribuímos a nossa Moral.

                    Pode-se comprovar empiricamente (trata-se de uma hipótese resistente à ação do tempo) que a Vontade Política permeia o discurso interpretativo – isso é um fato de natureza sócio-política habilmente dissimulado pelos detentores do Poder Político.

                     É nesse sentido que é útil perceber o caráter instrumental do Direito: para, entre outras coisas, não ser refém das armadilhas retóricas produzidas a partir de aparatos teóricos frágeis, rompendo com uma conquista que remonta à Grécia – o respeito à lei – e aceitando um modelo de produção, interpretação e aplicação do ordenamento jurídico por meio do qual os detentores do Poder Político, ou mesmo aqueles que os combatem, tentam impor seus interesses pessoais ou de grupo. 

                   Esse respeito à lei pode e deve ter uma conotação moderna, do ponto de vista lógico: trata-se de não aceitar a possibilidade de raciocínios jurídicos fundados em fontes outras que não a própria Norma Jurídica, bem como não aceitar interpretações calcadas em delírios argumentativos, o mais das vezes agasalhados em normas de conteúdo difuso que, por sua amplitude de incidência, se presta a qualquer papel.

                  Não é possível aceitarmos teorias que defendam a possibilidade da Norma Jurídica ser extraída do meio ambiente social; tampouco podemos aceitar teorias fulcradas nos pseudoditames da Razão enquanto verdade auto-evidente. 

                        Devemos acatar, isso sim, o primado da Norma Jurídica enquanto premissa inicial do raciocínio jurídico, entre outros motivos, se não o for pela argumentação acima desenvolvida, pelo respeito à vontade do povo que, para construir o ordenamento jurídico que a contém, se expressou através dos seus representantes legítimos e legais. 

Possibilidade de ir além dos limites estabelecidos pela Norma positivada os há, contanto que se permaneça dentro das fronteiras do ordenamento jurídico estabelecidas  legalmente – como, aliás, tão elegantemente propôs Hans Kelsen. 


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 

 

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CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 

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________ O que é Justiça. 3ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2001. 

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________ A Sociedade Aberta e seus Inimigos. 1ª ed., Belo Horizonte/São Paulo:.

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________ Autobiografia Intelectual.1ªed., São Paulo: Cultrix/Edusp, 1977. 

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________ O Realismo e o Objectivo da Ciência. 1ª ed., Lisboa, Portugal: Publicações Dom Quixote, 1987. 

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POULANTZAS, Nicos. O Estado, o Poder, o Socialismo. 4ª ed., São Paulo: Editora Graal,. 

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SARAIVA, Paulo Lopo: Influência da Ciência Jurídica na Decisão Judicial. separata da Revista Vox Legis; Vol. 139; Julho de 1980. 

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VATTIMO, Gianni. A Tentação do Realismo. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lacerda Editores. 2001. 

VIEITO; Aurélio Agostinho V. Da Hermenêutica Constitucional.1ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2000. 



[1] “A magistratura constitui-se numa verdadeira elite, participando decisivamente do comando político nacional e exercitando um forte poder no contexto social” (SARAIVA, Paulo Lopo; “Influência da Ciência Jurídica na Decisão Judicial”; separata da Revista Vox Legis; Sugestões Literárias; Vox Legis; Vol. 139; Julho de 1980; p. 46

[2] Na Folha de São Paulo de 4 de Janeiro de 2002, Mouna Naim, articulista do “Le Monde”, conta-nos que três sauditas acusados de homossexualismo foram decapitados e o Ministério da Informação “disse que o País considerava a penal capital o meio mais eficaz de salvaguardar o direito humano mais elementar: o direito à vida”.

Texto constante do livro "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon e estantevirtual.com.br

quinta-feira, 12 de junho de 2025

11. SINTOMAS DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA CONSTITUCIONAL ENQUANTO INTRUMENTO DO PODER POLÍTICO


* Honório de Medeiros  

“A visão superficial sempre esconde o verdadeiro sentido da atividade jurisdicional, que é mais profunda do que se possa imaginar e que apresenta um ‘substratum’ caracterizadamente político-ideológico.”

Paulo Lopo Saraiva, (em“Influência da Ciência Jurídica na Decisão Judicial”)

 

11.1 A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL 

                   É a partir dessas premissas que se deve entender o fenômeno da mutação constitucional, qual seja a alteração do sentido da norma constitucional vigente, enquanto reflexo da estrutura de Poder Político, em determinada circunstância histórica.

                    Será ela, a mutação, concorde com as aspirações populares ou os interesses da elite dependendo exclusivamente da estrutura de Poder Político vigente espaciotemporalmente. 

Bugos (1997:54ss) nos diz o que seja “mutação constitucional”: 

“Poderíamos citar ainda Haug, Franz Klein, Häberle, Fiedler, Maunz-Dürig-Herzog, H. Krüger, Heydte, Peter Lerche, Tomuschat, Scheuner, Rudolf Smend, Bilfinger, Hennis, Friedrich Müller, que, igualmente a Hans Kelsen, compreendem a mutação constitucional como a aplicação de normas que se modificam lenta e imperceptivelmente. Isso ocorre quando às palavras, que permanecem imodificadas do Texto Maior, se lhes outorga ou sentido distinto do originário, ou quando se produz uma prática em contradição com o texto, não sendo um acontecimento peculiar e único na órbita das normas constitucionais, senão um fenômeno constatado em todos os âmbitos do direito”. 

                   O mesmo autor assim se manifesta quanto à doutrina da construction em relação ao Supremo Tribunal Federal:

“A análise das decisões do colendo Supremo Tribunal Federal demonstra a presença do construcionismo judiciário, permitindo-lhe desprender-se do rígido formalismo legal, possibilitando a existência de amplos debates sobre problemas constitucionais,  tal a messe de decisões repetidas na aplicação de certas teses. O acórdão a seguir elucida a questão, qual seja o do pedido de Intervenção Federal n. 14, de 1951, e o da Reclamação n. 315, de 1953, de que foi Relator o Ministro Edmundo Macedo Ludolf, quando lembrou ao plenário a ‘prerrogativa que competia ao STF de construir o próprio direito, em dadas circunstâncias de premência e necessidade, em ordem a suprir as deficiências ou imperfeições da legislação’ (DJ, 28 nov. 1951, p. 4528-9). O Ministro Edgard Costa também enfatizou que ‘o STF, ao modo da Corte Suprema norte-americana, desempenha não o papel de um simples tribunal de justiça, mas o de uma constituinte permanente, porque os seus deveres são políticos, no mais alto sentido da palavra, tanto quanto judiciais’”. 

              Teria mudado, ao longo do tempo, a posição do STF quanto ao entendimento de que seus deveres são políticos, sua competência a de construir o próprio direito para além da expressa vontade do povo, manifestada através das leis que seus representantes votaram e aprovaram? 

                    Parece que não, haja vista, por exemplo, sua manifestação em relação à “MP do Apagão”: conforme ficou claro, o STF decidiu não decidir, a pedido do Governo, para impedir a discussão jurídica, através de sua manifestação em uma Ação Direta de Declaração de Constitucionalidade por ele promovida.[1] 

                   Outro exemplo patente é a questão do chamado “teto dúplex” que, em 1993, foi condenado pelo Ministro Carlos Velloso, como nos lembra o artigo de Marcos Sá Corrêa, publicado na revista Época, de 20 de março de 1999: “Julgava-se o recurso de um pequeno funcionário contra a Secretaria da Fazenda de São Paulo. Policial aposentado, ele voltara à folha do Estado como professor universitário. Foi demitido por acumulação indébita e levou o caso à Justiça. Vencera em várias instâncias até ser barrado por Velloso em 25 páginas de sólidos argumentos”. 

Hoje, sabemos, o entendimento do STF é totalmente diferente.                           

         Nada, porém, demonstra, com maior clareza, a possibilidade de a interpretação jurídica atender reclamos do Poder Político quanto a teoria da interpretação evolutiva.

                    Segundo Barroso (1998: 137):

 “A interpretação evolutiva é um processo informal de reforma do texto da Constituição. Consiste ela na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente do constituinte.” 

 Mais à frente:

 “Na América Latina, como lembra Anna Candida da Cunha Ferraz, e inclusive no Brasil, uma longa tradição autoritária mantém a interpretação constitucional evolutiva, através do Poder Judiciário, em limites extremamente contidos. De fato, a história do continente é estigmatizada pela hipertrofia do Executivo, pela quebra das garantias da magistratura, por reformas constitucionais casuísticas e pela instabilidade constitucional constante. Aliás, em lugar de evolução, freqüentemente o que se verifica é uma deformação, onde a interpretação constitucional judicial convalida os abusos autoritária”. 

 Barroso lembra que essas mutações constitucionais são possíveis graças ao elevado teor de indeterminação de normas constitucionais. 

11.2 A POSSIBILIDADE DA DECISÃO CONTRA A LEI 

                   Nada caracteriza tanto a possibilidade assumida de decisão contra a lei que o chamado “Direito Alternativo”, surgido na esteira criada pela chamada “Teoria Crítica do Direito”.

        Ele condena a identificação entre Direito e Lei e, mais ainda, critica asperamente a concepção estatal daquele, apontando fontes outras para o fenômeno jurídico, qual seja, o dos presídios e zonas comandadas por traficantes, este sendo o caso da Colômbia.

                Trata-se,  conforme já mencionado, da crença no pluralismo jurídico. 

                 Essa possibilidade de decisão contra a lei que for considerada injusta não é moderna do ponto de vista teórico.

                Quem não se recorda do bom Juiz Magnaud que, de 1889 a 1904, presidiu o Tribunal de Primeira Instância de Château-Thierry, e não se preocupava com a lei, doutrina, sequer a jurisprudência? Ou da “Escola do Direito Livre”? Ou mesmo da “lógica do razoável”, de Recazéns Siches?

                     Entretanto, a fonte dessa teoria é Eugen Ehrlich e “Fundamentos da Sociologia do Direito”, de sua autoria. Nessa obra ele convoca:[2] “A Sociologia do Direito deve começar pela pesquisa do direito vivo. Ela deve dirigir-se, primeiramente, ao concreto e não ao abstrato. Somente o concreto deve ser observado.”

         E, assim, cai na armadilha preparada pelo empirismo empedernido, já denunciado em capítulos anteriores, quando se fez a crítica da lógica indutiva. 

                   O que é esse “Pluralismo Jurídico”? A idéia de pluralismo jurídico é decorrente da crença na existência de dois ou mais sistemas jurídicos, dotados de eficácia, concomitantemente em um mesmo ambiente espaciotemporal. 

Assim é que, por exemplo, em sua Introdução Histórica ao Direito, Gilissen (1988:34) observa:

“nos países coloniais, nos fins do século XIX e até os meados do século XX, existiam geralmente dois sistemas jurídicos, um do tipo europeu (common law nas colônias inglesas e americanas, direito romanista nas outras colônias) para os não indígenas e, por vezes, para os indígenas evoluídos, e outro do tipo arcaico para as populações autóctones (...) No fim do período colonial (1960-1975) Portugal tinha feito das suas colônias africanas províncias e tinha tentado integrar os diversos sistemas jurídicos. Mas, apesar destes esforços, o pluralismo jurídico está longe de ter desaparecido de fato”. 

                   Coelho (1979:115), citando Goffredo Telles Jr., vai um pouco mais além: “A esta concepção que admite a coexistência de várias ordenações se denomina pluralismo jurídico, e opõe-se ao monismo, teoria que aceita a ordenação do Estado como a maior expressão da normatividade jurídica.” 

Quais as conclusões possíveis a respeito da  coexistência de mais de um sistema jurídico em um mesmo ambiente espaciotemporal? Uma delas, e talvez a mais intrigante, é a conjectura elaborada pelos teóricos do denominado “movimento sociológico do Direito” quanto à possibilidade de tal fenômeno ser uma prova inconteste de que existe um direito da sociedade  extra-estatal. 

Decorre essa conjectura de uma adequação do pensamento de Eugen Ehrlich, principal teórico da Escola do Direito Livre, autor de “Contribuição para a Teoria das Fontes do Direito”; “Sociologia do Direito”; e “Lógica Jurídica”, aos tempos modernos.

Com efeito, dada a impossibilidade de coexistência de dois sistemas jurídicos de natureza positiva, ou seja, cujas leis sejam originadas do Estado, somente é verossímil a hipótese defendida pela Escola de Sociologia Jurídica, cuja origem remonta a Savigny e que recebeu sua primeira sistematização com Eugen Erhlich, com fulcro na idéia de pluralismo jurídico. 

Embora, a respeito do pluralismo jurídico, haja quase um consenso quanto a significar ele a coexistência de sistemas jurídicos distintos em um mesmo ambiente geográfico-temporal, as divergências surgem quando se utiliza esse conceito, verossímil para expressar a apreensão fenomênica de determinadas situações específicas, como aquelas descritas por Gilissen, para suscitar a teoria da existência de normas jurídicas não estatais. 

Exemplo patente do primeiro caso é aquele vivido por países colonizadores em suas colônias, bem como outros que tenham passado por experiências revolucionárias onde a antiga ordem conviveu durante algum tempo com a nova. 

Também é o caso de países como o México e a Colômbia, onde o Estado admitiu a existência de um determinado ambiente espaciotemporal em que o sistema jurídico vigente não é o por ele imposto. Países como Portugal, que teve colônias na África, Inglaterra, e a Índia, por exemplo, jamais conseguiram tornar seus sistemas jurídicos hegemônicos: os dois conviviam, de forma complexa, com os sistemas jurídicos nativos. 

                   Quanto ao segundo caso, aceita-se que as normas de conduta estabelecidas pelos presidiários no interior dos presídios, assim como aquelas existentes nas favelas, expressões do que Ehrlich entenderia como ordenações jurídicas internas e autônomas, também seriam um sistema jurídico. 

                   Para aqueles que defendem caracterizar esse ordenamento tácito e não escrito vigente em presídios e favelas um “Direito”, tal concepção fulcra uma perspectiva ontológica: uma vez que há diversos direitos, aquele que com eles trabalha não pode se restringir ao uso de somente um no seu mister de concretizar a Justiça.

                    Ou seja, seria possível uma decisão contra a lei, mas a favor do Direito. 

                   Em síntese, esses juristas crêem haver Direito resultante de fontes distintas do Estado.

                       Melhor, acreditam que há, além da norma positivada ou não (modelo inglês), mas existente, vigente e eficaz em decorrência da aceitação estatal, alguma outra, pelo Estado não reconhecida, mas dotada de eficácia e validade jurídica no “habitat” onde surgiu e apta, portanto, a desempenhar o papel necessário para a concretização da idéia de Justiça que se pretenda obter. 

                   Por outra: as normas jurídicas positivas estão sempre a reboque dos fatos originando-se, em decorrência, em situações específicas, descompasso entre a lei e a Justiça. A decisão judicial, no afã de realizar a Justiça, tanto poderia valer-se da norma estatal como daquela que é “achada nas ruas”, “alternativa”, “insurgente”, ou “conforme o espírito do povo”. 

                   Bobbio (1996:177) apreendeu, com notável perspicácia, o âmago da fragilidade dessa crença.

                    Com efeito, do ponto de vista epistemológico, a construção teórica da escola sociológica do Direito somente é possível se o sujeito cognoscente pudesse apreender integralmente o objeto cognoscível (a coisa-em-si) com o qual  se depara em seu intuito de desvendar a realidade.

             Trata-se da crença na possibilidade de ser possível apreender a essência, o âmago da “coisa” e dele extrair normas de conduta.

            Essa crença é antiga conhecida dos filósofos, oriunda de uma tradição que remonta a Platão e sua gnosiologia exposta no “Teeteto”, que nos remete a uma teoria das formas e das idéias, que ao longo dos anos adquiriu diversos nomes, dentre os quais, em direito, “natureza das coisas”, palavras com as quais Montesquieu inicia o seu “Espírito das Leis”.

            Montesquieu ressalta:

 “A nosso ver, a noção de natureza das coisas é negada por aquela que, em filosofia moral, é chamada de ‘falácia naturalista’, isto é, pela convicção ilusória de poder extrair da constatação de uma certa realidade (o que é um juízo de fato) uma regra de conduta (que implica em um juízo de valor). O sofisma da doutrina da natureza das coisas, como do jusnaturalismo, é pretender extrair um juízo de valor de um juízo de fato.” 

A filosofia de ciência, principalmente, tem se revelado bastante mais avançada em tratar essa questão da relação entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível que qualquer outro ramo do conhecimento. 

                   Assim é que, por exemplo, tanto Popper (1978:14), quanto Bachelard (1977:33), filósofos, cada um a seu tempo e a seu modo, mostraram que o vetor do conhecimento é, em última escala, dirigido do Racional para o Real. E, também, físicos, como Heisenberg.( 1996:12) 

                   Se assim o é, argumentos como aqueles utilizados por Miaille,(1979:281) que observa: “os juristas (da Escola Sociológica) quiseram encontrar o direito nos fatos sociais, como um geólogo encontra minerais na Terra” ou, mesmo por Larenz (1989:78), ao afirmar que Ehrlich se equivocou ao tratar da dogmática jurídica, corroboram, no universo do Direito, o quanto está filosoficamente equivocado, em suas premissas, esse retorno a um certo tipo de idealismo que permite, metodologicamente, ao intérprete e aplicador da norma, pautar-se por um suposto sistema jurídico extra-estatal para materializar uma sua concepção de Justiça.

                     Puro personalismo.

Na realidade, a teoria que extrai do pluralismo jurídico uma comprovação da possibilidade de existência de normas jurídicas extra-estatais, e propõe a existência dessas normas jurídicas em favelas e presídios, não somente extrapola a ciência, mas presta um desserviço à democracia.

Ao atribuir à realidade imediata um papel que ela não possui, de indutora de regras universais jurídicas, o intérprete e aplicador do “Direito” se autonomeia capaz de interpretá-la subjetivamente. 

Crê-se ungido em um papel de demiurgo. Mas, ao final, nada está fazendo além do que, por seu próprio intermédio, reproduzir, como aparelho do Estado, como integrante da superestrutura ideológica, o capital simbólico da elite à qual pertence. 

                   Por que, no final das contas, ao agir contra o Estado, na medida em que desrespeita o princípio da legalidade, origina uma cultura de desprezo à lei. E esse desprezo à lei, ao ordenamento jurídico, ao Estado, é um filme já conhecido desde há muito. 

                   Observemos que um dos fulcros em defesa do argumento do Poder Político é o interesse coletivo, do qual esse Poder se diz representante, embora as normas que amparem as garantias fundamentais sejam sempre as mesmas.

                Aliás, quando a elite cai na armadilha que a realidade lhe impõe e esbarra no limite estatuído de forma objetiva pela norma, recorre, sempre, a uma norma que lhe seja hierarquicamente superior e de conteúdo, portanto, muito mais indeterminado, cuja interpretação permitirá sua escapatória, uma vez que os limites para o subjetivismo foram notavelmente ampliados. 

Perelman  (1998:67) denunciou essa prática em sua “Lógica Jurídica”: 

 “Finalmente, os casos mais flagrantes são aqueles em que intérpretes, desejando evitar a aplicação da lei, em dada espécie, restringem-lhe o alcance introduzindo um princípio geral que a limita e criam assim uma lacuna contra legem, que vai de encontro às disposições expressas de lei”. 

Enfim e ao cabo, esta prática é sempre uma possibilidade do Poder Político.


[1] Veja-se, a respeito, artigo de Dalmo de Abreu Dallari na Folha de São Paulo de Domingo, 15 de julho de 2001, cujo título é “Suprema Indecisão”.

[2] Ver SOUTO e FALCÃO; Cláudio e Joaquim; “Sociologia e Direito”; Editora Pioneira; São Paulo; 2ª edição; 1999; p. 113.


Texto constante do livro "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon e estantevirtual.com.br

quarta-feira, 11 de junho de 2025

10. A INTERPRETAÇÃO JURÍDICA CONSTITUCIONAL ENQUANTO INTRUMENTO DE E DO PODER POLÍTICO.

 


* Honório de Medeiros 

                   Lembra Losano (1979:64) que “o uso do termo <interpretação> no âmbito do direito constitucional é quase um abuso: aqui, mais do que noutros campos do direito, é evidente quanto o poder verga o direito às suas próprias exigências”. 

                   Não por outra razão, revelam-se de caráter mais nitidamente político as variadas teorias construídas ao longo do tempo em relação à interpretação jurídica constitucional. Veja-se, por exemplo, a discussão acerca da interpretação constitucional nos Estados Unidos, envolvendo a Suprema Corte. 

                   Com efeito, Bonavides (1994:433 ss), após observar que “a reflexão interpretativa que resultou na doutrina americana dos poderes implícitos está, do ponto de vista ideológico, inteiramente vazada na concepção do Estado liberal (...)”, explica que esta (a doutrina) encobre, de melhor forma, seu compromisso com a ideologia burguesa, graças a sua “racionalidade aparentemente mais pura”, sendo, portanto, aquela “que exige mais penetração e acuidade para descermos às suas ocultas e verdadeiras nascentes, ou seja, para localizarmos a tábua de valores que a exprimiu e legitimou numa precisa ocasião histórica”, o que lhe permite “com a máxima eficácia, se constituir num instrumento interpretativo de toda Constituição, NÃO IMPORTA O CONTEÚDO MATERIAL NEM AS PREMISSAS TEÓRICAS FUNDAMENTAIS SOBRE AS QUAIS REPOUSE” [grifo original]. 

                   Barroso (1998:108) descreve a questão:

 “Após dois períodos sucessivos em que a Suprema Corte apresentou um perfil nitidamente progressista, afirmativo de novos direitos e de proteção das minorias, articulou-se um amplo movimento de reação conservadora. Cognominado de ‘originalismo’, funda-se ele na tese de que o papel do intérprete na Constituição é buscar a intenção original (the original intent) dos elaboradores da Carta, abstendo-se de impor suas próprias crenças e preferências”. 

Mais à frente:

“A crença originalista de que não é possível atingir um mínimo de objetividade na interpretação constitucional – que ficaria, pois, sujeita a meras preferências subjetivas – tem sido questionada com veemência, tanto no debate acadêmico como na prática política”. 

                   Daí porque Bonavides (OAC:11) não oculta aquilo que exsuda da teoria acerca das teorias interpretativas constitucionais:

“A chave da inteligência dos textos constitucionais está pois em eleger um método volvido para a análise de toda a realidade circunjacente ao exercício do poder, a qual determina, em cada época e a cada passo, o sentido e a natureza das regras inscritas no código supremo”. 

                   Nesse mesmo sentido, Vieito (2000:91) diz:

“Toda Constituição abraça uma ideologia, que determinará toda a sua estrutura normativa. Cabe ao intérprete se ater à fórmula política adotada pela Constituição, sob pena de violar seu espírito. A fórmula política é o fio condutor do intérprete”. 

                   Perelman (1998:29) pensa da mesma forma:

“Desde a instauração, em 1790, da obrigação de motivar as decisões judiciais, é na motivação dos tribunais que encontraremos as melhores mostras de lógica jurídica. Esta é orientada pela ideologia que guia a atividade dos juizes, pela forma como eles concebem seu papel e sua missão, pela concepção deles do direito e pelas relações com o poder legislativo”. 

                   Também Bonavides (1994:110):

“Assim, a título explicativo, faz-se mister assinalar, como excelentemente ponderou Leibholz, que alguns direitos fundamentais disciplinados em outros sistemas constitucionais de forma absolutamente idêntica, vazados nas mesmas palavras, recebem contudo interpretação de todo distinta, em razão unicamente da distinta realidade política que refletem.” 

         Ainda, um pouco adiante, refletindo obliquamente acerca da inerência política (enquanto Poder Político) alusiva à interpretação constitucional, complementa Bonavides:

 “Observa-se por outra parte que a moderna interpretação facilita o comportamento autoritário dos poderes governantes, que comodamente se divorciam, por essa via evasiva, da rigidez dos cânones constitucionais. Muitos têm visto na hermenêutica dos tribunais que se valem desses métodos, uma volta pura e simples a uma interpretação subjetivista, aquela preferida pelos sistemas autoritários ou das formas políticas que emergem de um espasmo revolucionário e fazem do novo direito a base constitutiva do ordenamento social reformado, com assento numa Constituição que lhe serve apenas de respaldo formal”. (OAC:442) 

                   É uma confissão que permite as duas constatações: as teorias interpretativas da norma jurídica, bem como as interpretações, notadamente as constitucionais, são reflexos do exercício do Poder Político; uma teoria acerca dessas teorias apresenta a relação entre Poder Político e Direito.

* Texto constante do livro "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon e estantevirtual.com.br

domingo, 8 de junho de 2025

9. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA JURÍDICA ENQUANTO INSTRUMENTO DO PODER POLÍTICO

 


  

* Honório de Medeiros


Em um sentido mais amplo, o Poder Político sempre determinará a validade e eficácia do próprio ordenamento jurídico, naquilo que ele tem de mais essencial.[1]

Disse-o Foucault (2001:153), de forma tangencial em “Vigiar e Punir”, quando apontou a regulamentação, juntamente com a vigilância, como um dos grandes instrumentos do Poder Político no fim da era clássica.

Tema que ele retoma, com mais profundidade, em “A Vontade de Saber”.

Disse-o, também, incisivamente, embora apontando outras causas e, quiçá, outras consequências, Poulantzas.(2000: 74ss.)

Aliás, em “O Estado, o Poder, o Socialismo”, ele demonstrou, de forma clara, suas divergências de natureza teórica com Deleuze, mas, principalmente, com Foucault, a quem acusou de constante negligência quanto ao papel da lei na organização do Poder Político.

Entretanto, convergem quanto ao que importa em relação aos limites deste trabalho. Neste sentido, Poulantzas foi mais enfático em apontar o papel da norma jurídica, do ordenamento jurídico enquanto instrumento do Poder Político.

Assim é que, por exemplo, nos mostrou a aparente contradição entre a lei (e, segundo ele, não cabe estabelecer distinções entre lei e Direito, neste caso), que, só tardiamente, no Estado capitalista, forma uma barreira contra uma certa forma de exercício da violência e seu caráter intrinsecamente repressivo no exercício do Poder Político.

Mais importante ainda, em relação a esse caráter instrumental, apontou a estrutura básica de toda forma estatal, qual seja sua edificação enquanto organização jurídica desde o direito assírio ou babilônio até, por exemplo, a constituição stalinista de 1937 apontada, na época, como uma das mais democráticas do mundo, salientando:

“esta visão (a do Direito como barreira a uma certa forma de violência) corresponde à concepção jurídico-legalista do Estado, a da filosofia política do Estado burguês estabelecido, contra a qual levantam-se Marx e Max Weber, e que não passou despercebida pelos teóricos da gestação sangrenta do Estado, Maquiavel e Hobbes”. (OAC:74)

Se Foucault diz que o exercício do Poder Político nas sociedades modernas baseia-se muito menos na violência-repressão aberta do que nos mecanismos mais sutis e considerados “heterogêneos” à violência das disciplinas, e, nesse sentido, faz coro, embora jamais tenham trabalhado juntos, com Marcuse e Pierre Boudieu, principalmente este e seu conceito de violência simbólica, Poulantzas é enfático: ele considera que a lei é parte integrante da ordem repressiva e da organização da violência exercida pelo Estado.

Ainda para ele, o Estado edita a regra, pronuncia a lei e, por aí, instaura um primeiro campo de injunções, de interditos, de censura, assim criando o terreno para a aplicação e o objeto da violência. Tivesse maior conhecimento jurídico, teria acrescentado: edita a regra, interpreta-a, pronuncia a lei...

Mas Poulantzas aceita a noção Foucault-Marcuse-Bourdieu de que há uma diminuição ou retração da violência física quanto ao funcionamento e manutenção do Poder Político e uma acentuação ou aumento da inculcação ideológica (violência simbólica-interiorização da repressão).

Voltando à aparente contradição apontada acima, observa:

“A lei-regra, por meio de sua discursividade e textura, oculta as realidades político-econômicas, comporta lacunas e vazios estruturais, transpõe essas realidades para a cena política por meio de um mecanismo próprio de ocultação-inversão. Traduz assim a representação imaginária da sociedade e do poder da classe dominante. Também organiza e sanciona direitos reais das classes dominadas e comporta os compromissos materiais impostos pelas lutas populares às classes dominantes”. (OAC: 82).

Desse modo, as liberdades formais, integrantes do texto de qualquer Constituição moderna, consubstanciadas em normas de caráter altamente indeterminado, princípios, aparentemente colocando limites ao exercício do Poder Político, são conquistas populares que não se concretizam em virtude de sutis mecanismos de auto-defesa manipulados pela elite, como, por exemplo, a interpretação da lei.

Aliás, essas normas e princípios, sabemos, são estratagemas do Poder Político.

Não poderia ser diferente, observou Poulantzas. Os intérpretes e aplicadores da norma jurídica são categorias sociais detentoras de unidade formal própria, efeito da organização do Estado e de sua autonomia relativa sem deixar, entretanto, de deter um lugar de classe, de reproduzir o modelo de dominação imposto pelos detentores do Poder Político, mesmo quando as conquistas populares afetam o equilíbrio imposto e obrigam o surgimento de fissuras, rupturas e divisões em seu cerne.

Por fim, apontou o cerne desse caráter instrumental do Direito: “Todo Estado é organizado em sua ossatura institucional de modo a funcionar (e de modo que as classes dominantes funcionem) segundo a lei e contra a lei".(OAC:83)

Saraiva (1980:50), o secunda:

“Concebendo-se, assim, o Poder Judiciário como um poder, também, de matiz política, observa-se claramente que o juiz, para decidir, obedece a uma orientação pragmática, cujo significado é definido pelo Executivo Partidário, com objetivos ideológico especificados.”

Não é necessário ficarmos restritos a essa visão aguda, porém marxista, em relação à instrumentalização do Direito para o exercício do Poder Político.

Adam Smith, segundo Losano (1979:18), emblema do capitalismo ortodoxo, afirmou, em um esboço da Riqueza das Nações publicado postumamente: “num país civilizado os pobres contribuem para a sua própria subsistência e para a enorme riqueza dos seus senhores”. Mais à frente: “Numa sociedade de cem mil famílias existirão talvez cem que não trabalham e que, todavia, com a violência ou com a opressão regular da lei, absorvem uma quantidade de trabalho superior à de dez mil famílias (...)”.

Ou, por outra, Burke, autor de "Reflexões sobre a Revolução Francesa", apud Bobbio (1996:49): “Religião, moral, leis, privilégios, direitos do homem são os pretextos dos quais se servem os poderosos para poder governar a massa humana mobilizando e jogando com suas paixões”.

Por fim, Bobbio (OAC:49) lembrou: “para Hobbes o direito é expressão de quem tem o poder e, por isto, ele nega o valor à common law, que é o produto da sapiência dos juízes (...)”.

Pouco depois destas afirmações, encontramos, no mesmo Diálogo, uma definição do Direito dada por Hobbes, que podemos considerar como típica dessa concepção: “Direito é o que aquele ou aqueles que detêm o poder soberano ordenam aos seus súditos, proclamando em público e em claras palavras que coisas eles podem fazer e quais não podem”.

Assim, é fácil perceber que, em um momento específico no espaço e no tempo, em um sentido mais agudo, o Poder Político, para esses teóricos, engendrará a produção, a interpretação e a aplicação das normas, como aconteceu, por exemplo, em episódio recente no Brasil, quando da discussão acerca da flexibilização do princípio do direito adquirido, ou melhor, das cláusulas pétreas da nossa Constituição, originado pela cobrança de contribuição previdenciária dos inativos que esbarrou no clamor de segmentos da sociedade civil organizada.

Como dirá, também, esse mesmo Poder Político, no futuro, se as ditas cláusulas pétreas são eternas – assim o propõe a Constituição[2] – ou não.

Ou mesmo, para não ir longe, o Poder Político engendrará, através do Supremo Tribunal Federal, outras mutações constitucionais como a que acatou a legalidade de um fato gerador presumido, originando a cobrança antecipada do ICMS: imposto que se deve por um fato que não ocorreu.

Ora, a Constituição de 1937, da URSS, em pleno estalinismo, não era considerada democrática?

Nenhum exemplo, na história da humanidade, parece tão importante para corroborar tudo quanto acima se afirmou quanto o véu de legalidade construído para possibilitar o III Reich.

Rigaux (2000:107 ss) contou-nos que a história desse período da história possibilita ao estudo do Direito um excepcional laboratório. Diz ele que:

“Assim como os policiais, os engenheiros, os militares ou os médicos, os juristas não se furtaram a emprestar sua perícia à instauração e à consolidação do regime. Sem dúvida seu concurso poderia ter sido julgado menos indispensável que o de outros técnicos, mas conservando no regime certas aparências de legalidade, eles o cobriram com um manto de honradez.”

Vale a pena transcrever um outro período, no qual se fala acerca do papel de Carl Schmitt, visceral adversário de Kelsen, na construção do conceito de “Revolução Legal”, que deu vestimenta de legalidade à usurpação do poder por Hitler:

“Segundo Carl Schmitt, que, após ter sido conselheiro dos últimos governos conservadores, será situado entre os juristas da Coroa do regime nazista, pelo menos até 1937, o acesso de Hitler ao poder foi conforme à legalidade, afirmação que só seria correta se se pudesse isolar o decreto assinado pelo Reichpräsident em 30 de janeiro de 1933 de tudo o que se seguiu. Mas ele também partilha a opinião então dominante na Alemanha segundo a qual Hitler e seu partido realizaram uma ‘revolução nacional’. As duas afirmações não são contraditórias se se aceita que a revolução tivera como sinais prenunciadores as agressões cometidas pelas milícias nazistas contra os inimigos políticos do partido e que prosseguiu com a perpetração de violências ilegais conjugada com um formalismo jurídico do qual foi dado algumas amostras. Sobre a questão da legalidade do acesso de Hitler ao poder as opiniões permanecerem divididas. A posição oficial do governo sempre foi de sustentar a regularidade do processo, mas recorrendo a uma terminologia ambígua, a de ‘revolução legal’”.(OAC:110)

Rigaux contou-nos, também, acerca do “processo Röhm” e as ilações possíveis de natureza jurídica sobre o fato:

“O fato de os membros da alta administração e os juristas da Coroa só terem percebido confusamente o alcance exato da vontade do Führer e seus laços com a ordem jurídica propriamente dita é bem ilustrado pelo processo Röhm. Trata-se, em primeiro lugar, de um acerto de contas no seio do aparelho nazista, tendo Hitler decidido, com o concurso dos SS e com o apoio tácito do exército, aniquilar o poder dos SA. O comandante destes, Röhm, e seus principais dirigentes são massacrados em 30 de junho de 1934, quando da ‘noite dos punhais’. Durante os dias seguintes, várias personalidades conservadoras, entre as quais o general Von Schleicher e sua esposa, assim como Eric Klausener, o presidente da Ação Católica, são mortos em Berlim. Num discurso pronunciado no Reichstag em 13 de julho de 1934, Hitler declara assumir a responsabilidade dos fatos, que, segundo ele, teriam sido ditados pela necessidade e que ele pôde ordenar em sua qualidade de ‘juiz supremo do povo alemão’. Todo inquérito dos culpados já fora suspenso em virtude de uma lei de 3 de julho de 1934, cujo único artigo declara abrangidos pelo estado de necessidade os fatos cometidos antes de 1º de julho de 1934 e cuja perpetração correspondia a uma imperiosa necessidade política. Os procuradores e juizes que se inclinam dessa dupla declaração de impunidade fingem não perceber que, embora seja exato que a vontade do Führer é a fonte suprema do direito e que ele se reservou uma justiça moderada, a lei de 3 de julho de 1934 é inútil e essa lei – que não é uma lei de anistia, o que teria implicado o caráter culposo dos fatos – se imiscui na função jurisdicional à qual cabe verificar se as condições do estado de necessidade do parágrafo 52 do Código Penal alemão são preenchidas. A doutrina não fica a dever, pois na Deutsche Juristen-Zeitung de 1º de agosto Carl Schimitt publica um artigo intitulado ‘O Führer salvaguarda o direito’, em que dá ênfase sobretudo à qualidade de justiceiro supremo do Führer sem detectar a menor contradição entre esta afirmação e a lei concluída às pressas dois dias depois dos fatos e adotada pelo governo do Reich, presidido pelo próprio Führer, claramente inconstitucional mas que se prevalece de um tipo de legalidade formal”. (OAC:114)

Assim é que a interpretação da norma jurídica aparentemente reflete, consciente ou inconscientemente, o exercício do Poder Político, seja quando ousadamente se volta contra o ordenamento jurídico, seja quando acata o limite imposto pela norma no seu sentido mais literal.

Aliás, esse é o entendimento de Kelsen (2001:367):

“A escolha de um dos vários significados de uma norma jurídica por uma autoridade jurídica em sua função aplicadora de Direito é um ato criador de Direito. Na medida em que essa escolha não é determinada por uma norma superior, é uma função política. Pois a escolha entre os diferentes significados de uma norma jurídica, se não é determinada por uma norma superior, pode ser, e efetivamente é, determinada por outras normas não-jurídicas, isto é, por normas políticas”.

É interessante perceber, analisando-se a teoria da interpretação de Kelsen, o quanto ela é próxima, em termos de filosofia da linguagem, do pensamento de Karl Popper.

Para Kelsen, interpretar a norma é encontrar seu significado, mas como a linguagem humana é, o mais das vezes, ambígua, pode ocorrer mais de um sentido em uma norma jurídica. Existem, segundo ele, diferentes métodos de interpretação, mas:

“Se o próprio Direito não prescreve um desses métodos, cada um deles é aplicável e pode levar a um resultado diferente do outro. Mesmo que um método seja obrigatório, ele pode fornecer significados diferentes e contraditórios”.(OAC:367)

Ou seja, Kelsen não cai na armadilha da filosofia da linguagem que pretende tornar a busca da essência de um termo sua razão de ser.[3]

Na realidade, sua teoria da interpretação torna todas as outras, sejam elas de cunho jusnaturalista, sejam empiristas, falsos problemas. Para ele, a autoridade jurídica escolhe o significado que lhe pareçe conveniente e, assim, a ele atribui a força do Direito: a interpretação do Direito por essa autoridade pode ser caracterizada como interpretação política.

Esse entendimento, qual seja o de dar ao significado da norma a importância que ele realmente possui, e, não, por todos os motivos já apresentados neste trabalho, fazer dele um cavalo de batalha, pode ser encontrado em Popper e em sua crítica da filosofia da linguagem. 

Com efeito, Popper que mostra que nosso ponto de partida, na atividade cognitiva, é sempre um problema, ou, melhor dizendo, é a tensão entre nossa expectativa contrariada e a realidade, tornou-se ácido crítico da pretensão de se constituirem questões de significado em problemas filosóficos.

Ele entende que mesmo a busca de um sentido mais preciso para este ou aquele termo é antecedida por uma teoria que terá de ser exposta objetivamente e submetida à crítica para poder se constituir algo que valha a pena fazer parte do pensamento científico. 

É como nos diz o senso comum: em relação a um problema prático como procurar um advogado para o patrocínio de uma causa, a verdadeira questão, para o querelante, não é definir com precisão – isso é impossível – a essência do fato que o levou ao litígio: o importante é o problema que o angustia.

Da mesma forma, em relação a algo tão complexo quanto à física quântica, seria impossível fazê-la avançar se seus teóricos se detivessem na missão de definir, detalhadamente, a linguagem que a expressa.

Ao contrário, a linguagem, às vezes, é insuficiente para descrever certos fenômenos de natureza física e apela para a licença poética, como lembra Bachelard: o que não dizer de expressões como “princípio quântico de incerteza”?

Interessante, também, perceber o quanto Kelsen e Perelman se aproximaram no entendimento de que somente uma decisão de autoridade, ou seja, do Poder Político, termina dirimindo os conflitos que chegam aos tribunais. Textualmente:

“Se quisermos aprofundar ao máximo possível a experiência, seremos obrigados a constatar também que os raciocínios jurídicos são acompanhados por incessantes controvérsias, e isto tanto entre os mais eminentes juristas quanto entre os juizes que atuam nos mais prestigiosos tribunais. Tais desacordos, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, obrigam, o mais das vezes, depois de eliminadas as soluções despropositadas, a impor uma solução mediante autoridade, trata-se da autoridade da maioria ou daquela das instâncias superiores, as quais, aliás, na maior parte, coincidem”. (Perelman, 1998:8)

[1] Acerca do enfoque político-ideológico na decisão judicial, ver SARAIVA, Paulo Lopo; “A Influência da Ciência Jurídica na Decisão Judicial; Separata da Revista Vox Legis; Vox Legis; Vol. 139; Julho de 1980.

[2] § 4º, artigo 60, da Constituição Federal. “As denominadas cláusulas pétreas estão previstas na Constituição como ‘limite ao Poder Constituinte derivado ao rever ou ao emendar a Constituição elaborada pelo Poder Constituinte originário, e não como abarcando normas cuja observância se impôs ao próprio Poder Constituinte originário com relação às outras que não sejam consideradas como cláusulas pétreas, e, portanto, possam ser emendadas’;” (ADIN 815-3-DF, RT 732/147).

[3] Essa armadilha conduz a elaborações como esta: “Aliás, o caráter secundário que tem sido dado à linguagem está entre as causas profundas do chamado ‘mal-estar da modernidade’, conforme acentua Lima Vaz, uma vez que ‘a vemos submetida a um gigantesco processo de instrumentalização cujo alvo parece ser a sua redução à clausura da estrutura semiótica e às regras da estrutura semântica, tornando-a tão somente objeto disponível de consumo: técnico, ideológico, midiático e outros. A linguagem deixa de ser, assim, a manifestação da natureza espiritual do pensamento e do seu inato dinamismo que lança irresistivelmente o homem na rota do Sentido absoluto. Tornada objeto e instrumento, a linguagem permanece errante no deserto do não-sentido. Dela retira-se o ato do dizer autêntico, a prolação da Palavra (logos – verbum) como diafania do Ser. O que resta é apenas o discurso sem fim sobre o sem-fim dos objetos da carência e do desejo.” (STRECK, Lênio Luiz; “Hermenêutica Jurídica e(m) Crise”; Livraria do Advogado Editora; Porto Alegre; 1ª edição; 1999; p. 231/232).

* Texto constante do "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon.