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quinta-feira, 12 de junho de 2025

11. SINTOMAS DA INTERPRETAÇÃO JURÍDICA CONSTITUCIONAL ENQUANTO INTRUMENTO DO PODER POLÍTICO


* Honório de Medeiros  

“A visão superficial sempre esconde o verdadeiro sentido da atividade jurisdicional, que é mais profunda do que se possa imaginar e que apresenta um ‘substratum’ caracterizadamente político-ideológico.”

Paulo Lopo Saraiva, (em“Influência da Ciência Jurídica na Decisão Judicial”)

 

11.1 A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL 

                   É a partir dessas premissas que se deve entender o fenômeno da mutação constitucional, qual seja a alteração do sentido da norma constitucional vigente, enquanto reflexo da estrutura de Poder Político, em determinada circunstância histórica.

                    Será ela, a mutação, concorde com as aspirações populares ou os interesses da elite dependendo exclusivamente da estrutura de Poder Político vigente espaciotemporalmente. 

Bugos (1997:54ss) nos diz o que seja “mutação constitucional”: 

“Poderíamos citar ainda Haug, Franz Klein, Häberle, Fiedler, Maunz-Dürig-Herzog, H. Krüger, Heydte, Peter Lerche, Tomuschat, Scheuner, Rudolf Smend, Bilfinger, Hennis, Friedrich Müller, que, igualmente a Hans Kelsen, compreendem a mutação constitucional como a aplicação de normas que se modificam lenta e imperceptivelmente. Isso ocorre quando às palavras, que permanecem imodificadas do Texto Maior, se lhes outorga ou sentido distinto do originário, ou quando se produz uma prática em contradição com o texto, não sendo um acontecimento peculiar e único na órbita das normas constitucionais, senão um fenômeno constatado em todos os âmbitos do direito”. 

                   O mesmo autor assim se manifesta quanto à doutrina da construction em relação ao Supremo Tribunal Federal:

“A análise das decisões do colendo Supremo Tribunal Federal demonstra a presença do construcionismo judiciário, permitindo-lhe desprender-se do rígido formalismo legal, possibilitando a existência de amplos debates sobre problemas constitucionais,  tal a messe de decisões repetidas na aplicação de certas teses. O acórdão a seguir elucida a questão, qual seja o do pedido de Intervenção Federal n. 14, de 1951, e o da Reclamação n. 315, de 1953, de que foi Relator o Ministro Edmundo Macedo Ludolf, quando lembrou ao plenário a ‘prerrogativa que competia ao STF de construir o próprio direito, em dadas circunstâncias de premência e necessidade, em ordem a suprir as deficiências ou imperfeições da legislação’ (DJ, 28 nov. 1951, p. 4528-9). O Ministro Edgard Costa também enfatizou que ‘o STF, ao modo da Corte Suprema norte-americana, desempenha não o papel de um simples tribunal de justiça, mas o de uma constituinte permanente, porque os seus deveres são políticos, no mais alto sentido da palavra, tanto quanto judiciais’”. 

              Teria mudado, ao longo do tempo, a posição do STF quanto ao entendimento de que seus deveres são políticos, sua competência a de construir o próprio direito para além da expressa vontade do povo, manifestada através das leis que seus representantes votaram e aprovaram? 

                    Parece que não, haja vista, por exemplo, sua manifestação em relação à “MP do Apagão”: conforme ficou claro, o STF decidiu não decidir, a pedido do Governo, para impedir a discussão jurídica, através de sua manifestação em uma Ação Direta de Declaração de Constitucionalidade por ele promovida.[1] 

                   Outro exemplo patente é a questão do chamado “teto dúplex” que, em 1993, foi condenado pelo Ministro Carlos Velloso, como nos lembra o artigo de Marcos Sá Corrêa, publicado na revista Época, de 20 de março de 1999: “Julgava-se o recurso de um pequeno funcionário contra a Secretaria da Fazenda de São Paulo. Policial aposentado, ele voltara à folha do Estado como professor universitário. Foi demitido por acumulação indébita e levou o caso à Justiça. Vencera em várias instâncias até ser barrado por Velloso em 25 páginas de sólidos argumentos”. 

Hoje, sabemos, o entendimento do STF é totalmente diferente.                           

         Nada, porém, demonstra, com maior clareza, a possibilidade de a interpretação jurídica atender reclamos do Poder Político quanto a teoria da interpretação evolutiva.

                    Segundo Barroso (1998: 137):

 “A interpretação evolutiva é um processo informal de reforma do texto da Constituição. Consiste ela na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente do constituinte.” 

 Mais à frente:

 “Na América Latina, como lembra Anna Candida da Cunha Ferraz, e inclusive no Brasil, uma longa tradição autoritária mantém a interpretação constitucional evolutiva, através do Poder Judiciário, em limites extremamente contidos. De fato, a história do continente é estigmatizada pela hipertrofia do Executivo, pela quebra das garantias da magistratura, por reformas constitucionais casuísticas e pela instabilidade constitucional constante. Aliás, em lugar de evolução, freqüentemente o que se verifica é uma deformação, onde a interpretação constitucional judicial convalida os abusos autoritária”. 

 Barroso lembra que essas mutações constitucionais são possíveis graças ao elevado teor de indeterminação de normas constitucionais. 

11.2 A POSSIBILIDADE DA DECISÃO CONTRA A LEI 

                   Nada caracteriza tanto a possibilidade assumida de decisão contra a lei que o chamado “Direito Alternativo”, surgido na esteira criada pela chamada “Teoria Crítica do Direito”.

        Ele condena a identificação entre Direito e Lei e, mais ainda, critica asperamente a concepção estatal daquele, apontando fontes outras para o fenômeno jurídico, qual seja, o dos presídios e zonas comandadas por traficantes, este sendo o caso da Colômbia.

                Trata-se,  conforme já mencionado, da crença no pluralismo jurídico. 

                 Essa possibilidade de decisão contra a lei que for considerada injusta não é moderna do ponto de vista teórico.

                Quem não se recorda do bom Juiz Magnaud que, de 1889 a 1904, presidiu o Tribunal de Primeira Instância de Château-Thierry, e não se preocupava com a lei, doutrina, sequer a jurisprudência? Ou da “Escola do Direito Livre”? Ou mesmo da “lógica do razoável”, de Recazéns Siches?

                     Entretanto, a fonte dessa teoria é Eugen Ehrlich e “Fundamentos da Sociologia do Direito”, de sua autoria. Nessa obra ele convoca:[2] “A Sociologia do Direito deve começar pela pesquisa do direito vivo. Ela deve dirigir-se, primeiramente, ao concreto e não ao abstrato. Somente o concreto deve ser observado.”

         E, assim, cai na armadilha preparada pelo empirismo empedernido, já denunciado em capítulos anteriores, quando se fez a crítica da lógica indutiva. 

                   O que é esse “Pluralismo Jurídico”? A idéia de pluralismo jurídico é decorrente da crença na existência de dois ou mais sistemas jurídicos, dotados de eficácia, concomitantemente em um mesmo ambiente espaciotemporal. 

Assim é que, por exemplo, em sua Introdução Histórica ao Direito, Gilissen (1988:34) observa:

“nos países coloniais, nos fins do século XIX e até os meados do século XX, existiam geralmente dois sistemas jurídicos, um do tipo europeu (common law nas colônias inglesas e americanas, direito romanista nas outras colônias) para os não indígenas e, por vezes, para os indígenas evoluídos, e outro do tipo arcaico para as populações autóctones (...) No fim do período colonial (1960-1975) Portugal tinha feito das suas colônias africanas províncias e tinha tentado integrar os diversos sistemas jurídicos. Mas, apesar destes esforços, o pluralismo jurídico está longe de ter desaparecido de fato”. 

                   Coelho (1979:115), citando Goffredo Telles Jr., vai um pouco mais além: “A esta concepção que admite a coexistência de várias ordenações se denomina pluralismo jurídico, e opõe-se ao monismo, teoria que aceita a ordenação do Estado como a maior expressão da normatividade jurídica.” 

Quais as conclusões possíveis a respeito da  coexistência de mais de um sistema jurídico em um mesmo ambiente espaciotemporal? Uma delas, e talvez a mais intrigante, é a conjectura elaborada pelos teóricos do denominado “movimento sociológico do Direito” quanto à possibilidade de tal fenômeno ser uma prova inconteste de que existe um direito da sociedade  extra-estatal. 

Decorre essa conjectura de uma adequação do pensamento de Eugen Ehrlich, principal teórico da Escola do Direito Livre, autor de “Contribuição para a Teoria das Fontes do Direito”; “Sociologia do Direito”; e “Lógica Jurídica”, aos tempos modernos.

Com efeito, dada a impossibilidade de coexistência de dois sistemas jurídicos de natureza positiva, ou seja, cujas leis sejam originadas do Estado, somente é verossímil a hipótese defendida pela Escola de Sociologia Jurídica, cuja origem remonta a Savigny e que recebeu sua primeira sistematização com Eugen Erhlich, com fulcro na idéia de pluralismo jurídico. 

Embora, a respeito do pluralismo jurídico, haja quase um consenso quanto a significar ele a coexistência de sistemas jurídicos distintos em um mesmo ambiente geográfico-temporal, as divergências surgem quando se utiliza esse conceito, verossímil para expressar a apreensão fenomênica de determinadas situações específicas, como aquelas descritas por Gilissen, para suscitar a teoria da existência de normas jurídicas não estatais. 

Exemplo patente do primeiro caso é aquele vivido por países colonizadores em suas colônias, bem como outros que tenham passado por experiências revolucionárias onde a antiga ordem conviveu durante algum tempo com a nova. 

Também é o caso de países como o México e a Colômbia, onde o Estado admitiu a existência de um determinado ambiente espaciotemporal em que o sistema jurídico vigente não é o por ele imposto. Países como Portugal, que teve colônias na África, Inglaterra, e a Índia, por exemplo, jamais conseguiram tornar seus sistemas jurídicos hegemônicos: os dois conviviam, de forma complexa, com os sistemas jurídicos nativos. 

                   Quanto ao segundo caso, aceita-se que as normas de conduta estabelecidas pelos presidiários no interior dos presídios, assim como aquelas existentes nas favelas, expressões do que Ehrlich entenderia como ordenações jurídicas internas e autônomas, também seriam um sistema jurídico. 

                   Para aqueles que defendem caracterizar esse ordenamento tácito e não escrito vigente em presídios e favelas um “Direito”, tal concepção fulcra uma perspectiva ontológica: uma vez que há diversos direitos, aquele que com eles trabalha não pode se restringir ao uso de somente um no seu mister de concretizar a Justiça.

                    Ou seja, seria possível uma decisão contra a lei, mas a favor do Direito. 

                   Em síntese, esses juristas crêem haver Direito resultante de fontes distintas do Estado.

                       Melhor, acreditam que há, além da norma positivada ou não (modelo inglês), mas existente, vigente e eficaz em decorrência da aceitação estatal, alguma outra, pelo Estado não reconhecida, mas dotada de eficácia e validade jurídica no “habitat” onde surgiu e apta, portanto, a desempenhar o papel necessário para a concretização da idéia de Justiça que se pretenda obter. 

                   Por outra: as normas jurídicas positivas estão sempre a reboque dos fatos originando-se, em decorrência, em situações específicas, descompasso entre a lei e a Justiça. A decisão judicial, no afã de realizar a Justiça, tanto poderia valer-se da norma estatal como daquela que é “achada nas ruas”, “alternativa”, “insurgente”, ou “conforme o espírito do povo”. 

                   Bobbio (1996:177) apreendeu, com notável perspicácia, o âmago da fragilidade dessa crença.

                    Com efeito, do ponto de vista epistemológico, a construção teórica da escola sociológica do Direito somente é possível se o sujeito cognoscente pudesse apreender integralmente o objeto cognoscível (a coisa-em-si) com o qual  se depara em seu intuito de desvendar a realidade.

             Trata-se da crença na possibilidade de ser possível apreender a essência, o âmago da “coisa” e dele extrair normas de conduta.

            Essa crença é antiga conhecida dos filósofos, oriunda de uma tradição que remonta a Platão e sua gnosiologia exposta no “Teeteto”, que nos remete a uma teoria das formas e das idéias, que ao longo dos anos adquiriu diversos nomes, dentre os quais, em direito, “natureza das coisas”, palavras com as quais Montesquieu inicia o seu “Espírito das Leis”.

            Montesquieu ressalta:

 “A nosso ver, a noção de natureza das coisas é negada por aquela que, em filosofia moral, é chamada de ‘falácia naturalista’, isto é, pela convicção ilusória de poder extrair da constatação de uma certa realidade (o que é um juízo de fato) uma regra de conduta (que implica em um juízo de valor). O sofisma da doutrina da natureza das coisas, como do jusnaturalismo, é pretender extrair um juízo de valor de um juízo de fato.” 

A filosofia de ciência, principalmente, tem se revelado bastante mais avançada em tratar essa questão da relação entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível que qualquer outro ramo do conhecimento. 

                   Assim é que, por exemplo, tanto Popper (1978:14), quanto Bachelard (1977:33), filósofos, cada um a seu tempo e a seu modo, mostraram que o vetor do conhecimento é, em última escala, dirigido do Racional para o Real. E, também, físicos, como Heisenberg.( 1996:12) 

                   Se assim o é, argumentos como aqueles utilizados por Miaille,(1979:281) que observa: “os juristas (da Escola Sociológica) quiseram encontrar o direito nos fatos sociais, como um geólogo encontra minerais na Terra” ou, mesmo por Larenz (1989:78), ao afirmar que Ehrlich se equivocou ao tratar da dogmática jurídica, corroboram, no universo do Direito, o quanto está filosoficamente equivocado, em suas premissas, esse retorno a um certo tipo de idealismo que permite, metodologicamente, ao intérprete e aplicador da norma, pautar-se por um suposto sistema jurídico extra-estatal para materializar uma sua concepção de Justiça.

                     Puro personalismo.

Na realidade, a teoria que extrai do pluralismo jurídico uma comprovação da possibilidade de existência de normas jurídicas extra-estatais, e propõe a existência dessas normas jurídicas em favelas e presídios, não somente extrapola a ciência, mas presta um desserviço à democracia.

Ao atribuir à realidade imediata um papel que ela não possui, de indutora de regras universais jurídicas, o intérprete e aplicador do “Direito” se autonomeia capaz de interpretá-la subjetivamente. 

Crê-se ungido em um papel de demiurgo. Mas, ao final, nada está fazendo além do que, por seu próprio intermédio, reproduzir, como aparelho do Estado, como integrante da superestrutura ideológica, o capital simbólico da elite à qual pertence. 

                   Por que, no final das contas, ao agir contra o Estado, na medida em que desrespeita o princípio da legalidade, origina uma cultura de desprezo à lei. E esse desprezo à lei, ao ordenamento jurídico, ao Estado, é um filme já conhecido desde há muito. 

                   Observemos que um dos fulcros em defesa do argumento do Poder Político é o interesse coletivo, do qual esse Poder se diz representante, embora as normas que amparem as garantias fundamentais sejam sempre as mesmas.

                Aliás, quando a elite cai na armadilha que a realidade lhe impõe e esbarra no limite estatuído de forma objetiva pela norma, recorre, sempre, a uma norma que lhe seja hierarquicamente superior e de conteúdo, portanto, muito mais indeterminado, cuja interpretação permitirá sua escapatória, uma vez que os limites para o subjetivismo foram notavelmente ampliados. 

Perelman  (1998:67) denunciou essa prática em sua “Lógica Jurídica”: 

 “Finalmente, os casos mais flagrantes são aqueles em que intérpretes, desejando evitar a aplicação da lei, em dada espécie, restringem-lhe o alcance introduzindo um princípio geral que a limita e criam assim uma lacuna contra legem, que vai de encontro às disposições expressas de lei”. 

Enfim e ao cabo, esta prática é sempre uma possibilidade do Poder Político.


[1] Veja-se, a respeito, artigo de Dalmo de Abreu Dallari na Folha de São Paulo de Domingo, 15 de julho de 2001, cujo título é “Suprema Indecisão”.

[2] Ver SOUTO e FALCÃO; Cláudio e Joaquim; “Sociologia e Direito”; Editora Pioneira; São Paulo; 2ª edição; 1999; p. 113.


Texto constante do livro "Poder Político e Direito (A Instrumentalização Política da Interpretação Jurídica Constitucional)"; MEDEIROS, Honório de. Belo Horizonte: Dialética Editora. 2020. À venda na Amazon e estantevirtual.com.br