O recado, como não poderia deixar de ser, chegara por vias transversas – havia sempre, no Sertão, quem era escalado para essas missões: se fôssemos ao comício falar desceríamos direto para o caixão. Não havia meio-termo. Nossa ida significaria mais alento na candidatura do intruso, do “forasteiro” (era assim que nosso amigo oposicionista, vindo de outro Estado, era chamado), do inimigo que, pela primeira vez, era uma ameaça concreta ao poder estabelecido há tanto tempo que os habitantes da cidadezinha o imaginavam tão inalterável quanto o nascer e pôr-do-sol.
Eu e meu companheiro de cruz e espada, logo convocado, nos reunimos imediatamente e ele cogitou de mobilizar sua família, famosa pela valentia e embates travados Sertão afora e adentro. Era particularmente conhecido um seu irmão, homem de quem diziam ter a violência por companheira, mas desistimos porque não dava mais tempo: era fim de tarde e o comício seria logo mais, começo da noite.
Em nenhum momento passou pela nossa cabeça que não iríamos. Ao contrário. Pelo código de honra vigente no Sertão tínhamos que ir em marcha batida rumo ao possível sacrifício, como se não houvesse outra opção, como se nossa ida fosse algo inexorável. Era fato que eles, os que haviam lançado o repto, esperavam isso mesmo – nosso recuo – para deflagarem o achincalhe e a desonra públicas. As cartas estavam na mesa e a tensão, que já era perceptível desde cedo da manhã no dia do comício, piorara sensivelmente com o conhecimento público do desafio. Agora, minuto a minuto, hora a hora, as atenções de todos estavam voltadas para os nossos próximos passos.
Chegou a hora. O povo estava na rua. O murmúrio da multidão chegava a nós apesar do barulho dos carros de som. Nosso carro se aproximou lentamente do palanque. Parou. Ajeitamos as armas inúteis que deslizavam nas cinturas dos nossos corpos suados e se mantinham presas pelos cinturões apontando os canos para as nádegas. Inúteis porque, caso houvesse algum disparo vindo da multidão postada próxima ao palanque contra qualquer um de nós, não teríamos tempo nem possibilidade de reagir. E não podíamos atirar contra a multidão. Éramos alvos perfeitos, recortados contra as luzes dos refletores que incidiam sobre o palanque.
Olhávamos para todos os lados, e para a frente, ansiosos. Estariam nossos amigos atentos, no meio da multidão? Conseguiriam eles evitar algum atentado? De onde viriam os tiros? Esperariam eles que antes falássemos? Tudo isso percorria nossa mente enquanto os outros oradores se sucediam. Um após o outro todos denunciavam a tentativa de intimidação, até que chegou a nossa vez.
Meu companheiro, homem conhecido por sua valentia, pegou no microfone. O silêncio se estabeleceu. Todos aguardavam. Ele se voltou para mim, me pediu que segurasse o microfone perto de sua boca, agarrou cada lado da camisa com uma mão, puxou violentamente, os botões saltaram e seu peito nu ficou à vista de todos, enquanto seu brado, ampliado pelas caixas-de-som, ecoava praça afora: “querem nos matar, comecem por mim, aqui estou exposto esperando as balas dos covardes”.
Estabeleceu-se o frenesi. A multidão, excitada, berrava, aplaudia, invadiu o palanque, nos pegou nos braços e nos carregou pela praça, dando voltas, várias vezes, até nos depositar no nosso carro, junto com o candidato, e nos acompanhar até sua residência onde a festa durou até o amanhecer.
É difícil, depois de tanto tempo, lembrar tudo quanto foi dito. Na memória, apenas a lembrança da mistura de barulho, cores, cheiros, e adrenalina percorrendo as veias intumescidas. Na lembrança, apenas a memória do brado feroz, o peito indicado, o convite para o tiro, o alívio pela certeza de que, naquele dia, nada ocorreria, a consciência de que havíamos ganho a batalha.
Mas e a guerra, que apenas começara?
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