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Honório de Medeiros
Costumo iniciar, ano a ano, o curso de Filosofia do Direito, na Universidade Potiguar, falando a meus alunos que filosofar é desvendar a realidade, como se esta tivesse véus que a ocultassem e, por assim ser, impedisse os menos persistentes de encontrar a verdade que ela persiste em nos esconder. Essa imagem inicial guarda débito para com a bela elaboração da mitologia hindu, que nos apresenta a deusa MAYA como sendo responsável exatamente pela impossibilidade de podermos enxergar a realidade como ela é e percebermos que tudo quanto nos cerca nada mais é que pura ilusão, um devaneio infindável a nos impedir o verdadeiro conhecimento.
Um desses véus mais persistentes é – se pudermos usar essa imagem para melhor explicarmos – é aquele que despersonaliza a ação concreta do ser humano e a atribui a uma abstração, como é o caso da idéia de Estado. Ouvimos e vemos sempre que o Estado não se faz presente, no caso do Brasil, desde épocas passadas, na luta contra a desigualdade e exclusão social – algo inquestionável, por sinal, por que podemos constatar que, de fato, evoluímos quanto ao aparato tecnológico com o qual o capital se instaura, mas não conseguimos solucionar questões comezinhas como a da eliminação do analfabetismo. Não é o Estado que não se faz presente. Somos nós mesmos que estamos ausentes. Despersonalizar a ação de quem detém o poder, mascarando-a com esses artifícios dificulta sua responsabilização.
Outro véu onipresente é aquele que nos impede de percebermos como se instaura uma determinada lógica na ação daqueles que detém o poder e, a partir de então, ela passa a fazer parte do nosso cotidiano sem que, em qualquer momento, passemos a questioná-la em seus fundamentos básicos. No primeiro caso temos a persistente e programada despersonalização da ação da elite, através de artifícios que pretendem legitima-la, como é o caso do atual conceito vigente de Estado, que deixa de ser o “topos” onde ocorre a ação, para ser o instrumento burocrático atrás do qual se esconde o processo de instauração dos mecanismos do Poder. No segundo caso temos o discurso real, não o ilusório ou artificioso, que engendra a ação daqueles que detém o Poder.
Podemos considerar que o primeiro – a despersonalização – é conseqüência coerente do segundo. Ou seja, despersonalizamos por que precisamos ocultar o real. Seria como uma manobra diversionista, se utilizássemos a linguagem da guerra. E qual é esse discurso real? Lembremo-nos que, no Brasil, desde a ocupação portuguesa, o espaço público foi privatizado. Não é desconhecido que na carta de Pero Vaz de Caminha ao Rei, no final, ele solicita regalias para sua família. Tampouco o é o episódio das Capitanias Hereditárias.
O fato é que, desde o início, e até o presente, esse espaço público pertence à elite e esta tem ser revelado de um atraso inigualável. Raymundo Faoro demonstra, em sua obra “Os Donos do Poder”, criando o conceito de “estamento”, o quanto, ao longo dos anos, até o presente, a elite privatiza o público e o utiliza em proveito próprio. Ou seja, segundo Faoro, no capitalismo brasileiro não há, necessariamente, uma apropriação dos meios de produção por parte da elite, mas, sim, uma privatização do espaço público em proveito próprio. Assim é que vemos filhos de juízes sucederem aos pais, generais aos avós, deputados aos antepassados e assim por diante.
A vingança dos excluídos tem sido, ao longo do tempo, variada, mas permanente. Não é à toa que na literatura, na música, na arte, de uma forma geral, o “barnabé” é permanentemente motivo de chacota. Mas o resultado é inócuo. Continuamos tendo o espaço público privatizado. Essa ação da elite teve seu preço: a ampliação do espaço público, o gigantismo, o excesso de burocracia. Burocracia: mais cargos para atender a demanda, mais ações para atender a procura. Com a globalização, essa burocracia passou a ser um entrave para o grande capital internacional, legitimado pela doutrina do “Consenso de Washington”. A ordem passou a ser: devemos nos render ao Estado mínimo.
Chegamos, agora, ao ponto fulcral desta análise. A doutrina que passou a prevalecer após o ideário do “Consenso de Washington” exige um Estado mínimo para que não haja dificuldade na circulação do capital. Este tem que vir e voltar logo, bem mais gordo, para os bolsos de quem o possui. Para que não haja dificuldade nessa circulação, é necessário impor a ótica financeira na ação governamental. Essa ótica financeira demanda opções típicas de mercado, como equilíbrio nas contas públicas e pagamento dos juros extorsivos do dinheiro emprestado pelos organismos internacionais. Portanto, as políticas públicas de longo alcance, bem como os serviços e servidores públicos através dos quais elas são realizadas devem desaparecer para que a lógica da obra, em detrimento da meta intangível prevaleça. Não é à toa que os políticos somente pensam em termos de obras físicas. Acaso o investimento em uma meta real, concreta, significativa, de erradicação do analfabetismo traria retorno em termos de voto e dinheiro para financiamento de campanhas políticas? Construir uma ponte, sob o argumento de que é preciso desenvolver, traz retornos mais concretos que investir na erradicação da mortalidade infantil.
Então vemos o surgimento da publicidade: o “Governo investiu tantos milhões em obra tal e qual” e a sociedade esquece que mais importante é atingir metas mais abstratas, como a diminuição dos índices de violência pública. Sem contar que o discurso para legitimar as obras é impressionante em sua vacuidade: construamos para acelerarmos o desenvolvimento e aumentarmos a riqueza. Claro, o capital precisa de rapidez para circular. Então construamos estradas, rodoanéis, viadutos, pontes e outros mais, e esqueçamos o analfabetismo, a mortalidade infantil, a exclusão social, por que a riqueza vai circular mais rápido e tornar mais rico quem detém o capital, mas a desigualdade permanecerá, como o demonstra o crescimento desde Getúlio até os dias de hoje e a permanência da mesma desigualdade.
Nesse afã de tornar o Estado mínimo, faz-se a política da terra arrasada: não temos tempo nem queremos distinguir entre o que vale e o que não vale a pena eliminar: todo serviço público é ruim, e todos os servidores são ineptos. Esse é o discurso da elite que, infelizmente, encontra eco na sociedade nauseada com o mau serviço público e os maus servidores, que existem exatamente por que a elite apropriou-se do espaço público para se locupletar. Assim, aquilo que parece óbvio, qual seja a recompensa pela vocação do servidor público, uma aposentadoria digna, está desaparecendo e, com ela, o interesse em se devotar ao público.
2 comentários:
O texto é excelente, revela o brilho, a sapiência e a intelectualidade do Prof. Honório.
Com o devido respeito, acredito que no último parágrafo houve um lapso na colocação do vocábulo ''mal''.
Por exemplo:
''...mal serviço público...''. Não seria melhor grafar assim: MAU SERVIÇO PÚBLICO?
''...os mal servidores...''. Não seria melhor grafar assim: OS MAUS SERVIDORES?
Caro Gomes,
Grato pela leitura e pela sugestão.
E pelos elogios, claro.
Um grande abraço,
Honório de Medeiros
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