domingo, 13 de março de 2011

A ARTE DE DECLAMAR E RAMIRO GUEDES

essênios.wordpress.com

Honório de Medeiros

Dia desses alguém tocou no nome de Ramiro Guedes. Nada sei a seu respeito, exceto que foi poeta, seus poemas cantavam estórias de conteúdo moral, e minha mãe os declamava com uma intensidade, uma carga dramática, um ritmo tal que invariavelmente nos conduzia às lágrimas. Ela tinha a arte de declamar.
 
Arte sim, sem dúvida. Como arte, com certeza, são os poemas de Ramiro Guedes, que foram feitos para serem declamados em saraus literários nos quais a sociedade ouvia, com raro deleite, versos às vezes não tão sofisticados – que importância teria o rigor formal? – assim como a estória em si – também não importa – e percebia aquele amálgama de talentos que torna grande o orador ou cantor: voz, presença, gestos, capacidade dramática, domínio de palco, interação com a platéia, noção de momento – esta, então, rara, vez que dom – ou seja, o declamador.

“D’antes, lá longe, nos confins d’Arábia,

Que se estendem do Líbano à Caldéia,

Vivia um velho sábio, d’entre os mais sábios,

Dos essênios da Síria e da Judéia.


Um dia uma lenta caravana,

Surgiu do horizonte pela calma,

Trazendo em canjirões de porcelana,

Essências de Bagdá, e óleos de Palma.”

E a declamação fluía lenta, nesse primeiro e hipnótico instante, transportando-nos para um Oriente misterioso onde dromedários, um atrás do outro, pacientemente, coroavam as dunas do deserto enquanto o sol morria suavemente. O poema prosseguia. Ramiro Guedes quer nos encaminhar ao sentido da vida através do mercador, dono dos animais, que busca, há muito tempo, resposta para essa pergunta angustiante; ele soubera que ali, no local de onde se aproximava, vivia alguém que lhe poderia responder.

O mercador consegue encontrar o eremita. E este se dispôs a escutá-lo. Ouviu-lhe o relato de uma busca incansável, por terras distantes e estranhas. Fora muito o tempo empreendido e os recursos gastos na busca. O mercador nada encontrara. Ninguém conseguira trazer-lhe o conforto e a paz tão ansiados pela sua alma inquieta.

O sábio o escutou em silêncio. Depois, pede-lhe que empalme a areia do deserto sobre a qual está prostrado e a amolde à conformação de sua mão. Diz-lhe que do consegui-lo depende a resposta para o que busca. O mercador tenta. Pega a areia fina, branca, segura-a firmemente, mas quando descerra os dedos ela escorre entre suas falanges até o chão. O mercador percebe que há algo muito importante nesse pedido do sábio. Aos poucos, torna-se frenético. Desesperado tenta outra, outra, e muitas outras vezes, mas sempre a areia escorre entre seus dedos. Em seu desespero, as lágrimas fluem. Uma delas, em um instante mágico, cai sobre a areia que começara a escorrer da palma de sua mão. Naquele local onde a lágrima caiu, as partículas se agrupam e jazem unidas, repousando. Nesse momento, como que acordando de um longo sonho, o sábio diz: “eis o sentido da vida: pó inconsistente e frágil, basta uma só lágrima, um sentimento, para que a areia do deserto se torne sólida e permanente na palma de sua mão”.

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