Charles M. Phelan
...
As razões de minha tarefa não importam nesse momento. Apenas
importa o fato de que não há maior solidão que observar um morto. É como estar
morto.
Nunca cuidei de um cadáver antes. Já cuidei de muitas outras
coisas, mas nunca de um morto. Distintamente observei algo peculiar relegado
apenas àqueles, penso eu, que se submetem a este ofício.
Uma delegação tão psicologicamente severa que agi com
intemperança e repugnância diante da ordem, sussurrando excrementos de
indignação ao meu mandante, inconsistentes com o decoro de quem deve obedecer
fielmente sem questionar.
Ah! Como me abalaram os dias que antecederam aquele momento.
Sofri de dores intensas. Cada segundo e minuto e hora que simplesmente me
atormentaram ao longo dos dias. Meu Deus de todas as divindades (em mãos, o meu
rosário de contas vermelhas), por qual razão as angústias d’alma não me deixam
a mente? Já não basta a doença que me afligi?
Não pude resistir a uma ordem superior. Surpreendido,
acatei. Meu coração palpitava desconcertado.
Minha insatisfação cresceu e meus dias foram ocupados por
pensamentos que ora me paralisavam a mente ora me enfraqueciam o corpo. Noite e
dia perderam seu ritmo natural e meu relógio biológico passou a rejeitar as
demandas tão próprias da fisiologia humana. Meu ciclo circadiano desordenou-se.
Contrario a lógica, a escuridão da noite me mantinha em vigília, enquanto o dia
me conduzia à exaustão absoluta. Supliquei, inutilmente contra minha tarefa de
observar o morto. Apelei com orações celestiais ao meu mandante para que noutro
momento, num futuro mais adiante ou noutra oportunidade mais conveniente, me
fosse delegado o encargo. Mas não agora. O silêncio veio como resposta e meu
apelo foi rejeitado tacitamente.
Essa seria a minha vez.
E assim foram todos os dias até o meu encontro com o morto.
O que poderia um morto fazer comigo? Nada no plano físico, eu sabia. No plano
psicológico, todavia, muitas coisas. Sem opção, fui ao seu encontro, mas antes
de nos apresentamos por completo observei-o a distancia. É preciso cautela nas
apresentações, principalmente a que estava prestes a acontecer.
Lá estava ele, mortinho-mortinho, imóvel, não por opção,
visto que naturalmente o estado de morte não é objeto de escolha para maioria
das pessoas, e sim, talvez, derivado da velhice ou por razões acidentais ou
planejadas ou por alguma doença. A verdade é que hoje eu iria vigiar um
cadáver. E ele já estava ali, a alguns metros do meu olhar precavido.
O corpo encaixotado em madeira de carvalho vestia um paletó
cinza que me apetecia o gosto, lembrando-me, pelo estilo do corte, um modelo
que parecia cair bem estivesse eu naquele predicamento, ou não. Pensei em
algumas ocasiões durante minha observação, que o caixão me caberia
perfeitamente. Fisicamente não havia diferença entre eu o morto e, se alguma
houvesse, meu tanatopraxista certamente usaria de algum artifício técnico de
modo a me acomodar no interior daquele confinamento.
Cheguei mais perto. Investi em sua direção antes de correr o
risco de ser observado primeiro. Que loucura, ele estava morto. Olhei-o
lentamente direto na face lânguida e pálida. Parecia anônimo num primeiro
olhar, mas o foco dos meus olhos absorveram suas feições em minha memória,
encontrando familiaridade em lugares do meu cérebro onde passado e presente se
misturam.
Passei a recorrer por todos os cantos da minha memória
buscando uma identificação daquele homem. Não bastava a agonia de estar sozinho
ali, agora tinha também a preocupação de que estava na companhia de um
conhecido.
Não consegui identificar completamente as feições do morto
muito provavelmente por nunca, na condição de vivo que estou, ter conhecido
alguém, pela primeira vez, penso, naquele estado. Lembrava meu pai de certo
modo, mas era jovem por demais. Poderia ser um irmão um pouco mais novo. Mas eu
também não tinha irmãos mais jovens. Eu era o mais jovem dos cinco irmãos, e
havia muito tempo que não ouvia falar deles. Prossegui tentando
identificá-lo. Apalpei seu rosto relegando ao tato as
resposta de minha angústia. Meu Deus quem será esse homem? Pensei.
Permaneci por certo tempo recostado contra o pesado caixão
observando aquele semblante, mas após alguns instantes a ausência de respostas
me causou uma inquietação. Meu coração desencadeou batimentos descompassados
que levariam qualquer maestro a loucura se postas numa partitura. Um calor
interno intenso me fazia recorrer ao lenço de bolso. Passei a andar em sentido
horário em volta do caixão. Olhei os detalhes de cada ângulo de sua face,
pescoço e cabelo. Observei cada segmento do rosto separadamente, atento as
simetrias da familiaridade. Talvez se os olhos estivessem abertos tudo seria
mais fácil e a identificação mais acurada. São nos olhos os traços mais fortes
da compleição humana. Do tronco observei apenas o porte dos ombros, e por eles
avaliei o peso. Pelo comprimento do caixão, a altura. Da pele jovial, ainda que
através da perfeição da maquilagem, e mesmo sob o efeito sui generis da morte,
estimei a idade.
Uma criatura de razoável beleza, mortinha, mortinha. Os
olhos cerrados como de praxe e harmonizados pelos retoques impecáveis de um
profissional preparador de defuntos que, num primeiro olhar, provoca no
observador o singelo comentário, “aahhh.. pela expressão, ele morreu em paz.
Que Deus o tenha.” Eu não enxergava nada - nem sinais de paz nem de
desassossego. Meus olhos não desgrudavam do desejo de reconhecer aquele
gentleman.
Confesso que não sei se há paz na morte. Por ser a paz um
estado de espírito, como um cadáver, como simples manifestação da armadura
física desse espírito, pode provocar qualquer comentário de que morrera em paz?
Jamais os vivos se reconciliam com a morte
As horas se passavam e em breve a casa funerária abriria as
portas para a última visita de amigos e familiares. Forcei a mente como se
estivesse a empurrar a massa cinzenta de meu cérebro até as profundezas do meu
inconsciente. Retoquei a testa com o lenço já encharcado. Não queria que aquele
homem fosse enterrado sem que eu pudesse identifica-lo. Tornei a observá-lo
intensamente.
Em breve, após os primeiros visitantes, a tampa seria
fechada, e eu seria deixado para sofrer com sua imagem que me perseguiria para
o resto da vida.
O caixão possuía uma tampa daquelas que se dividem em duas.
Uma parte expunha o tronco e a cabeça. A outra, fechada, expunha da metade para
baixo.
Meu desejo de identificar o homem do caixão virara uma
obsessão. Baixei a cabeça fingindo estar em oração. Cobri parte do rosto com o
lenço. Fixei meu olhar no chão e no morto. Ao meu redor pude observar a
presença das primeiras pessoas e nada mais. Um silêncio enorme engoliu o lugar.
Mantive a mesma postura roubando, sub-repticiamente, uma visão do gentleman.
Insisti em lembrar do homem, mas já estava sem a energia necessária para o meu
intento. O silêncio continuou. Havia algumas pessoas, mas não consegui ouvir um
único som. Nada. Nem um respirar.
Inconformado, recuei. Sempre de cabeça baixa. Fui até o
fundo do salão em silêncio, no contra fluxo dos que se aproximavam do caixão.
Levantei a cabeça levemente percebendo o vulto e o
fechamento da tampa de carvalho pesado. Todos estavam sentados de costas para
mim, com exceção dos homens que marchavam lentamente em minha direção e para
fora do salão trazendo o pequeno caixão. Cada qual de posse de uma das quatro
alças.
Finalmente, levantei por completo a cabeça, olhei e olhei
com atenção até que, já bem perto, reconheci os traços dos quatro homens que
traziam o caixão.
...