domingo, 2 de outubro de 2022

JESUÍNO BRILHANTE o primeiro dos grandes cangaceiros

 * Honório de Medeiros (honoriodemedeiros@gmail.com)




MEDEIROS, Honório de. Jesuíno Brilhante o primeiro dos grandes cangaceiros. Natal: Editora 8. 2020.



Prefácio

Olhos sem medo

“Há figuras de relativa nobreza, corajosos, incapazes de uma violência contra moças, crianças ou velhos, como Jesuíno Brilhante, e há os repugnantes, brutos, como Lampião” (Câmara Cascudo)


O mérito do historiador não é somente saber contar bem uma história, se tem a doma natural das palavras como ferramentas da arte de escrever. É quando tem os olhos sem medo, acesos pela dúvida. Aqueles que levam às camadas mais profundas dos fatos que desnudam mitos e sangram falsas verdades na espetada de um espinho de mandacaru.

Essa destreza de ordenar os fatos e submetê-los à riqueza do confronto das ideias, Honório de Medeiros já revelava, precocemente, na sua primeira e jovem aventura ensaística, ao ousar o olhar, inédito na bibliografia do Rio Grande do Norte, com o ensaio filosófico Investigação Parcial Acerca da Solidão (Nossa Editora, Natal, 1984).

Depois, fez incursões na filosofia do Direito com sua formação jurídica, mas nada que tivesse a força fundadora de inaugurar o que talvez represente a mais atenta percepção de uma até então inédita visão sociológica do cangaço nas relações de poder no tempo de um coronelismo de senhores e escravos, reinado mágico feito de reis e de vassalos.

No seu primeiro livro sobre o cangaço, Honório desloca a narrativa e vai erguê-la sobre as contradições do mandonismo coronelista dividido entre dominadores e dominados - heróis se aliados, bandidos se rebeldes. Parte integrante de um mundo ungido num processo de heroicização, mas ainda à espera de quem enfiasse os olhos para vê-lo perto, nas próprias entranhas, e compreendê-lo nas grandezas e misérias.

Dois ensaios são fundadores dessa literatura homérica na história intelectual que se fez nos últimos anos elevando a pesquisa histórica ao patamar sociológico e antropológico, na medida em que liberta a narrativa do crivo fácil da descrição: Massilon, nas veredas do cangaço (Sarau Literário, Mossoró, 2010), e Histórias de Cangaceiros e Coronéis (Sebo Vermelho, Natal, 2015).

Este seu novo ensaio - Jesuíno Brilhante, o primeiro dos grandes cangaceiros - não é uma aventura adjetivada. Nasce de olhos sem medo, na longa e detalhada tomada de visão que desmonta, corajosamente, uma verdade que anos perdurou livre e inquestionada, ao longo de décadas. Desde os anos cinquenta, nascida na proto-história eivada - embora sem travo de má fé - pelo processo de heroicização que modelou, numa versão claramente impressionista, a figura de Jesuíno Brilhante como um herói romântico.

Medeiros, de alpercatas maceradas no chão pedregoso do sertão mais sertão, não temeu abandonar a trilha. Não abrandou as verdades em torno do cangaceiro e sua história, nem a deixou cair na tentação cômoda de fazê-lo um herói. Bateu as esporas no vazio do cavalo e saiu rastejando a história, desde os antanhos, até encontrar o homem real.

Cuidadoso, antes mapeou a época, fixou o homem e sua história entre as invernadas e estiagens de um sertão do tamanho do mundo, no dizer de Guimarães Rosa. Até sair do outro lado, levando Jesuíno por inteiro, completo, humano e contraditório.

Para tê-lo verdadeiro, nas circunstâncias históricas e construtoras da verdade, até então diluída pela admiração, precisou jogar o jogo das razões e desrazões, e remover a pedra fundamental de uma marca romântica cavada no baixo-relevo da impressão nascida das afeições que movem as sensações da literariedade. É de Câmara Cascudo, no verbete que dedica a Jesuíno Brilhante, no Dicionário do Folclore Brasileiro (Ministério da Educação e Cultura, Rio, 1954), o timbre que Nonato vai repetir no próprio título do seu livro: Jesuíno Brilhante, o cangaceiro romântico (Pongetti, Rio, 1970, na edição original).

Medeiros não perdeu de vista as raízes ancestrais de Cascudo, o filho de Francisco Cascudo, coronel da Guarda Nacional, caçador de cangaceiros, e de quem herdou, por legítimo formal de partilha, a herança de olhar o cangaço como produto de um tempo sem lei a espalhar o horror no sertão do seu pai. Uma civilização trágica e monumental que Cascudo conhecia desde o aboio gregoriano dos vaqueiros à récita lírica dos cantadores, soprando nos lajedos o sentimento trágico e romântico dos homens cósmicos.

É Cascudo o primeiro grande pintor do romantismo de Jesuíno:

__ Jesuíno Alves de Melo Calado, depois chamado Jesuíno Brilhante, foi o cangaceiro gentil-homem, o bandoleiro romântico, espécie matuta de Robin Hood, adorado pela população pobre, defensor dos fracos, dos anciões oprimidos, das moças ultrajadas, das crianças agredidas.

Mas não é este o Cascudo que descreve a figura do cangaceiro no verbete do mesmo Dicionário, na generalização de acusações imperdoáveis:

__ Diz-se no Nordeste do Brasil do criminoso errante, isolado ou em grupo vivendo de assaltos e saques, perseguido e perseguindo, até a prisão ou morte numa luta com tropa da polícia ou com outro bando de cangaceiros.

Raimundo Nonato, clara e fortemente influenciado por Cascudo, a quem enaltece como fonte pioneira e fundamental, concorda e abriga, sem reservas, o novo herói, aquele da modelagem cascudianamente concebida no barro das afeições:

__ Com esse novo depoimento, o Brilhante afirma uma configuração de cangaceiro romântico, que ninguém até então lhe tinha emprestado.

A afirmação teria sido definitiva se Honório de Medeiros não tivesse enfiado os olhos corajosos nas fontes primárias, tão essenciais ao pesquisador na busca dos fatos perdidos na noite do tempo e tão adormecidos nos velhos jornais. Impulsionado pela força da curiosidade, parte levando no alforje a indagação clássica: Jesuíno, herói ou bandido?

É a essa pergunta que responde neste livro ao longo de mais de uma centena de páginas. Fato a fato. Nome a nome. Como um rastejador de abelhas numa demorada caminhada sobre chãos e lajedos no sertão épico e trágico do nunca mais. Até encontrar Jesuíno. Real e legítimo, forjado nas asperezas do seu tempo feito de pedras e espinhos.

Honório de Medeiros encontra o herói? Ou bate de frente com um bandido impiedoso? Eis a trilha que o leitor, a partir de agora, precisa seguir para encontrar a resposta. Sem levar de antemão, na bruaca, a sentença da condenação, nem o doce favo da lenda que há mais de um século andava vagando no sertão velho, entre crenças e abusões.

Natal, março de 2020, nos dias da peste que veio de longe.

Vicente Serejo

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