Ensaio publicado na Revista da Academia Norte-rio-grandense de Letras Nº66, jan-mar, 2021, p.191-199.
* Gustavo Sobral
Este trabalho é uma tentativa de leitura da
trilogia de Honório de Medeiros. Trilogia que nasce com a publicação de Massilon,
em 2010, perpassa a publicação de História de cangaceiros e coronéis,
2015, e tem o seu desfecho com a publicação de Jesuíno Brilhante, 2020.
Honório de Medeiros propõe em sua obra um estudo
histórico sobre o cangaço a partir das relações de poder, um estudo sobre as
relações de poder e uma nova proposta para escrita da história ao considerar
que a história deve ser entendida, escrita e explicada por uma perspectiva
analítica e interpretativa.
Como condição necessária para o trabalho de
pesquisa, o autor apresenta uma revisão da literatura preexistente acerca do
cangaço, propondo uma classificação em fases, tipos de estudos e tipos de
autores, procurando situar nesse contexto a sua proposta de abordagem.
Três também são os tipos de texto: os que
fantasiam, os que narram e os que pensam. E considera também a presença de
zonas de interseção: narrações que analisam; fantasias que narram etc.
Quanto aos autores, reconhece três grupos
distintos: um grupo que reúne cantadores de viola, cordelistas, contadores de
estórias, xilogravuristas e poetas; um grupo que nomeia de pesquisadores do
cangaço, que são aqueles que se debruçam 192 sobre o tema; e o grupo que
congrega os pesquisadores acadêmicos sediados nas universidades.
A par desse contexto, elege, por sua vez, um
caminho próprio de investigação que, considera, deve partir de uma leitura
crítica das fontes, aplicando uma metodologia adequada e suportes teóricos
condizentes.
É essa a proposta que desenvolve na construção da
sua trilogia, o que se pode albergar em cinco vertentes de abordagem
distribuídas nos três volumes publicados.
A primeira vertente é o que se pode considerar
estudos sobre os estudos, que seriam os trabalhos em que o autor expõe uma
reflexão e uma visão crítica sobre os estudos existentes acerca do cangaço.
No primeiro volume, Massilon, é possível
identificar os seguintes textos nessa vertente: “Aplicação do método da ciência”;
“O cangaço em nova onda”; “A nova onda do cangaço”. No segundo volume, História
de Cangaceiros e Coronéis, os capítulos “Epifenômeno do cangaço”, “Tipos de
textos sobre o cangaço” e “Sobre história e conhecimento escolar”.
Um segundo viés compreende estudos críticos mais
aprofundados sobre as teorias e abordagens sobre o cangaço, quais sejam, a
teoria do escudo ético, do estudioso Frederico Pernambucano de Melo — ensaio
que integra o segundo volume, História de Cangaceiros e Coronéis —; e um
estudo crítico sobre Câmara Cascudo e o cangaço, adendo a Jesuíno Brilhante,
terceiro volume da série.
O terceiro viés se volta para as biografias e os
perfis de cangaceiros, coronéis e outras figuras históricas do contexto.
Uma quarta abordagem se detém aos episódios e a
outros aspectos. Em episódios, o ataque de Lampião a Mossoró; em aspectos,
podemos elencar o pacto dos governadores e o Rio Grande do Norte no tempo dos
coronéis.
A quinta perspectiva, que perpassa todas as
anteriores, é o arcabouço metodológico e teórico.
A metodologia adotada é plurimetodológica, voltada
para uma diversidade de fontes de pesquisa, e envolve levantamento
bibliográfico; pesquisa documental, que resulta do acesso a fontes documentais
diversas; e pesquisa etnográfica, que é a pesquisa de campo, que alberga a
coleta de depoimentos, realização de entrevistas e visita aos locais dos
acontecimentos.
A pesquisa e o levantamento bibliográfico se
concentram em livros: obras gerais de história do Rio Grande do Norte,
trabalhos monográficos sobre cangaceiros, biografias, memória, genealogia e
estudos teóricos no campo da ciência, filosofia, biologia, sociologia, direito,
ciência política etc.; cordéis diversos, que contam a história de cangaceiros e
seus feitos; e revistas e jornais de ontem e de hoje.
Documentos diversos, compreendendo certidões de
batismo e de óbito, inventários; peças jurídicas, como processos,
representações, denúncias, pareceres, relatórios; cartas pessoais e cartas
abertas (publicadas em jornais). Todos são fontes exploradas e, em sua maioria,
reproduzidas a título de citação, adendo ou anexo.
Depoimentos, entrevistas e o “Diário de Viagem” —
quarta parte do volume Massilon —, que relata o percurso da pesquisa de
campo.
Há também toda uma preocupação em documentar o
trabalho de pesquisa em notas de referência, aditivas e explicativas, em rodapé
e/ou ao final de cada volume, referendando as fontes pesquisadas, os
depoimentos colhidos e as entrevistas realizadas.
A título de anexo, o autor cuida da reprodução de
documentos, seja em fac-símile, seja transcrito. Também há a menção, ao final
de cada volume, das fontes bibliográficas consultadas.
A par de todo esse suporte metodológico, Honório
de Medeiros desenvolve a sua teoria, o alicerce para observar e compreender o
fenômeno do cangaço e o estudo das relações de 194 poder, e o faz ao apresentar
os dados coletados, a análise e a interpretação, refutando hipóteses
consagradas pela historiografia e propondo um novo olhar para a história.
A invasão de Lampião a Mossoró ganha uma nova
proposta de análise que considera as relações de poder e interesse dos coronéis
e refuta as premissas postas, construindo um novo paradigma para entender a
história.
O mesmo acontece ao observar o pacto dos
governadores como decorrência dessa relação de poder; e não é diferente quando
se debruça sobre a dualidade “cangaceiro, herói ou bandido?”
Honório de Medeiros não se julga fiel da balança
ou solucionador de questões históricas, mas apresenta prismas analíticos e
interpretativos se fiando na base plurimetodológica que adota.
A sua tentativa de biografar Massilon esbarra em
uma série de dificuldades oriundas dos desencontros e conflitos de informação
que permeiam os textos sobre o cangaço e, também, na ausência de dados.
O nome é a primeira verdade a encontrar para
contar Massilon. Com tantos nomes possíveis e pistas, Honório de Medeiros se
encontra diante de um baralho embaralhado: Benevides, Massilon Leite, Massilon
Diógenes, Antonio Leite?
Uma figura e tantos nomes, qual seria?
O pesquisador é aquele que sabe aonde deve ir. E
Honório de Medeiros vai em busca dos registros de nascimento e batismo e nada
encontra, até que uma pista o leva ao inventário do pai do cangaceiro e lá está
o verdadeiro nome de Massilon: Macilon Leite de Oliveira.
Mas não se dá por satisfeito, pois sabe que
pesquisar é entender as circunstâncias das fontes, e se faz a pergunta que
deixa também para o leitor: como saber se o escrivão não se enganou?
Honório de Medeiros entende que encontrar uma
possível resposta não é dirimir uma dúvida. Assim, o autor também revela mais
uma faceta do seu trabalho: um projeto de como se deve construir a história.
Honório de Medeiros é aquele que compreende que
fazer história é não se contentar com o que está posto e, dessa forma, parte
numa viagem em busca de novas fontes, que alimentam novas versões da história,
ciente de que só a par de todas elas, é possível analisar e interpretar.
O pesquisador é também, para Honório de Medeiros,
aquele que reconhece a ausência de fontes de pesquisa e que desconfia, compara,
checa e confronta todos os fatos.
A construção de Massilon, a biografia,
obedece a uma forma de apresentação sistemática que nasce da divisão lógica do
autor para a exposição do tema.
A primeira parte é dedicada ao motivo (capítulo “A
busca por Massilon”) e ao contexto (capítulo “O Rio Grande do Norte e Sertão”).
A segunda parte se volta para a descoberta e a
revelação do biografado: como se chamava, onde e quando nasceu, quais eram as
suas feições — e nesse quesito há toda uma investigação para identificar e
recuperar a presença de Massilon em uma fotografia, desvendando, assim, o único
retrato possível do cangaceiro.
Além disso, o autor aborda temperamento, fatos da
vida, registros outros e, por fim, o fim, a morte do biografado.
Outro não é o percurso que promove ao biografar
Jesuíno Brilhante, tanto nos capítulos que lhe dedica na primeira parte de História
de Cangaceiros e de Coronéis, quanto, cinco anos depois, no terceiro e
último volume da trilogia, dedicado à história de Jesuíno Brilhante e ao
aprofundamento da tese.
O ataque de Lampião a Mossoró também ganha
contorno em História de Cangaceiros e de Coronéis, seguindo o mesmo
caminho de explanação, passo a passo.
Honório de Medeiros introduz, apresenta e passa a
considerar as hipóteses e os envolvidos, cangaceiros e coronéis, e chega ao
campo de análise para, então, propor a sua própria tese para leitura e
intepretação.
Para tanto, o autor trabalha a construção dos
conceitos. É pelo capítulo “Do conceito de cangaço”, na terceira parte do
volume Massilon, que ele começa contrapondo as definições de cangaço e
de banditismo.
Importante nessa conceituação é a definição de
Cascudo: “para o sertanejo [cangaço] é o preparo, carrego, aviamento,
parafernália do cangaceiro, inseparável e característica, armas, munições,
bornais, bisacos com suprimentos, balas, alimentos secos, mezinhas
tradicionais, uma muda de roupa, etc.”
E também estabelece confrontos.
Honório de Medeiros refuta a concepção de bandido
social proposta pelo historiador Eric Hobsbawm. E vai mais longe: é impossível
conceituar e explicar o cangaço em razão das condições geográficas, sociais,
econômicas etc.
Caldeirão que Honório de Medeiros resumirá como
“hipóteses do ambiente social” no seu “Esboço de conclusão”, capítulo de Jesuíno
Brilhante. Essa redução é simplista, considera, e não abarca toda a
complexidade e singularidade do fenômeno.
Em Jesuíno Brilhante, o autor considera
novos aportes para a construção do conceito de cangaceiro, levando em
consideração que seriam figuras entre a santidade e o banditismo. E sustenta
que a teoria do escudo ético, de Frederico Pernambucano de Mello, não é uma
leitura que se aplica exclusivamente ao cangaço, e sim ao banditismo de forma
geral.
Pernambucano teria partido, considera Honório de
Medeiros, da noção de fator moral apresentada por Câmara Cascudo em Vaqueiros
e Cantadores, que, por sua vez, teria bebido na fonte de Felipe Guerra, em Ainda
o Nordeste.
Tanto a noção de escudo ético quanto a noção de
fator moral consideram a justificativa moral do cangaceiro para aderir ao
cangaço como fator determinante, hipótese que Honório de Medeiros propõe que
possa ser substituída por uma teoria mais abrangente.
Já no estudo que empreende acerca de Câmara
Cascudo e o cangaço — adendo do volume Jesuíno Brilhante —, investiga a
construção e o molde do pensamento cascudiano acerca do tema.
A perspectiva da ânsia de grandeza e impulso à
revolta pessoal, que serve para pensar o cangaço, lerá em Bertrand Russell;
como colherá em Albert Camus a noção de homem revoltado, que é aquele que,
inconformado, reage, para então propor a leitura da figura do cangaceiro a
partir da noção de outsider proposta por Howard S. Becker e Norbert Elias.
O outsider é o transgressor, o desviante, o
excêntrico que não espera viver com as regras estipuladas pelo grupo. Dessa
maneira, Honório de Medeiros propõe entender a figura do cangaceiro pelo prisma
do inconformismo.
Compreender, e não julgar, alerta o autor. E,
assim, vai chegar ao conceito de cangaceirismo: é a história dos inconformados,
revoltados, outsiders.
Outro conceito macro é o conceito de coronelismo,
que está atrelado a uma compreensão da estrutura de poder feudal no Brasil
monárquico e republicano. Honório de Medeiros se valerá do conceito de
coronelismo traçado por Raymundo Faoro em Os Donos do Poder.
Seria o coronelismo aquela mesma estrutura de
poder que se verifica na Europa feudal, um mundo de senhores arbitrários, cuja
vontade era a lei, associados ao clero, proprietários de terras e do subjugo
dos homens. O coronelismo é, portanto, uma forma de exercício do poder.
Outros aportes sustentam a construção do seu
pensamento teórico. Honório de Medeiros parte da ciência por uma perspectiva
ampla e transdisciplinar como caminho possível.
O autor considera o racionalismo crítico do
filósofo britânico Karl Popper para construir uma abordagem científica e aplica
as regras do método científico para propor uma lógica das informações como
forma de validar ou não as hipóteses e, assim, escrever a história.
O autor também vai se valer da noção de campo
social do sociólogo francês Pierre de Bourdieu, que compreende a realidade como
uma malha aberta, cujos pontos de interseção, os atratores sociais, congregam
fatos e ações semelhantes, formando uma malha social, ou seja, um campo.
Essa compreensão de campo social lhe permite observar
cangaço e coronelismo como fenômenos do mesmo campo social, o campo social do
poder.
Ao considerar o cangaço um fenômeno social,
Honório de Medeiros parte do postulado do cientista político, sociólogo e
antropólogo francês Émile Durkheim, em As Regras do Método Sociológico,
e equipara fato social a fato natural, ou seja, considera os fatos sociais como
passíveis de teste, comprovação e validação.
O fenômeno, portanto, pode ser comprovado pelas
suas leis de recorrência, e as hipóteses levantadas podem ser testadas. Dessa
forma, considera Honório de Medeiros, os fatos são passíveis de serem testados
para serem comprovados ou não.
Outra contribuição importante no construto da sua
proposta é a aplicação da teoria da evolução, do biólogo britânico Charles
Darwin.
Honório de Medeiros se apropria do darwinismo ao
compreender o comportamento humano como uma evolução constante, uma busca pela
sobrevivência e adaptação ao meio, e se aproxima da corrente da bio-história.
No que tange ao estudo das relações de poder, o
referencial é o cientista político, jurista e historiador italiano Gaetano
Mosca e sua teoria de classe política. Mosca entende que um fenômeno não deve
ser apenas estudado em sua forma concreta ou apenas nas suas manifestações
formais. É preciso compreender a dinâmica que se esconde e sustenta as relações
de poder e interesse e, assim, compreender que os grupos funcionam a partir dos
seus interesses de poder. O cangaço, nessa leitura, apresenta-se como uma
manifestação de poder e revolta dos excluídos.
É a partir dessa perspectiva e da junção dessas
partes que o autor conecta cangaceiros e coronéis e estabelece o cangaço como
resultado das relações de poder, e é assim que também escreve uma história do
poder.
Honório de Medeiros lança nos três volumes de sua
trilogia, e em quase duas décadas de pensamento e reflexão, uma nova
perspectiva teórica, metodológica e conceitual para a pesquisa e a escrita da
história, abrindo as portas da história no Rio Grande do Norte, dos estudos
sobre o cangaço e sobre as relações de poder, para uma nova perspectiva no
século XXI.
GUSTAVO SOBRAL é jornalista e escritor. Publicou e organizou diversos livros, dentre os quais “As Memórias Alheias” e “Os Fundadores”.
Um comentário:
Sensacional !!!!
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