* Prof. Dr. Gilson R. de M. Pereira
É possível
dizer algo novo sobre o Cangaço e sobre o Coronelismo, tão exaustivamente
estudados? O que justifica debruçar-se sobre um assunto aparentemente tão
esgotado? É possível acrescentar uma informação crucial, uma perspectiva
diferente, fazer algum avanço nas análises até aqui feitas? Parece que, pelo
menos em relação ao material empírico, não se pode esperar muita coisa, visto
que, exceto por um ou outro documento, uma foto, uma carta, que ainda eventualmente
possa aparecer, tudo já foi muito esmiuçado. Se isso estiver correto, então não
é no âmbito do protocolo que se pode ampliar o que se conhece sobre cangaceiros
e coronéis, porém nos métodos e nas análises do material disponível e esta é a
contribuição de Histórias de Cangaceiros e Coronéis, Editora Sebo Vermelho, de
autoria de Honório de Medeiros, recentemente lançado.
O que faz de
Histórias de Cangaceiros e Coronéis um marco, um determinante simultaneamente
teórico e prático nos estudos sobre o coronelismo e o cangaço, é a mobilização,
em objetos precisos, do modo de análise estrutural. Sintetizando, e sem
antecipar o conteúdo do livro, o autor, de forma novidadeira, submete o cangaço
e o coronelismo a um método de análise que privilegia as relações entre os
agentes e as instituições como princípio de conhecimento do real, quer dizer,
como princípio de inteligibilidade da particularidade de um mundo social
situado e datado. Para isto, Honório se apropria do conceito de “campo social”,
formulado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, e o aciona a fim compreender
e dar a compreender a teia de relações que faz de cangaceiros e coronéis
opostos e complementares no proto-campo político do Nordeste brasileiro no
período do final do Segundo Império à década de 1930. Digo proto-campo
político, pois neste período o campo político ainda não havia se autonomizado e
estava imerso numa totalidade social, difusa e parcialmente diferenciada, que
anexava a política à economia, à tradição e à religião.
O credo metodológico
de Histórias de Cangaceiros e Coronéis não é formalizado no livro, e nem seria
preciso, mas é esboçado às páginas 225-226. Assim, o vetor epistemológico
adotado é claro: vai do racional ao real, de acordo com a máxima sociológica
segundo a qual é o mundo social – cientificamente construído – que explica os
indivíduos e não o contrário. E para lançar luz nas práticas e representações
de cangaceiros e coronéis, Honório recorre não a um vago “contexto social”, nem
aos imprecisos “determinantes em última instância da economia”, mas ao campo,
ainda não inteiramente estruturado, é bem verdade, no qual se disputavam os
móveis e interesses políticos da época.
Assim sendo, esse
poderoso recurso analítico permite a Honório de Medeiros ver mais longe e dizer
coisas não sabidas sobre fatos já conhecidos. As práticas de cangaceiros e
coronéis, desse modo, saem do arbitrário, do acaso, do irracional e se
encaixam, ainda que na forma de conjecturas, como reconhece o autor, num
cenário interpretativo que tem a força da razoabilidade. Na construção deste
cenário explicativo, é particularmente interessante o uso das genealogias,
recurso fartamente utilizado pelo autor. A garimpagem das relações familiares,
dos compadrios e das linhagens não é no texto um mero exercício de erudição e
virtuose investigativa, mas um modo de reconstruir a trama das
interdependências capazes de conferir sentido aos atos aparentemente mais
díspares. Embora pareça extenuante ao leitor desatento, as genealogias auxiliam
na construção da economia das trocas materiais e simbólicas entre as famílias,
os clãs, os grupos e as facções em disputa pelo poder, em luta pela honra e
pela posse de recursos escassos. Assim, é lícito afirmar que em Histórias de
Cangaceiros e Coronéis o autor não é tão somente um genealogista inspirado, mas
um topógrafo empenhado em descrever a topologia do já mencionado proto-campo
político. Ao fazê-lo, ao minuciar a teia de relações familiares, de compadrio e
de amizade (e de inimizade), o autor repõe ao mesmo tempo as posições relativas
ocupadas pelos diversos agentes no estado do proto-campo político à época.
Neste caso, o desafio enfrentado pelo autor foi o de mostrar o funcionamento da
lógica prática – esta lógica sem lógicos – capaz de fazer compreender o que os
agentes fazem e como e porque o fazem.
Em Histórias de
Cangaceiros e Coronéis, coronéis e cangaceiros partilham do mesmo ethos e do
mesmo pathos, pois possuem os mesmos esquemas de pensamento e ação. Isso não
significa juntá-los indistintamente num único cesto informe: a análise
estrutural separa o que o vulgo junta e junta o que o vulgo separa. O que
Honório junta (e o vulgo separa): cangaceiros e coronéis na mesma trama do
poder; o que Honório separa (e o vulgo junta): os cangaceiros dos marginais de
feira (vide as referências quer à situação econômica de relativa folga das
famílias de alguns cangaceiros ou mesmo à estirpe nobre de outros).
Mas unir coronéis a
cangaceiros não seria muito expressivo do ponto de vista analítico, pois ainda
seria preciso identificar as distinções nas semelhanças. E, mais uma vez de
forma adequada, Honório procura o princípio explicativo das distinções na
hierarquia do proto-campo político de então, ou seja, na legitimidade que
coronéis possuíam e cangaceiros, não. As alianças conjunturais – de interesses,
de ódios, de intrigas, inimizades e amizades – unem o cangaço a frações do
coronelismo, mas a legitimidade deste último o demarca do primeiro. É bom
lembrar que os cangaceiros não foram indiferentes à legitimidade, a exemplo da
“patente” de capitão de Virgulino Ferreira, sempre anunciada com orgulho.
O capital de
legitimidade dos coronéis e o déficit de legitimidade dos cangaceiros pesarão
na reprodução posterior dessas duas experiências políticas típicas do Nordeste
brasileiro no já mencionado período do final do Segundo Império à década de
1930. O coronelismo, em razão dos trunfos materiais e simbólicos que dispunha e
da legitimidade amparada nos poderes do Estado, encontrará, como o autor
menciona, formas de sobrevivência, ou seja, de reprodução ampliada quando da
modernização do País. As modernas oligarquias e as linhagens familiares que,
atualmente, dominam a política no Nordeste descendem do coronelismo. Os
cangaceiros, por sua vez, justamente em razão da posição subalterna que ocupavam
no proto-campo político durante o mesmo período e da ausência de legitimidade,
sucumbiram e foram extintos. Assim, é apenas por um abuso terminológico que
hoje se fala em “novo cangaço” ao mencionar os bandos de facínoras que roubam
bancos e aterrorizam as pequenas cidades do interior. Não há nenhuma semelhança
tanto na forma como no conteúdo.
Cangaceiros e coronéis não emergem das 285 páginas de
Histórias de Cangaceiros e Coronéis inteiriços como se saídos dos mitos e dos
contos de fadas, porém contraditórios, dilacerados, ora heroicos, ora
pusilânimes, quase sempre horríveis e sombrios. São os vitoriosos e os vencidos
de um mundo caracterizado, para usar a expressão de Johan Huizinga a propósito
do declínio da idade média, pelo “teor violento da vida”. Afinal, Histórias de
Cangaceiros e Coronéis é um livro cheio de atrocidades (“matou, emboscou,
decapitou, deflorou, ultrajou, espancou cruelmente” são palavras amiúde
encontradas). Contudo, restituí-los – os ofendidos e os ofensores – em sua
humanidade, sem preconceitos, eis um inegável mérito da análise estrutural
empreendia por Honório de Medeiros.
Em razão do alcance
analítico dos resultados e do manejo modelar do método, penso que, doravante,
qualquer ensaio que pretenda fazer avançar o conhecimento sobre o coronelismo e
o cangaço deverá, necessariamente, interpelar Histórias de Cangaceiros e
Coronéis.
* Gilson Ricardo de Medeiros Pereira possui graduação em Licenciatura em Física pela Universidade de São Paulo (1987), graduação em Bacharelado em Física pela Universidade de São Paulo (1983), mestrado em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (1992) e doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo (2001). Trabalhou como professor efetivo na Universidade Regional de Blumenau, SC, e, atualmente, é professor do quadro da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, atuando no Programa de Pós-Graduação, mestrado em educação. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Sociologia da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: educação, políticas públicas, administração da educação, periódico especializado e disciplina acadêmica.
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