Raúl Zaffaroni
Do Substantivo plural
O jurista Eugenio Raúl Zaffaroni, um dos penalistas mais destacados do mundo contemporâneo, sem dúvida o mais expressivo da América Latina, membro da Suprema Corte argentina desde 2003, deu uma declaração que me parece cristalina sobre o julgamento de Baltasar Garzón na Espanha. Ela é particularmente importante porque suspende qualquer discussão sobre se Garzón estava ou não correto ao autorizar interceptações telefônicas no caso Gurtel (base para a sua primeira condenação pela Suprema Corte espanhola) e passa a discutir o que interessa: a exoneração de um juiz com base numa decisão tomada por ele. Como a declaração está no YouTube, em espanhol, achei que valia a pena transcrevê-la e traduzi-la ao português para facilitar sua circulação em nossa língua.
Zaffaroni é autor de vasta obra, incluindo-se aí um livro que este leigo cara-de-pau tem a petulância de sugerir a qualquer um que se interesse por Direito Penal: o Manual de Direito Penal Brasileiro (7ª edição revista e atualizada, Editora Revista dos Tribunais, 2008), a adaptação para o Direito brasileiro, feita em co-autoria com José Henrique Pierangeli, do seu clássico Manual do Direito Penal (agradeço a Túlio Vianna pela minha introdução inicial a esta obra). O primeiro, o segundo e o quinto capítulos da obra, “Controle Social, Sistema Penal e Direito Penal”, “O Horizonte de Projeção do Saber do Direito Penal” e “Evolução da Legislação Penal”, são leitura obrigatória para quem queira ter uma introdução a esta perversa e fascinante máquina. Zaffaroni é fluente em português e entre seus inúmeros doutorados honoris causa, há um da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Já lecionou na Cândido Mendes e mantém inúmeros contatos com profissional do Direito no Brasil.
Aí vai, então, o pronunciamento de Zaffaroni sobre o julgamento de Garzón, relevante para todos os que se interessam por Direito e Justiça:
É muito alarmante para todos os juízes, para todos os juízes do mundo. Ou seja, aqui há um problema básico. Qualquer que seja a ideia que se tenha – de que Garzón estivesse errado, de que seu ponto de vista fosse incorreto etc., isso não importa. O que importa é que há uma ditadura de um organismo colegiado do próprio Poder Judiciário que, em vez de se limitar a revogar uma sentença com a qual ele não concorda, pretende exonerar um juiz. Isso é que é grave.
Isso significa transformar o Poder Judiciário numa corporação verticalizada. O Poder Judiciário não é uma corporação verticalizada. Os juízes temos a mais absoluta liberdade de critério para interpretar o Direito como sinceramente acreditamos que deve ser. Podemos errar, e para isso existem organismos colegiados: para corrigir as sentenças. Mas no dia em que se perca a independência interna, bem, o Poder Judiciário deixa de ser Poder Judiciário e há um grupo, um corpo que impõe os seus critérios de cima para baixo e que pune os outros porque os considera seus inferiores, seus amanuenses, seus subordinados.
Não. Entre os juízes, não há hierarquias, entre os juízes há diferenças de competência. Diferenças de responsabilidade pela competência, sim, é verdade. Mas não hierarquias. Há uma distorção temporal entre o processo, o requerimento do que seja, e a sentença definitiva. Para encurtar isso, vamos inventando coisas: os recursos, as medidas cautelares e, ao longo dos anos, estas invenções feitas para tentar reduzir esse hiato, que pode levar a uma absoluta injustiça, foram se ordinarizando, foram se transformando em comuns, e aparecem recursos que duram anos, quando se trata de uma medida urgente de proteção de um direito.
Então, cuidado. Acredito que estamos inventando uma cadeia de medidas urgentes em vez de agarrar o touro pelos chifres e sentar para dizer “olha, como faremos para conseguir uma aplicação mais rápida do direito de fundo e evitar todas essas coisas, ou pelo menos reduzir o seu âmbito”.
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