Oliveira de Panelas
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Honório de Medeiros
Aqueles tiros abalaram o Brasil; foram desferidos no interior de um restaurante de luxo por um político de expressão nacional contra um ex-governador e trouxeram, para o presente, um passado não muito distante de questões pessoais resolvidas, pelas elites, por intermédio da violência física – a mesma que originara o homicídio de João Pessoa, João Dantas e João Suassuna, todos com nome começando em João, aquela mesma que não perdoara a beleza e inteligência transgressora de Anaide Beiriz, ainda aquela mesma que fomentara o levante de Princesa, Massilon, Sabino Gomes, o coronelismo e o cangaço, esse retrato bifronte de um Sertão tão peculiar quanto real.
Pois falo em Ronaldo Cunha Lima a quem vi decrépito no físico, preso a uma cadeira de rodas, o braço esquerdo imobilizado e voltado para dentro, os dedos recurvos, enquanto a mão direita, erguida, desenhava o entorno das palavras que saíam ligeiras, encadeadas pelo ritmo, musicalidade e métrica, na resposta ao desafio brincalhão do gênio da raça Oliveira de Panelas, provando a si e aos outros que sua mente continuava intacta. Viajei no tempo enquanto o escutava. Lembrei-me de uma Convenção do PMDB, muitos anos atrás, para a qual fora com meu pai somente para escuta-lo discursar em versos, de improviso. Ali fora também atraído pela inteligência luminosa do homem que ganhara um concurso de perguntas e respostas respondendo sobre Augusto dos Anjos. O tempo fora inclemente.
Difícil acompanhar Oliveira de Panelas. Estávamos na Bienal do Livro de João Pessoa. Os estandes já tinham sido visitados. Eu já procurara o que me interessava: as publicações do Senado Federal, Literatura de Cordel e o Sebo Cultural. Fizera as compras que me interessavam. Marcara uma visita ao Sebo para a manhã seguinte. Então escutei Oliveira de Panelas. E, mais uma vez, pensei quão rico de talento este País é. Como não admirar, extasiado, uma demonstração de genialidade daquela? Durante um tempo considerável as palavras foram brinquedos artisticamente engatados uma nas outras, compondo um traçado brilhante tanto quanto ao conjunto como quanto a cada elemento isolado. O começo de cada repente deixava-nos angustiados – será que ele consegue retomar o ponto de partida? Qual o quê. Santa inocência...
No outro dia o espanto com o Sebo Cultural: uma entrada singela, em uma casa pequena de rua estreita; um corredor conduzindo a uma sala no qual está postado, perpendicularmente, um balcão; e do lado direito, tomando todos os espaços possíveis de uma área imensa, milhares e milhares de livros aos quais se chega através de escadas, mezaninos, degraus, corredores entre estantes, labirintos, pó, e aquele peculiar cheiro de livro velho. Espantoso. Lembra um conto de Borges. Lembra Borges. Borges. E entram e saem pessoas e mais pessoas; sobem; descem; conversam – é um mercado persa. Caro, por sinal. Surpreendi-me com o preço de uma segunda edição de “Vingança, Não!”, do Pe. Pereira, não muito bem conservado: R$ 62,00.
No final, o contorno e o mistério da Lagoa que é o centro de João Pessoa. Ali, muitos morreram e não foram recuperados, dizem. Suas águas escuras, olhadas em um final-de-tarde chuvoso despertam velhos medos imemoriais de desconhecidos deuses úmidos e frios, distantes como aquelas estátuas de pedra dos templos Maias. Pergunto a uma senhora que passa se é verdade que não se consegue dragar a lagoa. Ela me olha e responde: “tentou-se, mas, inexplicavelmente, as máquinas sempre quebravam...” E me endereçou um meio sorriso zombeteiro, à guisa de despedida.
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