sexta-feira, 17 de outubro de 2025

O PODER E A RAZÃO ASTUTA

 



Jean Jacques Rousseau


* Honório de Medeiros



Um dos mitos fundantes da nossa concepção de Estado é a do contrato social. 

Por seu intermédio, cedemos nossa liberdade absoluta ao Estado para que sejamos impedidos de nos destruirmos uns aos outros.

Tal noção, até onde sabemos, foi pela primeira vez exposta por Licofronte, discípulo de Górgias de Leontini, como podemos ler na Política, de Aristóteles (cap. III):

De outro modo, a sociedade-Estado torna-se mera aliança, diferindo apenas na localização, e na extensão, da aliança no sentido habitual; e sob tais condições a Lei se torna um simples contrato ou, como Licofronte, o Sofista, colocou, "uma garantia mútua de direitos", incapaz de tornar os cidadãos virtuosos e justos, algo que o Estado deve fazer.

Muito embora um estudioso "outsider" do legado grego, tal qual I. F. Stone, defenda que a primeira aparição da "Teoria do Contrato Social" está na conversa imaginária de Sócrates com as "Leis de Atenas" relatada no “Críton”, de Platão, há quase um consenso acadêmico quanto à hipótese "Licofronte" estar correta.

É o que se depreende da leitura de “Os Sofistas”, de W. K. C. Guthrie, ou da caudalosa obra de Ernest Barker.

"Bellum omnium contra omnes", guerra de todos contra todos até a auto-aniquilação no Estado de Natureza, é o que ocorreria se imperasse a liberdade absoluta, diz-nos Hobbes no final do Século XVI, início do Século XVII - recuperando a noção de contrato social - e não houver a criação de um artefato – o Estado –, assegurando-se, assim, a sobrevivência dos homens quando estiverem em contato uns com os outros, pois haverá a submissão da vontade de todos à vontade de um só ou de um grupo, e esta, ou estes, atuará em tudo quanto for necessário para a manutenção da paz comum.

Entretanto é com Jean Jacques Rousseau, após John Locke, que se firmou o mito fundante do contrato social, bem como a ideia de Estado conforme a concebemos ainda hoje, influenciando diretamente a Revolução Americana e a Francesa. 

Em O Contrato Social, Rousseau põe na vontade dos homens, da qual surge o Estado, a origem absoluta de toda a lei e todo o direito, fonte de toda a justiça.

O corpo político, assim formado, tem um interesse e uma vontade comuns, a vontade geral de homens livres.

Quanto a esse corpo político, José López Hernández em Historia de La Filosofía Del Derecho Clásica y Moderna, observa que Rousseau atribui o poder legislativo ao povo, já que este, existente enquanto tal por intermédio do contrato social detém a soberania e, portanto, todo o poder do Estado.

As leis, inclusive a do "Contrato Social", que emanam do povo, assim as vê Rousseau: são atos da vontade geral, exclusivamente”; “é unicamente à lei que todos os homens devem a justiça e a liberdade”; “todos, inclusive o Estado, estão sujeitos a elas.

O ideário acima exposto, no qual a lei a todos submete por que decorrente da vontade geral do povo – esta, frise-se mais uma vez, surgida graças ao "Contrato Social" e detentora da soberania - pode ser encontrado em obras muito recentes, como o Curso de Direito Constitucional, primeira edição de 2007, do Ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil Gilmar Ferreira Mendes e outros.

Às páginas 37, lê-se:

Por isso, quando hoje em dia se fala em Estado de Direito, o que se está a indicar, com essa expressão, não é qualquer Estado ou qualquer ordem jurídica em que se viva sob o primado do Direito, entendido este como um sistema de normas democraticamente estabelecidas e que atendam, pelo menos, as seguintes exigências fundamentais: a) império da lei, lei como expressão da vontade geral; (...)

Assim como é encontrado, expressamente, enquanto cláusula pétrea, imodificável, na Constituição da República Federativa do Brasil, parágrafo único do seu artigo 1º:

Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

Há algo de estranho, portanto, na doutrina do “ativismo judicial” que viceja célere nos tribunais do Brasil, principalmente no Supremo Tribunal Federal.

Entenda-se, aqui, como “ativismo judicial”, o “suposto” papel constituinte do Supremo Tribunal Federal em sua função de reelaborar e reinterpretar continuamente a Constituição, conforme pregação sutil do Ministro Celso de Mello em entrevista ao Estado de São Paulo, e a atividade judicante de meramente preencher uma “possível” lacuna legal ou mudar o sentido de uma norma infraconstitucional já existente por meio de uma sentença, baseando-se em princípios difusos e indeterminados da Constituição Federal, estratégia empregada na Itália, Alemanha e pelo próprio STF.

Não é por razões ideológicas ou pressão popular. É porque a Constituição exige. Nós estamos traduzindo, até tardiamente, o espírito da Carta de 88, que deu à corte poderes mais amplos, diz o Ministro Gilmar Mendes.

Pergunta-se: teria o judiciário legitimidade, levando-se em consideração a doutrina exposta acima, para avançar na seara do legislativo, passando por cima da soberania do povo em produzir leis através de seus representantes, seja preenchendo lacunas (criando leis), seja alterando o sentido de normas jurídicas, seja modificando, via sentença, a legislação infraconstitucional?

 Ainda: teria amparo legal o STF para tanto?

Em que se basearia, qual seria o fulcro dessa atividade de invasão da competência do legislativo ao se criar normas jurídicas através de sentenças, ou modificar o sentido de outras por meio de interpretações?

Seria, como deixa transparecer o presidente do STF em suas entrevistas, por que a Constituição Federal tem um “espírito” e somente os integrantes daquela Casa, em última instância, conseguem enxergá-lo em sua essência última?

Que espírito é esse? O mesmo ao qual se refere São Paulo: a letra mata, o espírito vivifica?

Autoritário, tal argumento.

Sob o véu de fumaça que é a noção de que haja um “espírito constitucional” a ser apreendido (interpretado segundo técnicas hermenêuticas somente acessíveis a iniciados – os guardiões do verdadeiro e definitivo saber) está o retorno do mito platônico das formas e ideias cuja contemplação seria privilégio dos Reis-Filósofos.

É a astúcia da razão a serviço do Poder.

Platão, esse gênio atemporal, legou aos espertos, com sua gnosiologia a serviço de uma estratégia de Poder, a eterna possibilidade de enganar os incautos lhes dizendo, das mais variadas e sofisticadas formas, ao longo da história, que somente “alguns”, os que estão no comando, podem encontrar e dizer “o espírito” da Lei, o certo e o errado, o bom e o mal, o justo e o injusto.

O mesmo estratagema a Igreja de Santo Agostinho, esse platônico empedernido, por séculos usou para administrar seu Poder: unicamente a ela cabia ligar a terra ao céu, e o céu à terra, porque unicamente seus príncipes sabiam e podiam interpretar corretamente o pensamento de Deus gravado na Bíblia.

E, assim, como no Brasil a última palavra acerca da “correta” interpretação de uma norma jurídica é do STF, e somente este pode “contemplar” e “dizer” o verdadeiro “espírito das leis”, nos moldes dos profetas bíblicos e em sua essência última, mesmo que circunstancial, estamos nós agora submetidos ao autoritarismo dos ativistas judiciais lá encastelados.
 

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quarta-feira, 15 de outubro de 2025

TUDO É IGUAL DE MANEIRA DIFERENTE

 

A Pedra da Boca

* Honório de Medeiros         


No centro do redondel, o domador controla o cavalo sem qualquer arreio. É somente ele e o animal. Nada mais. Ao redor, quedamos fascinados, derreados por sobre a cerca, emoldurados pelas pedras gigantescas que margeiam, um pouco ao longe, aquele pequeno vale, sob um sol já esmaecido de final-de-tarde.

Sertão.

A mão esquerda controla a nobre cabeça do animal. A direita, terminando no dedo indicador esticado, os quartos, o "motor". Os olhos do domador captam qualquer nuance na postura do animal. E vice-versa. Há uma perfeita integração entre eles. Faz-se silêncio no crepúsculo. Ouvem-se as cigarras. Os passos do cavalo e seus bufidos. Algum estalar de língua. Pássaros que passam fendendo o ar deixando seu registro sonoro.

Como se mandasse ondas de energia invisível, a cada ação do domador corresponde uma reação imediata do cavalo. Naquele momento ambos são somente um.

Lembrei-me, então, de um antigo filme em preto-e-branco no qual um idoso "sensei" de alguma dessas artes marciais esotéricas era atacado por todos os lados por alunos, a seu convite. Não havia contato físico entre eles. Antes da chegada, a cada gesto do mestre, os alunos desmoronavam, esbarravam em um muro invisível, ficavam imobilizados. Seria aquilo possível? Eu duvidava, sempre duvidei. Mas ali, naquele instante, o domador não demonstrava um controle suave e eficaz, sobre o cavalo, que eu somente imaginava possível à base de arreios e gritos?

"Uma questão de sinergia", disse-me ele, depois, quando já era noite. "A noção de unidade, a qual você alude, é a essência de todos os movimentos; não há necessidade de violência; um movimento levemente brusco, de minha parte, é perfeitamente assimilado por ele, contanto que estejamos conectados."

Percebo, mas não compreendo. É complexo. Penso que talvez não seja possível exprimir essa dinâmica com palavras. Algo para além da razão.

Encerrada a demonstração, a noite cai. Jantamos no alpendre da casa principal. Conversamos. É acesa uma fogueira. Longas toras rústicas cercam as chamas, em forma de círculo. São os assentos sobre os quais nos acomodamos. Na abertura do círculo, a uma pequena distância, uma tela é postada e, antes dela, um projetor. O domador, agora, é o fotógrafo famoso. Sua obra, pequena e consistente, densa, até mesmo brutal, minimalista, internacionalmente reconhecida, será apresentada sob a forma de ensaios fotográficos.

As sequências começam. Primeiro, um ensaio acerca de um lixão, onde o fotógrafo viveu durante três meses para extrair aquela essência que desfila ante nossos olhos; depois, um recorte impressionante do dia-a-dia de uma família sertaneja paupérrima cujo epicentro é uma formidável e expressiva criança tetraplégica; finalmente, em um voo de natureza essencialmente subjetivista, imagens de pedras, aquelas mesmas onipresentes naquele espaço-tempo ancestral no qual estão postadas suas raízes, sugerindo percepções metafísicas.

As imagens, sempre em preto-e-branco, colhidas por uma antiga máquina de origem russa, revelam um primor técnico inalcançável sem uma entrega absoluta. As imagens, às vezes, estão levemente desfocadas. Há, nelas, uma suave e proposital distorção, que as tornam quase góticas, induzindo uma ultrapassagem do real.

O Claro/escuro, a distorção dos contornos, a fusão dos nuances, a expressividade diluída de cada fotografado, ressaltada, por exemplo, nos seus olhares, os escassos objetos presentes em cada contexto, tudo propõe uma leitura pensada, exponencialmente repensada.

Não é possível um olhar descomprometido de apreciador de paisagens...

O que há de comum entre o domador e o fotógrafo? Difícil dizer. Lembro-lhe, no final, Musashi, o samurai japonês, o maior dentre eles, autor de "Go Rin No Sho", o livro de tantas e tantas leituras diferentes: a estratégia, o kenjutsu, a póetica, a pintura...

Seus leitores avançados dizem da unidade de tudo quanto há. Musashi aludiu a essa unidade quando nos convidou a perceber que a estratégia para combater um só é a mesma estratégia para combater dez mil.

Entretanto, essa é apenas uma das faces de seu singular pensamento. Há a estratégia para a estratégia. Há a compreensão que a realidade ilusória que nos cerca e envolve é fogo, ar, terra, água e nada. O nada...

Antes mesmo que o domador/fotógrafo soubesse de Myiamoto Musashi, ele me dissera: "tudo é igual, de maneira diferente..."

Então nos dispersamos. Dias singulares, aqueles. Cada um de nós percebeu de forma muito diferente a sessão de ensaios. Há quem interprete as imagens a partir da arte Naïf. Como assim, me pergunto. A ingenuidade retratista Naïf? Estranhos, nós somos. Conseguiríamos encontrar uma unidade nessas "maneiras diferentes" de perceber as imagens? Ou a unidade é constituída dessas maneiras diferentes de percebê-las?

Fomo-nos. O sereno chegara e pedia uma rede macia e um bom cobertor. Amanhã seria um outro dia diferente e igual a todos os outros que o antecederam.

É hora de ouvir estrelas, o vento, o sussurro das árvores, o canto da suindara ou, quem sabe, da mãe da lua...

Fulô da Pedra, final de fevereiro de 2014.


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Texto extraído de "De Uma Longa e Áspera Caminhada", do autor, Editora Viseu, 2022.

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

OS FERNANDES DE QUEIRÓZ DO OESTE E ALTO OESTE DO RIO GRANDE DO NORTE

 


Maria Gomes, esposa de Matias Fernandes Ribeiro


* Honório de Medeiros


I MATHIAS FERNANDES RIBEIRO, A RAIZ.

 

                   É certo que Mathias Fernandes Ribeiro, nascido pela década de 50 do século XVIII, era filho de um casal pernambucano de Goiana, Pernambuco, Francisco da Costa Passos e Violante Martins de Lacerda.

Podemos ler, em Memorial de Família, o seguinte:

Quem consultar o Livro de Registro de Batizados da Paróquia de Missão Velha, Estado do Ceará, que abrange o período de 1748-1764 encontrará, nas folhas 3v. a referência seguinte: "Francisco da Costa Passos, de Goiana, marido de Violante Martins, de idêntica procedência".[1]

 Depois residentes na antiga freguesia de São João Batista da Vila de Princesa, hoje cidade de Açu-RN, Francisco da Costa Passos e Violante Martins de Lacerda deixaram ali numerosa descendência. A sua importância, para este artigo, advém do fato de terem sido os pais de Anna Martins de Lacerda e Mathias Fernandes Ribeiro, cernes da árvore genealógica aqui exposta.[2]

Anna Martins de Lacerda casou-se com o "marinheiro" (nome que, à época, se atribuía aos portugueses) José Pinto de Queiróz, da Serrinha, localizada nas cercanias de Martins-RN, hoje município de Serrinha dos Pintos.

No Cartório do Registro Civil de Portalegre-RN, encontra-se o inventário, datado de 1781, assinado pela viúva do patriarca da Serrinha, falecido em 25 de novembro de 1780, bem como o de Anna Martins de Lacerda, cujo óbito ocorreu 1805.




                   Também é certo que Mathias Fernandes Ribeiro foi casado com Maria Gomes de Oliveira, de quem ficou viúvo com onze (11) filhos: 1. João Silvestre de Oliveira; 2. Antônio Fernandes Ribeiro (casado com uma filha de Domingos Jorge de Queiróz e Sá); 3. José Martins de Oliveira; 4. Francisco Xavier da Silveira; 5. Mathias Gomes Brasil; 6. Cypriano Gomes da Silveira; 7. Maria José do Sacramento (casada com o Coronel Agostinho Pinto de Queiróz); 8. Catharina Gomes (casada com Bento José de Bessa); 9. Ana Martins de Lacerda (casada com o Capitão Mor Alexandre Moreira Pinto); 10. Clara Gomes da Silveira (casada com o Tenente José Lopes de Queiróz), todos legítimos, além de 11. Joana Gomes da Silveira (casada com João Francisco Sampaio), filha natural com Maria da Conceição.[4]

 


Maria Gomes de Oliveira Martins casou-se com Mathias Fernandes Ribeiro

                   O casamento originou os Fernandes de Queiróz; Fernandes de Oliveira; Fernandes Ribeiro; Fernandes Moreira; Fernandes Bessa; Fernandes Lopes; radicados em Pau dos Ferros; Martins; Mossoró; Natal; Ceará; Paraíba e alguns estados do Sul.

Entrelaçaram-se com os Moreira Pinto; Moreira da Silveira e Gomes da Silveira, radicados em Tenente Ananias, Sousa, Cajazeiras, Uiraúna, São João do Rio do Peixe e Ceará; os Claudino Fernandes e Correia de Queiroga, radicados em Luiz Gomes, Tenente Ananias, Cajazeiras, João Pessoa (Paraíba) e Terezina (Piauí); os Vieira da Silva, Vieira Coelho e Fernandes Vieira, radicados em Tenente Ananias, Uiraúna e Sousa (ambas na Paraíba); os Fernandes Maia, Fernandes Rosado Maia, e assim por diante.[6]

                   Mathias Fernandes Ribeiro foi um dos homens mais ricos do seu tempo. Seu inventário foi concluído em 1830, ano do seu falecimento, e relacionou como sendo de sua propriedade, além de escravos, ouro, gado e prataria, as propriedades “Cruz D’Alma”, “Curral Velho”, “Saco”, “Santiago”, “Saco Grande”, “Passarinho”, “Passagem de Onça”, “Gurjão”, “Arapuá”, “Coito” e “Estrela”, dentre outras.

                   Elencou setenta e dois devedores, que lhe deviam um total de quase R$ 27.000.000,00 (vinte e sete milhões de reais) todos relacionados em seu inventário, registrando um total de sessenta e um conto de réis como monte-mor, ou seja, aproximadamente R$ 61.000.000,00 (sessenta e um milhões de reais) em valores de hoje.

Uma fortuna imensa, mesmo para os padrões atuais.[7]

Registre-se que o inventário esteve desaparecido misteriosamente.

Calazans Fernandes comentou que a última vez em que foi visto, estava nas mãos do Major Antônio Fernandes da Silveira Queiróz, o “Major do Exu”, um dos senhores da Serrinha dos Pintos, no ano de sua morte, em 1865.[8] O “Major” era filho de Domingos Jorge de Queiróz e Sá e neto de José Pinto de Queiróz e Anna Martins de Lacerda.

                   Em Genealogia e Fatos do Sertão do Norte de Baixo, Luiz Fernando Pereira de Melo nos dá conta da descoberta do inventário há tanto tempo desaparecido:

                   (...) realizei nova busca na Cidade de Martins, e fui aquinhoado com a descoberta do inventário que se supunha desaparecido, encontrando em seus autos, elucidando todas as controvérsias, um testamento ditado pelo próprio Mathias...[9]

Em nota ao texto, Melo acrescenta que teve acesso ao inventário de Mathias Fernandes Ribeiro “com a ajuda valiosa do pesquisador martinense Júnior Marcelino”.



[1] FERNANDES, João Bosco. Memorial de Família. Terezina: HALLEY/AS-Gráfica e Editora. 1994. MACEDO, Joaryvar. Povoamento e Povoadores do Cariri Cearense. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto. 1985. MELO, Luiz Fernando Pereira de. Barra Bonita: Ler e Saber Gráfica e Editora. 2021.

[2] FERNANDES, João Bosco. O.a.c.

[3] Idem.

[4] MELO, Luiz Fernando Pereira de. O.a.c.

[5] FERNANDES, Calazans. O Guerreiro do Yaco. Natal: Fundação José Augusto. 2002.

[6] FERNANDES, João Bosco. O.a.c.

[7] MELO, Luiz Fernando Pereira de. O.a.c. 

[8] Morte do “Major do Exu”. FERNANDES, Calazans. O.a.c.

[9] MELO, Luiz Fernando Pereira de.


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sábado, 11 de outubro de 2025

ESTAMOS CONDENADOS?

 



Honório de Medeiros

 
De Um Cigano Fazendeiro do Ar, densa biografia de Rubem Braga que devemos a Marco Antônio de Carvalho, colho um trecho da carta que João Neves enviou a Borges de Medeiros em 20 de julho de 1932, na qual ele se refere a Getúlio Vargas, todos companheiros muito próximos na Revolução de Outubro de 1930:

Eu preferia que o Dr. Getúlio Vargas fosse um tirano. Perdôo mais os violentos que os astutos. Mas o nosso ditador é um homem gelado, calculista, escorregadio. Não ataca, desliza. Não enfrenta, corrompe. Não congrega, divide. (...) Desbaratou o poder civil. Desmoralizou o Exército. Aniquilou o sentimento local. Amesquinhou a justiça. Instituiu o regime da delação. Oficializou a vingança contra os que o ajudaram a subir. Esqueceu os compromissos. O favoritismo é uma instituição. A negociata é a regra. Enfim, a República Nova com dois anos de idade incompletos, é mais corrupta do que foi a Velha, com mais de quarenta e um.

Em O 18 Brumário de Luis Bonaparte, Karl Marx, no primeiro parágrafo, afirma que a história acontece “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.

Assim como a terceira, a quarta, a quinta...

Desde o início da história do Homem, até os dias de hoje, mudaram os artefatos: antes, as ferramentas de pedra; hoje, a internet. Não parece ter mudado o Homem.
Percebe-se isso claramente com a leitura de A Assustadora História da Maldade, de Oliver Thomson; Prestígio Editorial, trágica compilação.

História antiga, essa da maldade. Em Thomson, lemos:

O Egito foi unificado por Menés por volta de 3100 a.c. Talvez o primeiro herói conquistador da história (e mesmo ele era semimítico) tenha sido Horus Ro, do Egito, cujo filho era conhecido como "O Escorpião", príncipe que explorou o medo em grande escala para impor sua vontade. Fundou a Iª Dinastia por volta de 3000 a.C. Em honra às suas vitórias, fez sacrifícios humanos a Ra, o deus do Sol. Seu herdeiro, Horus, supostamente matou 381 prisioneiros de guerra e arrancou a língua de 142. Esse é o primeiro registro de um imperialismo sádico e egocêntrico que reaparece de tempos em tempos nos próximos 5 mil anos.

Antigos demais, tais fatos, para que chamem nossa atenção? Leiamos novamente o último parágrafo do texto acima. Agora, leiamos o texto abaixo, do do pensador da modernidade, o sociólogo Zygmunt Bauman, pinçado de Isto Não É Um Diário:

As nações relutam em aprender; e, quando o fazem, é sobretudo a partir de seus erros e equívocos passados, do funeral de suas antigas fantasias. Enquanto o Pentágono rebatiza a Operação Liberdade no Iraque de Operação Nova Aurora, diz Frank Rich, citando o professor Andrew Bacevich, de Boston, "nome que sugere creme para a pele ou detergente líquido", 60% dos americanos creem – agora – que a Guerra do Iraque foi um engano, mais 10% a condenam como algo que não vale a vida dos americanos, e apenas um em cada quatro acredita que essa guerra o tenha tornado mais seguro em relação ao terrorismo. O custo oficial da guerra para os americanos é hoje (no momento em que o presidente Obama pede aos americanos que "virem a página sobre o Iraque", estimado em US$ 750 bilhões. Por esse dinheiro, cerca de 4.500 americanos e mais de 100 mil iraquianos foram mortos, e pelo menos 2 milhões de iraquianos foram forçados a se exilar, enquanto o Irã acelerou seu programa nuclear, e "Osama bin Laden e seus fanáticos" foram liberados "para se reagrupar no Afeganistão e no Paquistão".

De lá para hoje, o que mudou? Se mudou, não foi para pior?

Estamos condenados?

Que lhes parece?


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Arte: rabiscosdeumlapisdesgastado.blogspot.com

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

DE PAI E MÃE, OS MEUS


 Francisco Honório de Medeiros e Aldeiza Fernandes de Sena Medeiros


* Honório de Medeiros

 

Para Elza Sena, onde estiver.


Para quem não gosta de adjetivos, aviso logo: não leia o texto.

Aliás, não sei por que essa neurose contra adjetivos. Um adjetivo é um instrumento: se mal usado, compromete; se bem usado, acrescenta.

Texto somente com substantivos é igual à mulher sem um toque de batom, um ajeitado no cabelo, um olho delicadamente delineado, uma gota de perfume. Falta poesia.

Pois bem, a minha mãe era extrovertida, determinada, solar; meu pai, por sua vez, introvertido, cismarento, noturno. Antípodas. Completavam-se.

Entendiam-se pelo olhar. Conversavam pouco entre eles, falando. Tinham longas conversas em silêncio.

Poucas vezes os vi amuados um com o outro. Anos depois, já maduro, minha mãe me confessou que muito cedo tinham feito um pacto: se brigassem não dormiriam sem se beijar e desejar boa noite. “Quebrava logo o gelo”, disse-me.

Lá em casa as tarefas eram bem demarcadas: ela, administração; ele, o financeiro. Quem lidava, por exemplo, com o pessoal que vinha fazer algum serviço na nossa antiga casa às margens da Igreja de São Vicente, em Mossoró, era minha mãe.

Dura, detalhista, sem papas na língua, amenizava tudo isso tratando os trabalhadores por igual e os convidando a partilharem nossa mesa comum.

Papai, discreto, observava tudo de longe. E ficava fazendo contas, controlando o parco orçamento doméstico, providenciando o pagamento.

Demonstravam afeto de formas bastante diferentes: mamãe abraçava, beijava, ficava arrodeando cada um de seus filhos e sobrinhos, perguntando, dando conselho, participando diretamente.

Papai somente me beijou uma vez, em toda a sua vida, quando me viu sair de casa, aos quatorze, em busca das ilusões da cidade grande. Beijou-me na testa. Marejou os olhos. Fiquei abismado. Engoli meu choro.

Amava de longe, de forma mansa, mas intensa. Chegava na hora certa, maneiroso, solidário. Mas não era de demonstrações afetivas.

Profundamente religiosos, assim o eram, também, de forma muito diferente: enquanto ela cria de uma forma bastante prática, manifestada por intermédio de sua participação em tudo que dizia respeito à Igreja de São Vicente, do coral às novenas, ele, pelo seu lado, movia-se silenciosamente nos meandros da fé.

Quando morreu, era Ministro da Eucaristia. E, ao contrário de minha mãe, era dado às orações solitárias, conversas particulares entre ele e os santos de sua estima.

Ambos de famílias antigas, tradicionais, sequer pegaram o fim do fausto familiar. Foram, desde o início, e com muita dificuldade, da pequena classe média: minha mãe funcionária pública, meu pai empregado de uma empresa familiar de beneficiamento de algodão.

No final, dois aposentados, contando cuidadosamente o dinheiro mirrado que o Governo depositava em suas contas bancárias no final de cada mês.

Entretanto, nada relevante lhes faltou: a casa era antiga, mas boa, a mesa era farta, os filhos estudavam em bons colégios. Tinham, até mesmo, um fusquinha comprado zero quilômetro com o dinheiro do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) da aposentadoria de meu pai.

Eram respeitados e queridos na cidade que escolheram para viver e morrer.

Penso, hoje, que minha mãe foi feliz, vivendo sempre o momento presente, de sua forma intensa, visceral. O mesmo não sei dizer de meu pai.

Terá sido ele feliz? Acho que ter se afastado da sua viola amada, por injunções familiares, e trabalhado anos a fio no mesquinho e hostil ambiente da empresa onde era empregado, acentuou sua melancolia de nascença.

Entretanto tinha orgulho dos filhos. E seus olhos claros, verdes, esquivos, brilhavam quando chegavam as boas notícias que cada um de nós lhe levava. Aparecia um sorriso rápido no rosto. E sua doçura natural se acentuava.

Desde há muito desisti de me questionar acerca da existência de Deus. Qual minha mãe, acredito e pronto. Ponto final.

Sigo Blaise Pascal: em crer, mal não há.

Talvez haja, também, um fio de esperança a alimentar minha crença: a de que, morrendo, possa reencontrá-los, sentir o abraço com cheiro de lavanda inglesa de minha mãe e o sorriso de meu pai em sua cadeira de balanço enquanto dedilhava a viola.

Deo gratias, laeti simus.


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segunda-feira, 6 de outubro de 2025

ARIANO SUASSUNA E A ARISTOCRACIA PELO ESPÍRITO

 

Ariano Suassuna


* Honório de Medeiros


Muito interessante a apresentação que Ariano Suassuna fez da obra de um seu parente, Raimundo Suassuna, acerca da genealogia da família que lhes deu o sobrenome. Trata-se de Uma Estirpe Sertaneja Genealógica da Família Suassuna (A União; 1993; João Pessoa).

Ariano, a quem Raimundo Suassuna pedira que fizesse uma apresentação "simpática", de seu livro, praticamente escreveu um ensaio no qual abordou dois temas que me chamaram a atenção: seu orgulho por ser um "Suassuna"; e o seu conceito de "aristocracia". 

É preciso que se diga que o orgulho de Ariano com o fato de pertencer a essa lendária família nordestina é decorrente da intensa, profunda, ligação que ela tem com nosso Sertão. 

Por outro lado, Ariano entende que existe uma aristocracia pelo espírito, que é profundamente diferente daquela resultante de títulos nobiliárquicos. 

Ele estabelece essa diferença confrontando o "homem", com o "cortesão".

Quanto ao cortesão, chega a manifestar, implicitamente, um verdadeiro asco dos títulos comprados, recebidos por favores prestados através de subserviência, barganhados, ou oriundos de qualquer outra forma utilizada por serviçais do Poder que caracterizam, em última instância, o comportamento dos alpinistas sociais. 

A verdadeira aristocracia, para Ariano, é aquela adquirida pelo espírito. Essa nobiliarquia é decorrente de uma postura moral ilibada, aliada a um exponencial senso de honra e vocação pública. Aristocrata, então, seriam Albert Schweitzer, Gandhi, Albert Sabin, entre outros.

Titãs morais, verdadeiros cavaleiros da távola redonda, homens sem mácula e sem medo, sempre à disposição dos injustiçados ou a serviço de causas mais que nobres.

Individualidades poderosas, que se recusaram ser conduzidas, cooptadas, amordaçadas.

Não aceitam ser a folha que o rio leva para o mar; muito antes, pelo contrário, assemelham-se às represas que domam a marcha das águas.

Essa aristocracia pelo espírito de Ariano é fecundada, em termos ideológicos, por um socialismo que lembra o cristianismo primitivo em sua perspectiva ética.

É como se o grande escritor acreditasse que a verdadeira revolução seria aquela promovida através da encampação da dignidade como único fulcro da conduta humana, legitimando-a.

Percebe-se, em seu pensamento, um contraponto dialético à ética burguesa que exposta a olho nu, por suas contradições básicas, mostra a conduta humana amesquinhada por obra e graça da lógica do capitalismo. Esse burguês, caricato, cortesão, jamais diria: "ao Rei tudo, menos a honra", mas, sim, "à elite tudo, mesmo a dignidade".

Eis, pois, uma crítica ética ao capitalismo. A busca do lucro, revestida pelo fetiche ideológico da "competição", da "livre concorrência", amesquinharia o homem que aceita participar de tal jogo.

Um aristocrata pelo espírito, cuja conduta é calcada na honra, no senso de justiça pública, recusa-se a aceitar uma competição cujo resultado final seja a obtenção de um ideal tal como, por exemplo, a mera obtenção do lucro.

Talvez haja algo de quixotesco na dimensão humana de Ariano Suassuna. É interessante, entretanto, observar o quanto sua concepção filosófica, nesse aspecto, aproxima-o de Saint-Exupèry, aristocrata pelo espírito e por genealogia, e seus escritos reunidos em Cidadela, livro póstumo.

E, por outra, aproxima-o, também, do "bushido", o caminho do samurai. Perceba-se que Yukio Mishima, em seu comentário acerca do Hagakure, um manual de conduta escrito por um samurai, para samurais, critica asperamente os nobres por ele chamados de "aristocratas de contas de despesas". 

Ou seja, tanto para Ariano, quanto para Saint-Exupèry e Mishima, o Homem, assim considerado, é aquele que transcendeu o apequenamento, o amesquinhamento pessoal, e se tornou um aristocrata pelo espírito.

Aristocrata pelo Espírito: não considerei correto o título "aristocrata do espírito". Difícil dizer por quê. Penso que "aristocrata pelo espírito" expressa com maior clareza a idéia de uma nobreza espiritual - tudo aquilo que caracteriza o humano, como a ética, incluindo, inclusive, o seu pendor místico. 


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sexta-feira, 3 de outubro de 2025

UMA OBRA ESSENCIAL ACERCA DA ELITE POLÍTICA



Gaetano Mosca (1858-1941)


* Honório de Medeiros


Tempos atrás, recebi La Clase Política, de Gaetano Mosca, com seleção e introdução de Norberto Bobbio, edição popular (livro de bolso, trocando em miúdos) do “Fondo de Cultura Económica” de 1984, México, após procura na qual se alternavam períodos de calmaria e outros de busca frenética.

Desconfio, claro, muito embora sejam reais as dificuldades de encontrar esse texto – tomo como prova o fato de somente agora conseguir encontrá-la – que era para ser assim mesmo, ou seja, não me seria fácil adquirir, manusear, analisar e criticar metodicamente, em seus detalhes, a obra que Gaetano Mosca, já octogenário, classificava como “seu trabalho maior”, “seu testamento científico”, e à qual dedicara suas melhores energias durante quarenta anos, como nos lembra Norberto Bobbio em sua introdução.

Isso porque dou como certo que os livros têm vida, e muito mais que adquiri-los, somos, por eles, adquiridos, tal como nos leva a crer Carlos Ruiz Zafón em seu A Sombra do Vento, quando nos apresenta ao “Cemitério dos Livros Esquecidos”, localizado em misterioso lugar do centro histórico de Barcelona, fantasia, bem o creio, nascida de suas leituras do imenso Jorge Luis Borges e de seu maravilhoso conto “A Biblioteca de Babel”, em Ficções.

E, em tendo vida, e vontade própria, houve por bem A Classe Política brincar comigo de gato e rato, sem dúvida por considerar que meus arroubos juvenis criticando Marx, nos corredores da Faculdade de Direito, firmado em leituras ainda pouco digeridas, da obra de Karl Popper e Raymond Aron, não mereciam ainda o respaldo final de uma metódica construção teórica da qual resultava a hipótese – que assombrava meus pensamentos em seus contornos imprecisos – de que há uma elite dominante presente em todas as sociedades, sejam quais sejam elas, seja qual seja a época.

É como nos diz a apresentação do livro, em sua contracapa: “Mosca considera que hay uma clase política presente em todas las sociedades. Gobiernos que parecen de mayoría están integrados por minorias militares, sacerdotales, oligarquias hereditárias y la aristocracia de la riqueza o la inteligencia”.

Percebo, portanto, que A Classe Política aguardou o momento certo: quando fosse possível, na medida de meus esforços, compreender que há uma relação entre sua idéia central, a Teoria da Evolução de Darwin - naquela vertente anatematizada da Sociobiologia – e a Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, que me permitisse iniciar, para mim mesmo, a descrição do fenômeno jurídico em sua totalidade, certo ou errado, seja como sistema de normas jurídicas, seja como fato social.

Assim, restou ler, ler de novo, e reler, o que escreveu, acerca da “elite política” esse italiano nascido em Palermo, em 1º de abril de 1858, falecido em Roma em 8 de novembro de 1941, aos oitenta e três anos.

Foi professor de “História das Doutrinas Políticas” na Universidade de Roma e Docente Livre em Direito Constitucional na Universidade de Palermo. Ensinou, também, na Universidade de Turim, foi Deputado, Senador do Reino, Subsecretário das Colônias, e colaborador do Corriere della Sera e La Tribuna.

Em 19 de dezembro de 1923 se retirou da vida política ativa e se dedicou exclusivamente a seus estudos, em particular no campo da história das doutrinas políticas.

É preciso ler, com especial atenção, um capítulo denominado “Origens da doutrina da classe política e causas que obstaculizaram sua difusão”, no qual Mosca credita o pouco conhecimento da “teoria da elite política” à hegemonia do pensamento de Montesquieu e Rousseau.

Hegemonia essa, ouso dizer, que serve como uma luva feita à mão na estratégia adaptativa de aquisição e manutenção do poder empreendida pelas elites dirigentes após a Revolução Francesa de 1789, que culminou, no campo do Direito, na inserção, em Constituições Federais, de princípios jurídicos difusos que se prestam a serem interpretados de acordo com as conveniências de quem os interpreta.

Curioso é que muito embora eu, finalmente, tenha conseguido pôr minhas mãos nessa obra, ela ainda não me veio por inteiro. Trata-se, no caso, de uma seleção de textos feita por Bobbio. Tanto que, no final, há um capítulo no qual se apresenta o resumo dos capítulos omitidos. Nestes, há uma refutação das doutrinas do materialismo histórico e da concepção segundo a qual deveriam chegar ao governo os melhores, tema retomado por Karl Popper em “A Sociedade Aberta e Seus Inimigos”, onde critica Karl Marx e Platão.

Ou seja, a busca continua.


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domingo, 28 de setembro de 2025

PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO: O DIREITO ENQUANTO FENÔMENO DO PODER POLÍTICO

 




*Honório de Medeiros


O PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO: O DIREITO ENQUANTO FENÔMENO DO PODER[1] POLÍTICO[2][3]

 

1)  A sociedade[4] é constituída por um conjunto[5] de fatos[6] que se entrelaçam[7]. É possível identificar vários desses fatos específicos: 

a)  O fato econômico;

b)  O fato religioso;

c)  O fato político;

d)  O fato jurídico, etc. 

2)  Há um método para estudar o conjunto desses fatos: o científico. Aqui se pode pensar em monismo metodológico[8], ou seja, há somente uma ciência[9], e esta pressupõe: 

a)  Um Objeto;

b)  Uma teoria acerca do Objeto;

c)  Uma testabilidade. 

3)  A ciência que estuda o conjunto dos fatos sociais é a Sociologia. O ramo da sociologia que estuda o fato jurídico é a Sociologia Jurídica. 

4)  O fato jurídico pressupõe o campo jurídico, portanto o campo jurídico possui uma lógica (complexo de causas) que lhe é externo e que determina seus pressupostos estruturais (complexo de causas) internos (interior do campo jurídico). Para que se perceba essa realidade imagine-se um jogo de xadrez: a lógica externa (complexo de causas) estabelece quem são os participantes, qual é o jogo, quais são as regras; a lógica interna (complexo de causas) estabelece como vai acontecer o jogo a partir dessas premissas estabelecidas exteriormente. Para que se perceba a dependência da lógica interna em relação à lógica externa basta que se imagine a possibilidade desta impor novos jogadores, novo jogo, novas regras[10]. 

5)  Essa lógica interna, campo específico da dogmática jurídica ou teoria geral do direito é de natureza técnica: diz respeito à construção dos conceitos próprios internos do campo jurídico, tais quais o de validade da norma jurídica, eficácia, hierarquia das normas, normas coativas, normas imperativas, normas permissivas, normas atributivas, bem como produção da norma jurídica, interpretação e discurso legitimador do campo jurídico ou legitimação retórica[11]. 

6)  A sociologia política conjectura que a lógica externa que engendra o campo jurídico[12] é resultante de relações de domínio (Poder[13] Político[14])[15]. A comprovação advém da história: a história das normas sociais e das normas jurídicas é a história da imposição de regras aos dominados pelos dominantes (surgimento do Estado – a norma jurídica abstrata e geral substituindo a regra social concreta e casuística). 

7)  Nesse sentido o caráter hegemônico de produtor da norma jurídica que é próprio do Estado e que a história comprova, inclusive no que diz respeito ao fenômeno da recepção. Caráter de legitimação da norma jurídica porque produzida pelo Estado para mascarar a ilegitimidade do próprio Estado. 

8)  Sendo o Estado[16] algo que resulta da Sociedade, e sendo esta uma realidade na qual o conflito, a discordância, a divisão, a luta de classes, o confronto grupal, o dissenso, é a essência, aquele somente pode surgir da imposição da vontade dos que detêm o Poder Político sobre os subjugados. 

9)  As relações de domínio se externalizam[17] através de: 

a)  convencimento: via propaganda (mídia), retórica (O Estado Sedutor)[18]; 

b)  constrangimento: através do poder econômico; 

c)  sedução: carisma; 

d)  subjugação: força. 

10)             No que diz respeito à subjugação o Poder Político se configura através de normas jurídicas produzidas através do aparelho estatal ou por este reconhecidas. Aparelho estatal que pode ser o Poder Executivo, o Legislativo ou o Judiciário. 

11)             Sendo o Poder Político a fonte do Direito, manifesta-se por intermédio da produção, interpretação e aplicação da norma jurídica[19]. Podemos contar uma história do Direito a partir dessa perspectiva: como se produzia, interpretava e aplicava a norma jurídica na era arcaica, antiga, medieval, moderna, contemporânea? Quanto à Norma Jurídica, temos que analisar o conceito de governo que lhe é inerente (território, população e governo); temos que expor e criticar suas características: soberania; tributação; força policial independente que pode agir contra o povo a quem, até então, estava restrito a posse de armas para a defesa comum da sociedade; a norma jurídica geral e abstrata em contraposição à norma social o mais das vezes concreta e específica; a burocracia; a centralização. 

12)             A ação política se exerce através do Direito. Neste caso o Direito é um epifenômeno do Poder Político.  

13)            O Poder Político é o parâmetro fundamental: está por trás de tudo, engendrando as soluções para transpor os obstáculos que possam surgir, ou seja, estratégias adaptativas. Não há vazio no espaço social. O Poder Político está sempre presente, havendo Estado. Mudamos seus titulares porque o Poder Político muda de dono de acordo com fatores tais como competências circunstanciais. Tudo é prolongamento ou instrumento do Poder Político.  

14)             A relação entre a esfera econômica e a esfera política é um problema de delimitação de campos, de exercício do poder político por distintos meios. A relação entre moral e política é um problema de distinção entre dois critérios de avaliação de ações. A relação entre política e direito é um problema de interdependência recíproca ficando, entretanto, o poder político com a última palavra. 

15)             Somente há direito onde houver em última instância a força. Não há outro direito senão aquele estabelecido direta ou indiretamente reconhecido pelo poder político (Thomas Hobbes). 

16)             É possível a redução do jurídico para o político, e do político para a teoria da evolução de Charles Darwin. É possível a redução do econômico de Marx para o poder político através de Darwin. É possível reduzir o Poder Político à teoria da evolução de Darwin.            


[1] Poder: capacidade que alguém possui de determinar a conduta de outrem.

[2] Política: conjunto de ações que objetivam a conquista do Poder (último, supremo ou soberano) em uma comunidade de indivíduos por sobre um território.

[3] Poder Político: poder exercido na Polis (cidade) ou seja, comunidade autosuficiente de indivíduos que convivem em um território (Estado).

[4] A sociedade é uma malha cujas linhas são as relações de domínio. Há uma lei natural social – a lei da evolução – à qual pode ser reduzida a conduta humana e que dá ao ser humano o aparato físico/mental para tecer as condições de domínio. Um fato social, qualquer que seja ele, é um conjunto de ações específicas de domínio. No modelo tradicional, o Estado legitima a norma jurídica – mas observemos que ele cria as regras que dirão quando estas são legítimas. Até onde a história pode alcançar o homem viveu em sociedade. Ele é uma anima social antes de ser um animal. Sempre houve, existindo sociedade, o fenômeno do Poder. Talvez, inclusive, não seja possível o primeiro sem o segundo, devido ao instinto de sobrevivência – sobreviver é mais fácil em grupo, e onde houver grupo haverá Poder, como demonstram todas as pesquisas realizadas em Psicologia Social. O Estado, entretanto, pertence a um estágio ulterior de civilização. Neste caso há ingredientes que exigem a presença de uma força armada que aja internamente contra quem não aceita a submissão, bem como uma legislação geral e abstrata para a gestão do território e de uma população, além de funcionários para cuidar dos impostos e da lei – a burocracia. O Estado é, assim, uma resposta adaptativa da espécie humana a um desafio de Poder.

[5] Os fatos teleológicamente encarados, ou seja, com um propósito específico: marxismo; darwinismo. Aparentemente sem um propósito espefício: “autopoiesi”. Através de Charles Darwin poderíamos pensar em uma evolução do mais simples ao mais complexo, sempre produzindo condições mais favoráveis de sobrevivência aos mais aptos, embora não se possa afirmar que essa evolução conduza para um progresso em termos de valores. Podemos avançar para um Estado mais evoluído e pior, em termos de valores. Spencer diria que há especialização e finalidade. A teoria da dinâmica de redes proporia a “autopoiesi” (mas para quê, por quê, com qual sentido?). O marxismo falaria em evolução para o comunismo. O funcionalismo ou a teoria de sistemas não se questiona acerca da causa e finalidade, tomando esse conjunto de fatos sociais como se sempre tivessem existido. Não questionar a causa e a finalidade é dar ensejo ao surgimento de uma teoria funcionalista da sociedade que advoga a semelhança entre esta e o corpo humano, no qual cada órgão cumpre uma função no sentido de se alcançar a saúde. No que diz respeito à sociedade seria a saúde social, ou paz social. O modelo funcionalista prega que assim como cuidamos da saúde de um determinado órgão para que ele não afete o todo, devemos cuidar do órgão social para que a paz não seja perturbada. Então, fala-se em Estado em Crise, e se defende o aperfeiçoamento do Estado. Isso conduz a soluções autoritárias porque engendra modificações nas legislações de controle. Não há Estado em Crise por que os pressupostos básicos de seu  funcionamento somente são ameaçados quando há uma revolução ou guerra. Esse tipo de perspectiva oculta as causas reais dos problemas cujos reflexos são sentidos através dos aparelhos do Estado e são conseqüências de conflitos no âmbito da Sociedade. Uma imagem diz mais: querer consertar o Estado para melhorar a sociedade é querer melhorar o carro cujos pneus estão ruins sem ajeitar as estradas. Tal visão de Estado tem a incumbência de ocultar a realidade. É como querer resolver o problema de hipertensão através de drogas sem resolver suas reais causas.

[6] Um elemento da realidade cuja existência é incontestável e pode servir de base para o raciocínio ou hipóteses (há de pressupor um realismo crítico).

[7] Esse conjunto de fatos entrelaçados forma uma rede, uma malha, uma teia, um sistema, um tecido social. Através de liames (relações) que vão ser mais ou menos densas depende de um certo contexto: as relações entre o fato religioso e o jurídico são mais densas no Irã que no Brasil.

[8] Dois obstáculos a esse postulado: 1) diferença ontológica entre fato social (existe por que o homem existe) e o natural (existe independente da existência do homem), superada por Émile Durkheim que propõe o postulado da identidade entre fato social e natural quanto à aplicação do método científico.

[9] A ciência dita humana ou do homem que advogue um método dialético, ou compreensivo, ou hermenêutico, vai esbarrar sempre na obrigação de submeter suas teorias ao controle da observação, para evitar a metafísica, as verdades auto-evidentes, e termina caindo no falibilismo popperiano. Essa ciência parte do pressuposto de Durkheim de que fato social e fato natural se equivalem enquanto objeto de um método da ciência.

[10] Revoluções, golpes de estado, etc. Uma outra imagem que pode ajudar: a lógica externa fornece o terreno, o material de construção e os construtores para que seja construída uma casa; esta casa pode ter qualquer forma, mas necessariamente terá que possuir sapata, teto, paredes, e tudo quanto nela ou para ela for feito está adstrito aos parâmetros impostos do terrerno, do material de construção, dos construtores...

[11] Se formos estudar o campo interno econômico, teremos que construir uma teoria do salário; entretanto essa construção está necessariamente adstrita a leis que regem o campo externo tal qual a do mercado. No campo jurídico podemos pensar em algo do campo interno tal qual a definição de validade da norma jurídica, sem o qual  não é possível a idéia de ordenamento jurídico. A definição de validade da norma jurídica é inerente a de ordenamento jurídico, que é inerente a de Estado, que é inerente a uma lógica do Poder Político.

[12] E o econômico, e os outros. Nesse caso há uma redução, ao político, com fulcro na Teoria da Evolução, semelhante à redução ao econômico feita por Marx com fulcro no materialismo dialético. 

[13] Tipos de poder (em “Política”, de Aristóteles): a) pai sobre o filho (patriarcalismo) – “ex natura”; b) senhor sobre o escravo (despotismo) – punição “ex delicto”; c) governantes sobre governados (poder político) – “ex contractu”.

[14] Características do Poder Político: a) critério da função: o Poder Político é a mente do corpo social; b) critério da finalidade: o Poder Político tem a finalidade de alcançar o bem comum (juízo de valor); c) critério do meio: o Poder Político se caracteriza pela utilização da força (“summa potestas”; poder soberano) que distingue a classe dominante.

[15] Podemos ver que incipiente no tráfico, no cangaço, nas comunidades nos limites das áreas urbanas, nos presídios, nas tribos das eras arcaicas, todos têm os elementos daquilo que irá constituir o Estado, À EXCEÇÃO DA NORMA GERAL E ABSTRATA.

[16] O Estado é um exemplo de como: a) um instrumento formal pode desenvolver-se ao longo do tempo em complexidade para suprir expectativas em relação ao manejo do Poder Político; b) algo pode surgir para resolver um problema específico de Poder Político – somente uma norma jurídica geral e abstrata daria conta de uma população maior, território maior, e complexidade de gestão maior. Uma vez surgido o instrumento, ele se auto-alimenta gerando condições para sua sobrevivência. Na verdade não é o instrumento em si, mas, sim, aqueles que o manuseiam.

[17] A categoria filosófica da “vontade” é o fio condutor para entender essa tipologia: na persuasão a vontade adere; no constrangimento, cede sem querer; na sedução, é contra mas cede querendo; na subjugação aniquila a vontade. Conceito de vontade em São Paulo, sem o qual não haveria livre-arbítrio, inferno, Igreja impondo seu reino. 

[18] A tendência a dizer que o Direito resolve as coisas é o mesmo que dizer que “o carro” é veloz, ou “o carro foi para a oficina”, ou seja, uma antropoformização para ocultar o verdadeiro sujeito da ação. É como quando o juiz diz: “não fui eu, foi a lei”.

[19] As normas jurídicas que aparentemente são conquistas dos menos favorecidos (mesmo que circunstancialmente), ou aquelas que aparentemente limitam o Poder de quem o detêm, são engolfadas pelos mecanismos construídos pela elite dominante – enquanto estratagemas – para assegurar o predomínio na interpretação e na aplicação. Portanto, normas jurídicas como as que asseguram isonomia somente se tornam eficazes em relação aos hipossuficientes quando estes dão demonstração de força política.


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