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Honório de Medeiros
Formavam
um belo casal.
Ambos
já acima dos setenta, beirando os oitenta, cabelos totalmente brancos, andar
pausado, vinham todos os dias, até nos finais de semana, tomar, por volta da
hora do “ângelus”, uma sopa de legumes especialmente preparada para eles.
Quando
os vi pela primeira vez, despontando na esquina da rua onde estávamos, no
restaurante, chamei a atenção: “vejam”. Vinham lentamente, de mãos dadas,
parecendo um casal de namorados a apreciar a companhia um do outro enquanto
flanavam.
Embora
ela aparentasse ser mais idosa, estava em melhor estado de conservação. E notava-se
claramente seu cuidado para com ele. Sua mão que enlaçava era também a que
conduzia, guiando-o e o afastando de possíveis obstáculos, tais como
irregularidades no calçamento ou cadeiras postas no meio do caminho.
Mas
não era só. Depois de sentados, era ela quem puxava conversa e lhe fazia breves
relatos - querendo entretê-lo - aos quais ele pontuava com monossílabos, ou
chamava sua atenção para algo diferente, tal como o olhar cândido e curioso da
criança sentada na mesa próxima a sua.
Mesmo
após vezes seguidas observando, ao longo dos dias, quase nunca os vi sorrir.
Eram muito sérios e somente em uma ou outra oportunidade pude surpreender um
carinho eventual de um para com o outro. Não que isso demonstrasse
distanciamento, ao contrário. Havia, entre eles, uma transcendência – era
perceptível – quanto ao trivial de gestos desnecessários, típica de um
relacionamento antigo, onde o entendimento era perfeito e o silêncio comum
pleno de compreensão.
Eu e
os outros conversamos vezes sem conta sob o casal, com quem os atendia. Tinham
nascido em outro lugar, dizia o garçom, uma cidade grande, eram aposentados e
tinham optado por não terem filhos. Agora, no final da vida, desejando mais
tranquilidade, vieram para uma cidade menor onde não possuíam parentes próximos
nem conhecidos.
“Quem
cuida deles?”, perguntei. “Ninguém; há uma moça que faz a limpeza do
apartamento e do restante eles mesmos cuidam”. “Quando querem sair”,
prosseguiu, “já têm um motorista de táxi de confiança que os leva para onde
desejam ir”. “Saem?”, continuei. “Vão à missa, aos médicos...”
Após
algum tempo trocávamos cumprimentos, mas jamais passou disso. Havia certa
reserva em cada um deles que desestimulava a aproximação para a conversa
coloquial. Talvez já não tivessem interesse em construir novas relações e
absolutamente não se sentissem solitários; quem sabe gostassem da solidão e do
tipo de paz que ela proporciona? Se não fosse assim, por qual outro motivo
teriam saído de sua cidade e vindo para cá, um lugar desconhecido, pensava
eu...
No
fim, tudo acabou como esperado, como sempre acaba tudo. Ele teve um infarto
fulminante e ela ficou só. No início, pelos relatos, pensou em continuar no
apartamento que dividiam e tocar a vida. Mas um dia, quando cheguei e percebi
sua ausência na hora de costume, fui informado que decidira partir e ir morar
em um local especializado em idosos.
Antes,
aparecera para se despedir. Deixara, até mesmo, uma pequena lembrança, um
“souvenir”, para cada um dos que trabalhavam no restaurante. Agradecera muito,
delicadamente, toda a atenção recebida. Não tocara no assunto de sua viuvez,
nem dissera para onde iria. Depois, apertara a mão dos proprietários, desejara
felicidade, e se fora, com seu passinho miúdo, o vestido elegante, de talhe
antigo, deixando, pela última vez, o cálido registro do esvoaçar dos seus finos
cabelos brancos e um leve vestígio de “Fleur de Rocaille” no ar.
Em
mim, como vieram, foram-se. Deixaram por muito tempo uma lembrança vaga, de um
matiz suave, crepuscular, como uma fotografia em sépia, algo a ficar em um
nicho adormecido do museu de lembranças.
Resolvi
resistir proustianamente. Na medida dos meus limites, eis esse registro,
enquanto homenagem à elegância, discrição, e à arte de cultivar a reserva
pessoal.
Um comentário:
Gostei bastante dos velhinhos. Muito bem pensada.
Parabéns pela excelente crônica sobre os velhinos.
Mendes Mossoró
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